Deito-me e
acordo. Levanto-me da cama e sento-me à mesa. Gosto de estar sentado à mesa.
Daqui a nada tenho aulas. Vou fumar um cigarro. Gosto dos meus amigos. Tenho
saudade dos meus amigos. Ao almoço vamos comer um cozido. É Domingo. Não gosto
dos Domingos. Gosto dos Domingos. Rimo-nos todos juntos. Vemos vídeos no
telemóvel. Ela chora. Ele também. Eu não. O teatro é a nossa vida. Queremos voltar para
trás. Somos amigos. A vida não presta. A vida é uma festa. Escrevo em verso.
Porquê? Porque te pediram. Não vou escrever hoje. Demasiado cansado. À noite é
sempre mais fácil. Um cobertor. Uma almofada. E depois a urgência de não
dormir. Quem é que quer dormir? Mas daqui a nada tenho aulas. Não é insónia.
Gostava de fazer um parágrafo. Ouve música. Play. Ludovico Einaudi. Cliché.
Ninguém acredita em ti. Olha em frente. Uma cortina. Branca. Falámos de quê? É
um texto curto. Tens de o acabar. Não. Não fiz nada. Há dias em que não se faz
nada. Não se consegue fazer nada. Olha em frente. Já olhei. Uma cortina.
Branca. Tenho saudades de ter frio.Tenho medo de voltar a ter frio. Os
teus alunos vão ler isto. E então? Deixa-me falar. Então diz qualquer coisa. Não.
segunda-feira, 24 de novembro de 2014
sábado, 18 de outubro de 2014
SEM TÍTULO
A propósito de literatura, dizia Oscar Wilde que se dividia em duas categorias: a boa e a má.
A propósito de livros, esteve há uns dias em Portugal um senhor de nome Romain Puértolas (ou Puertólis, não consigo decifrar a minha caligrafia) que vendeu, só em França, 300.000 exemplares do primeiro romance, já traduzido para tudo o que é língua, e que apresenta um título auspicioso: A Incrível Viagem do Faquir que Ficou Fechado num Armário do IKEA. A entrevista despertou-me interesse porque Puertólas (ou Puertólis) afirmava com orgulho que tinha escrito a história num único mês, duas horas por dia, no metropolitano, uma hora para o emprego e outra para casa, usando o iPhone como processador de texto. Puertólas (ou Puertólis) é um fanático da escrita, diz que escreve a qualquer altura e em todo o lado, nas camisas com canetas stencil, no espelho da casa de banho com batom. Imagino-o a escrever a sua magnum opus sentado na sanita em rolos de papel higiénico. Este evidente caso de mania recordou-me o intragável Quills de Philip Kaufman, em que o sempre ilustrativo Geoffrey Rush se esforçava por credibilizar um Marquês de Sade muito pateta que aparentemente não conseguia sobreviver sem câibras nos dedos.
A propósito, encontrei hoje na Fyodor Conde Belisário de Robert Graves, na edição da Estúdios Cor de 1964. Custou-me dois euros e ainda tem as páginas por cortar, como se fazia antigamente.
De maneira que vou largar o iPhone que também uso para escrever, mas só algumas destas crónicas e pegar no corta-papéis, é que este ao meu lado esteve 50 anos à espera de ser lido.
quinta-feira, 16 de outubro de 2014
TEXTO BREVE SOBRE AS RAZÕES DA MINHA AUSÊNCIA (MESMO NÃO EXPLICANDO NADA)
Não simpatizo com aquela gente que
diz em entrevistas que se não escrevesse morria. Passo meses sem escrever uma
palavra e não me faz falta nenhuma. Escrever não é uma droga nem uma
necessidade, acho que descobri isso pelos vinte anos, depois de ter passado a
adolescência a relatar em cadernos A5 tudo o que não me acontecia. Mas isso são histórias antigas que não interessam,
Muito tempo passou desde a última
vez em que publiquei aqui alguma coisa. Algumas pessoas afastaram-se, outras
aproximaram-se. A vida foi avançando como avança sempre e eu deixei-me estar, preguiçoso ou misantropo, mas quieto.
Em resumo, senti orgulho e vergonha na mesma medida (isto é mentira, mas é uma boa frase) e continuei a trabalhar no mundo do teatro, o que não sendo óptimo, é agradável.
Em resumo, senti orgulho e vergonha na mesma medida (isto é mentira, mas é uma boa frase) e continuei a trabalhar no mundo do teatro, o que não sendo óptimo, é agradável.
Estou a escrever uma coisa que
ainda não tem título definitivo e que vai estrear lá para Março de 2015.
Lembrei-me de voltar aqui. E aqui
estou.
quarta-feira, 14 de maio de 2014
CASSIOPEIA
Há
textos que surgem assim, sem sabermos como. Cassiopeia
começou a surgir na minha cabeça depois do David Esteves me ter telefonado a
dizer que ele e o Vítor Silva Costa tinham sido informalmente convidados pela
Maria João Vicente para apresentarem um projecto para o Try Better Fail Better’ 14 do Teatro da Garagem. Queria saber se eu sabia de algum texto e de algum encenador que
lhes servisse. Isto foi no final de Dezembro. Telefonei nesse dia ao Pedro
Caeiro que aceitou encenar e que sugeriu o fio do enredo: a morte de um pai e o
reencontro de irmãos desavindos. Entretanto, eu ou ele, alguém teve a ideia de
haver também uma irmã que se juntasse à história e assim apareceu a Joana
Ribeiro Santos.
Prometi
entregar-lhes o texto no dia 27 de Março, na estreia de ICTUS, uma peça minha que entretanto estreava no Teatro
Experimental de Cascais, e onde o David e o Pedro entravam como actores. Havia
protestos, que eu pelo menos podia ir entregando as cenas que estivessem
prontas, mas eu convencia-os do contrário com a desculpa os queria concentrados
no ICTUS e não no Cassiopeia. Desculpa romba que foi
exposta quando apareci nesse dia apenas com a primeira cena e a promessa de que
o resto surgiria rapidamente. O resto eram ideias e pessoas que estavam na
minha cabeça e em algumas folhas soltas. A versão final apareceu a 30 de Abril,
um mês depois, com muita influência dos actores e do encenador, que foram
contribuindo directa ou indirectamente para o seu desenvolvimento, e com muitas
noites a olhar para o abismo.
Cassiopeia foi o texto mais difícil que alguma
vez escrevi, não sei se é o melhor, mas foi o mais difícil. No dia em que o
acabei senti-me aliviado por me livrar destes três irmãos. Gosto de os ver no
palco, nunca gostei de os ter comigo.
CASSIOPEIA
texto| Miguel Graça
encenação| Pedro
Caeiro
interpretação| David
Esteves| Joana
Ribeiro Santos| Vítor
Silva Costa
15 a 18 de Maio
Teatro Taborda
Teatro Taborda
Rua da
Costa do Castelo, 75
1100-178 –
Lisboa
Sala
Principal
Quinta a
Domingo| 21h30
Reservas e
informações| 21 885 41 90 | 96 801 52 51
Preços 10€
(normal)| 5€ (estudantes, profissionais do espectáculo e seniores)
M/ 16
terça-feira, 6 de maio de 2014
OS LOUCOS DANÇAM, NÓS CAMINHAMOS
Há uma palavra
para eles: loucos. Mas no Domingo, no TEC, não me pareciam loucos e quis trocar
de pele com eles, com alguns deles, com os mais perturbados. Pareciam ser os
mais perturbados.
O
espectáculo chama-se NOTURNOS* (infelizmente sem o “c”) e à minha frente e de
mais uns trinta pares de olhos, os loucos diziam as suas palavras. Os loucos
que não pareciam loucos. Alguns não pareciam. Havia seis mulheres e dois
homens. O que tanto pode querer dizer que as mulheres enlouquecem mais do que
os homens, ou que as mulheres recuperam melhor do que os homens.
Um homem e
uma mulher diziam coisas que eu nunca conseguirei escrever. Eram os mais
perturbados, pareciam os mais perturbados. Moviam-se lentos. Diziam as palavras
como (se eu fosse um deles poderia dizer como). Bataille, Genet e Artaud,
curiosamente todos franceses, talvez a França seja a terra da loucura, ainda
seja a terra da loucura, foi neles que pensei. Hei-de ir a Paris este Verão, e
sentar-me em bancos de jardim onde talvez eles se tenham sentado. Não me
lembrei de mais ninguém, Bataille, Genet e Artaud, talvez eles compreendessem o
significado daquelas palavras.
Dizia que um
homem e uma mulher diziam coisas que eu nunca conseguirei escrever. Ambos
lentos. Ambos quietos. Ele, um negro imponente, em cada gesto parecia impedir
um ataque ao espectador. Ela era mais complexa. Todas as palavras que lhe saíam
da boca pareciam (se eu fosse um deles poderia dizer o que pareciam). Cito de
cor, mas não são as palavras certas. As deles eram as palavras certas. Ele
levantou-se e caminhou até ao extremo do cenário, lento, disse: «num beco, à
noite, olhei para os ratos. E os ratos olharam de volta para mim». Ela, que
ainda não se tinha erguido do banco, levantou-se e disse: «o homem feliz estava
em casa com a família feliz. Depois levantou-se (foi aqui que ela se levantou)
e começaram a crescer-lhe as unhas das mãos e dos pés». Levantou as mãos para
nós e continuou. Os loucos foram dançar. Todos juntos. Os loucos a dançar e nós
a ver.
Na Grécia Antiga
os escravos também eram obrigados ao teatro. E a nós, obrigam-nos a quê? No final, na conversa, um espectador desatento pergunta como chegaram a personagens tão irreais, e uma louca responde que as personagens são eles, que é a realidade deles.
Ser como os
loucos. Dizer tudo o que não se consegue dizer. Os únicos escritores de que
tenho inveja à minha frente, lentos, anónimos, presos, a dançar. E eu aqui, a
fingir que sei as palavras. Não as sei.
*NOTURNOS de
João Silva é um espectáculo do Grupo de Teatro Terapêutico do Hospital Júlio de
Matos.
sábado, 3 de maio de 2014
O QUE FICOU POR DIZER
O meu computador está cheio de cinza
e tabaco. Não, não é isso. Quero dizer que as teclas estão cheias de cinza e tabaco.
Devia estar a trabalhar, mas não estou. Devia estar a dormir, mas não estou.
Devia estar a fazer tantas coisas, mas não estou. Quero dizer qualquer coisa
que não seja óbvia para não ser óbvio.
Vou mudar de assunto.
O ICTUS acabou e acabei o CASSIOPEIA.
No outro dia fui a um ensaio. Gostei tanto. Estava nervoso. Os actores no fim
disseram que estavam nervosos por eu lá estar, mas eu devia estar mais, não por
duvidar deles, mas por duvidar de mim. Duvidamos sempre do que fizemos, se deixarmos
passar algum tempo. Acho que não me vou meter mais nos ensaios, eles estão bem
sem mim.
Dei aulas de manhã e dei aulas de
tarde. Estranha expressão: «dar aulas». Afinal, damos o quê? À tarde falei
sobre Ibsen. Não simpatizo com ele, demasiado certinho. Sou do clube do
Strindberg, dos que fazem primeiro e pensam depois, ou dos que não pensam
sequer, ou dos que pensam fazer uma coisa e depois fazem outra. É indiferente,
corre sempre mal.
Agora estou às voltas com o
Valle-Inclán e com as DIVINAS PALAVRAS. Ainda não gosto do texto, mas é porque
ainda não me enterrei nele. Espero que seja por isso. Demora tempo até me
enterrar num texto, e não o tenho.
Não gosto de espanhóis. Mas isso não é
verdade. Afinal gosto de espanhóis porque me lembrei de Cervantes, de Unamuno,
de Goya, de Buñuel, de Calderón. Estou só a continuar a escrever, a dizer
qualquer coisa. Isto não quer dizer nada.
À noite fiz o jantar. Antes, dormi no
sofá porque estava cansado. Depois jantei e fui trabalhar, mas falta-me tempo.
Falta-nos sempre tempo. Falta-nos tempo para tudo, apenas nos resta fugir do óbvio.
Vou voltar atrás.
O ICTUS acabou e nem tive tempo de
sentir o vazio dessa ausência. Todas as pessoas gostaram: umas muito, outras
pouco, outras nada. Mas é assim mesmo. Nós gostámos, é o que me interessa. Entretanto
estava a escrever o CASSIOPEIA. Quase morri a escrever esse texto, uma frase
que é uma péssima estratégia de marketing
porque agora toda a gente acha que eu estou a insinuar que é brilhante e genial,
ou que não é nem brilhante nem genial, uma vez que eu não morri. E depois,
quando forem ver, vai ser o mesmo, umas hão-de gostar muito, outras pouco e
outras nada.
Vou regressar ao princípio.
Volto a dizer, desta vez em voz alta,
– tenho as teclas cheias de cinza e
tabaco.
É uma maneira de não dizer o que
quero, de fugir do assunto. Podia ir trabalhar, podia ir dormir, podia fazer
tantas coisas. Mas não, parece que o mundo é apenas estas teclas cheias de
cinza e tabaco e todas as coisas que eu não disse porque não as quis dizer.
Percebes?
sábado, 26 de abril de 2014
ANA
Eu estava nervoso. A Ana,
o Pedro, o Fillol, a Rita e o Sá vieram ver o ICTUS. São os meus amigos mais
antigos. Não os vejo durante meses. Aniversários e pouco mais. Gosto tanto
deles e de estar com eles. Mas é assim que a vida se faz, cheia de pessoas que
não vemos e de abandonos, cheia de recordações que se atiram para uma mesa com
um sorriso. E passaram quantos anos, perguntamos a meio da conversa?
Eu não estava nervoso por
causa deles, estava nervoso por causa da Ana.
Namorei cinco anos com a Ana. Mais.
Acho que foram cinco anos e meio.
A Ana é a melhor recordação que tenho. Quando
nos decidimos separar, ambos sabíamos por que o estávamos a fazer, e ambos o
queríamos fazer. Desses cinco anos e meio que passámos juntos, muita coisa
correu mal. Houve muitos gritos, lágrimas e dor. Às tantas já não conseguíamos
sequer olhar um para o outro. Hoje não me lembro de como isso aconteceu, nem me
lembro de sentir isso. Houve muita ingenuidade. Éramos miúdos a tentar ser
adultos. E havia tanta coisa contra nós: a família, os cursos, a rotina. Não
estou a dizer tudo. Não gosto quando não estou a dizer tudo. Vou dizer tudo no
próximo parágrafo.
Hoje quando me lembro de
ti, Ana, só me lembro da tua cabeça no meu colo. É disso que me lembro.
Esta merda de vida que
faz de nós estranhos.
Esta merda de vida.
Fiquei
tão nervoso quando te vi. Fiquei tão feliz quanto te vi. Fiquei tão triste quando
te vi. Porque não merecemos, pois não, Ana? Não merecemos o que nos aconteceu. E é tão tarde para voltar para trás, não é, Ana? É tão tarde para voltar para trás. Mas podemos voltar para trás, Ana. Achas que podemos? Eu não sei, porque eu não sei nada. Mas tu? Achas que podemos? Achas que ainda podemos?
quinta-feira, 24 de abril de 2014
HEY, WILL, HOW ARE YOU DOING?
Estou tão vazio
que quando acabar a CASSIOPEIA me vou apaixonar. Vou apaixonar-me a sério, com
filmes no sofá e passeios de pés descalços à beira-mar. Se for a tempo ainda
vou celebrar o 25 do 4. Vou gritar, «viva a liberdade», e insultar os polícias,
se houver polícias, mas deve haver polícias, vou gritar «filho-da-puta» de boca
bem aberta. Não. Isso seria demais. Lamento, mas isso não vou fazer. Isso seria
demais, nem eu acreditaria nisso. Vou apaixonar-me, isso chega.
Estou farto de
ser assim. Vou passar a beber água e sorrir quando me sorriem. Vou apanhar sol.
É isso. Hei-de sair de casa um dia e dizer que vou apanhar sol. Vou dizer para
a cama depois de me levantar: «vou apanhar sol», e a cama há-de sorrir-me e
dizer-me sem voz, «senta-te numa esplanada, pede uma água e apanha sol: tudo
vai fazer sentido». Toda a gente gosta disso, por que não hei eu de gostar? Que
frase complicada. Gostava de escrever com erros ortográficos e gramaticais. Gosto de pessoas
que escrevem no facebook a vida que têm
com erros ortográficos e gramaticais. Gostava de ser estúpido. Se eu fosse estúpido
a vida de certeza que faria sentido. E se estivesse numa esplanada, ao sol, a
escrever a minha vida com erros ortográficos e gramaticais, então seria o pico
da felicidade humana. As pessoas haviam de dizer que estou com bom aspecto, que
rejuvenesci, e eu ia gostar de ouvir isso e iria sorrir, iria sempre sempre
sorrir, como um pateta.
O ICTUS está a
acabar. Faltam quatro dias para as personagens morrerem, quatro dias para
deixarem de existir. Devia estar deprimido, mas não vale a pena. Depois há-de
começar tudo outra vez, com outra peça, outras palavras. O Shakespeare, que
sabia tudo antes de nós sabermos, percebeu cedo a verdade das coisas: tudo
acaba e tudo se repete, e o tudo é um nada maior que o infinito.
Vou
apaixonar-me. Vou acabar a CASSIOPEIA e o ICTUS vai acabar. Depois vou olhar
para ti e vou apaixonar-me. Vou apaixonar-me mesmo. E seremos feitos da mesma
matéria que os sonhos.
quarta-feira, 23 de abril de 2014
ESCREVER
Quando escrevo alguma coisa, ponho tudo o que tenho lá
dentro. Isso não é agradável. Nem agradável nem saudável, uma rima que não quis
fazer mas que agora que a fiz não a quero desfazer. Vou mantê-la.
Não conseguimos viver a vida. Acho que ninguém consegue.
Todos encontramos uma forma de escapar, uma forma de fingir que a vida é
qualquer coisa que passa ao nosso lado, que nós a estamos a ver mas que ela não
existe. O tempo passa depressa, já estamos na Páscoa e parece que foi ontem, mas a culpa é nossa. Não vivemos todos os dias como se
fosse o último e por isso temos medo. Eu não tenho medo.
Tenho muitos problemas.
Estou a escrever uma peça. Chama-se CASSIOPEIA. Estreia
daqui a 22 dias e ainda não a acabei. Não estou preocupado com isso. Comecei a
pensar nela em Dezembro, comecei a escrevê-la a meio de Março. Tinha um prazo,
estou atrasado um mês. Não estou preocupado com isso. Falta-me só a última
cena. São doze, já escrevi onze. Os actores estão a ensaiar. Falta-me a última
cena. É o texto mais difícil que já escrevi. Todos são difíceis. Mas este
parece estar a invadir a minha vida. O meu método está a dar cabo de mim. Não
gosto de escrever sobre como escrevo, parece-me uma coisa que é só minha, que
ninguém tem direito a sabê-la. Estou preocupado comigo. Parece que estou a
desistir, sinto-me a desaparecer.
Sabem como um fósforo se acende? É assim que eu me sinto,
todos os dias. Todos os dias como se fosse uma chama enorme que depois se
acalma e tenta respirar. E esta última cena, esta última cena está a dar cabo
de mim de uma maneira tão grande que me afastei dela e escrevi isto. Não vejo
ninguém, não estou com ninguém, A minha família pergunta-me por que não fui ao
almoço de Páscoa. E eu não sei responder.
Não sou eu.
Mas falta uma cena, uma cena apenas, a mais difícil. Escritores
de merda com ideias de merda. Odeio todos os escritores. Menos o F. Scott
Fitzgerald, o Hemingway, o Joyce, o Poe, o Carver, o Faulkner, a Dorothy Parker (com
quem eu me poderia ter casado), o Tennessee Williams, o Capote e o
Shakespeare. Bela lista. O resto são uns merdas.
quinta-feira, 27 de março de 2014
A ANGÚSTIA DO AUTOR ANTES DO MOMENTO DA ESTREIA
Estou a escrever este texto ontem, sentado em casa, sozinho, a tentar que os momentos que me escapam não fujam de mim. Foi um dia longo. Estreamos hoje.
Estive nervoso o dia todo, não foi bem nervoso, foi tenso. Passei o dia a caminhar pelo teatro, quando fico assim gosto de andar, não é que goste de andar, as pernas movimentam-se e eu vou atrás delas. Passeio pelo foyer, pelos camarins, vou até à rua, volto para trás. Pelo caminho passo pelos actores, que julgam estar mais nervosos do que eu. O encenador desapareceu. Fui a Lisboa para uma entrevista. As perguntas são complexas e às vezes consigo dizer qualquer coisa de jeito. Volto para o teatro. Tenho ideia de que passei o dia fazer coisas mas não me lembro o quê. Os minutos avançam como horas, mas as horas passam e não temos tempo. A culpa é da estreia.
Quis fazer operação de vídeo, deve ter sido uma forma que o meu subconsciente arranjou para me obrigar a acalmar. Não resultou.
Quis fazer operação de vídeo, deve ter sido uma forma que o meu subconsciente arranjou para me obrigar a acalmar. Não resultou.
Ao fim da tarde estou enfiado na cabine, os actores dão entrevistas e dizem coisas sobre mim, mas eu não as ouço, luto para resolver problemas de imagem, tenho de levar isto a sério. Estou sentado numa cadeira com um projector à frente. Disse que nunca mais o fazia, mas volto a fazê-lo. Tento ser eu. Ajuda sermos todos alunos. Mas isso não me interessa.
O que é que vai acontecer agora?
A ANGÚSTIA DO AUTOR ANTES DO MOMENTO DO ENSAIO GERAL
Estou a escrever este texto hoje, sentado em casa, sozinho,
a tentar que os momentos que me escapam não fujam de mim. Foi um dia longo. Estreamos
amanhã.
Estive nervoso o dia todo, não foi bem nervoso, foi tenso.
Passei o dia a caminhar pelo teatro, quando fico assim gosto de andar, não é
que goste de andar, as pernas movimentam-se e eu vou atrás delas. Passeio pelo foyer, pelos camarins, vou até à rua,
volto para trás. Pelo caminho passo pelos actores, que julgam estar mais
nervosos do que eu. O encenador ganha a toda a gente. Fomos os dois a Lisboa
para uma entrevista. As perguntas são simples mas eu não digo nada de jeito. Voltámos para o teatro. Tenho
ideia de que passei o dia fazer coisas mas não me lembro o quê. Os minutos
avançam como horas, mas as horas passam e não temos tempo. A culpa é do ensaio
geral.
Quis fazer operação de vídeo, deve ter sido uma forma que o meu subconsciente arranjou para me obrigar a acalmar. Não resultou.
Quis fazer operação de vídeo, deve ter sido uma forma que o meu subconsciente arranjou para me obrigar a acalmar. Não resultou.
Ao fim da tarde elogiam-me, dizem coisas sobre mim que eu
tento levar como banalidades, luto para não acreditar nelas, para não as levar
demasiado a sério. Estou sentado numa cadeira a assinar livros. Disse que nunca
mais o fazia, mas volto a fazê-lo. Tento ser eu. Ajuda serem quase todos alunos. Mas isso não me
interessa.
O que é que vai acontecer
amanhã?segunda-feira, 24 de março de 2014
GOOD FENCES MAKE GOOD NEIGHBORS
Do que menos gosto num prédio
são os vizinhos. Não é o barulho, porque não os ouço, não tenho obras ruidosas
que me martelem de manhã nem recém-nascidos que me gritem de noite. Mas não
gosto de vizinhos.
O regresso a casa a meio
da tarde é sempre um problema. Dou por mim a olhar para as pessoas, tentando
adivinhar para onde vão. Apresso o passo ou finjo contemplar a natureza se com
isso conseguir evitar o contacto ocasional que a educação diz que tem de ser
preenchido com palavras. Odeio os «boa tarde» tanto como os «com licença» ou os
«faz favor». Às vezes, no elevador, sou obrigado a falar sobre o tempo. Que me
interessa a mim que esteja a chover se já é Primavera? Que me interessa se está
sol ou se está calor? Muitas vezes calculo mal a rota dos vizinhos, ou porque
se demoraram a abrir a caixa do correio ou porque encontraram outro vizinho na porta
da entrada e ficaram parados a falar sobre o tempo. Nessas alturas, perante a
hesitação do cumprimento, finjo que apenas ali estou porque preciso de ir com
urgência à clínica veterinária na porta ao lado. Mas não é fácil. Não levo um
gatinho debaixo do braço nem trago um cão à trela, de maneira que quando as
senhoras do balcão me perguntam,
– sim?
E eu respondo,
– estou só a ver,
sinto que elas me olham
com uma desconfiança profunda, porque a única coisa que há para ver são posters
de cãezinhos e gatinhos e cartazes com conselhos úteis sobre os sintomas da
raiva ou como evitar as pulgas. Às vezes finjo que não sou dali, que estou a
caminho de casa e que ainda é longe. Dou a volta ao quarteirão e tento outra
vez. Devem pensar que eu sou um sociopata, mas good fences make good neighbors, como dizia o Robert Frost. Agora
que me lembro, não era ele que dizia isso, era o vizinho, e por isso neste caso
não sou o Robert Frost mas aquele que gosta de construir barreiras e de as manter.
Gosto de muros à minha volta, muito altos de preferência. Alguns podem confundir
isto com timidez, mas não. Simplesmente não gosto de vizinhos.
sábado, 22 de março de 2014
DIFFERENT TRAINS (1)
Acontece-me às vezes andar de comboio. Agora mais. Vou dizer que é agradável: é agradável. Ninguém olha para lado nenhum. Na era dos super-telefones olha-se para um ecrã minúsculo ou fecha-se os olhos porque a música dos headphones embala mais que a carruagem.
Acontece-me agora andar de comboio. Nos ensaios não devem sentir a minha ausência e eu gosto de olhar para as pessoas sem que elas olhem para mim. Há um grupo de quatro amigos que fala muito alto. Quando chegarmos hão-de dizer que a viagem pareceu curta, terá sido da conversa, tão sonora e interessante. Mas por essa altura não estarei a olhar para eles, estarei atento ao casal que está do outro lado da janela. Foi a mala de viagem enorme que me chamou a atenção. São novos. Estão tristes. Ele vai para qualquer lado, nenhuma mulher poria as roupas num malão daqueles. Ela tem a cabeça encostada ao ombro dele. Eu estou a olhar para ela. Não trocaram uma palavra desde que entraram. Sentaram-se. Ele deixou o malão no meio do corredor, ao lado dele. O comboio avançou. Não falaram, não disseram nada. Estou a imaginar que ele é um soldado e que vai numa missão militar para o Afeganistão. Tem o cabelo rapado debaixo do boné e é encorpado. Mas o exército não ia mandar um magala em turística para o médio oriente. Penso em aviões. Londres ou Berlim. Um casal sem dinheiro, ela tem a mãe doente e não pode ir com ele. Talvez tenha um primo distante que lhe disse que lá fora é melhor, que este pais não tem nada para nos dar.Têm os dois os olhos fechados, ela com a cabeça encostada ao ombro dele.
Acontece-me gostar de andar de comboio. Ela abre os olhos e encara-me. Não estamos muito longe um do outro. Ela olha para mim. Um corredor e uma, duas, três filas de cadeiras duplas separam-nos.
Não tenho escrito nada. Não consigo escrever nada. Pensei que todos os dias iria descrever os ensaios e afinal estou num comboio a olhar para eles.
Tão estranho. Quero ver para onde ele vai. Quero vê-los a despedirem-se. Aposto que depois apanham o metro até ao aeroporto, aposto que ele vai para Berlim, que ela vai chorar, que ele vai apaixonar-se por uma alemã duas semanas depois, que ela vai chorar outra vez, e amaldiçoar a mãe que continua doente e lembrar-se de mim, de mim que olhei para ela quando ela tinha a cabeça encostada ao ombro dele.
Mas estou no mesmo sítio, já regressei. Gosto de regressar.
quinta-feira, 6 de março de 2014
UM RÁDIO POR PESSOA
Muita coisa pode sair de uma noite de insónia. A Wilde
saiu-lhe a Salomé, a Pessoa os
heterónimos e O Guardador de Rebanhos
«de um jacto», dizia ele. Eu nunca
tive essa sorte, as minhas noites de insónia nunca foram assim, talvez porque
nunca sofri de insónias, simplesmente não consigo dormir, ou talvez apenas não
goste de dormir quando os outros dormem.
Quando eu era novo (talvez seja a primeira vez que estou a
usar esta expressão), nos tempos da Universidade, achava que havia um certo glamour em amar a poesia. Pouca gente sequer gostava dela, e eu até
estava num curso de literatura, por isso aproveitava todas as oportunidades
para marcar a diferença. Andava sempre com livros debaixo do braço que nada
tinham a ver com as cadeiras leccionadas, coisas complicadas, o Cantos do Pound, o Celan, o Cummings:
eram ao mesmo tempo, achava eu, uma espécie de escudo e arma de arremesso
contra os imbecis. Para além disso, lembro-me de duas t-shirts que ostentava com orgulho debaixo de um casaco de cabedal
negro, uma tinha a assinatura de Rimbaud e dizia o célebre «je est un autre»,
comprei-a num espectáculo no Coliseu (acho) que se chamava os Filhos de Rimbaud e que juntava o Sérgio Godinho, o Rui Reininho,
o Al Berto, o João Peste e o Jorge Palma (acho). O tempo passa e a memória
esvai-se, e o que fomos é quase um heterónimo. A outra pedi à minha mãe que a
fizesse, ela na altura fazia umas t-shirts,
esta tinha o desenho do Pessoa pelo Almada e por baixo lia-se: «há metafísica
bastante em não pensar em nada». Por que razão escolhi este e não outro
qualquer verso é um mistério para mim, provavelmente porque ele hoje faz sentido
mesmo que não fizesse na altura, ou talvez porque eu um dia não escreveria este
texto se essa t-shirt não tivesse
existido.
Quando eu era muito novo (outro heterónimo), não tinha
direito a insónias porque me levantava às seis da manhã. Ia para o colégio de
carro no banco de trás e para além do trânsito eu e a minha mãe tínhamos também
o rádio por companhia. A estação era a TSF (acho) e durante um tempo que não
sei quantificar – a mim parecem-me anos, mas devem ter sido dias – um pouco
antes do noticiário das oito, o locutor anunciava uma música brasileira que eu
ouvia todos os dias com mais atenção do qua alguma vez prestei a qualquer aula.
O que me fascinava era a história que a música contava, a sequência dos versos
que desembocavam num imediato, num aqui e agora que, não sei como, na altura
consegui decifrar. Depois a música mudou e eu esqueci-me dela.
Já era o jovem universitário que achava um certo glamour em amar a poesia quando descobri
no meio das muitas dezenas de vinyl
do meu tio o Meu Caro Amigo do Chico
Buarque. Lembro-me desse dia como um primeiro encontro com o passado, como a
primeira vez em que percebi o valor real da distância, que as coisas nunca
desaparecem. E foi só há uns meses que a Fernanda Lapa me contou que ela estava
em casa do Augusto Boal quando ele recebeu pelo correio a primeira demo da música – que era para ele – que
o «meu caro amigo» era o Boal, que «um beijo na família/ na Cecília e nas
crianças», era para a Cecília Boal e para os filhos deles.
Não sei porquê, mas quando me convidaram para escrever este
texto, pensei em tudo isto. Nestes pontos distantes que tento unir. Talvez haja
uma ligação entre as coisas, qualquer coisa que eu não compreendo, qualquer
metafísica que me escapa. Mas talvez não haja nada. Talvez as noites de insónia
sejam só noites sem dormir, talvez não sejamos outros. Talvez o que ouvi seja
mentira e a mentira esteja em mim.
*UM RÁDIO POR PESSOA estará em cena no próximo sábado, dia 8, no Teatro Municipal São Luiz, às 22h30. A entrada é livre e têm mais informações aqui: http://www.teatrosaoluiz.pt/catalogo/detalhes_produto.php?id=404
quarta-feira, 5 de março de 2014
A NOITE VEM E NÓS VAMOS
A noite vem e nós vamos. É sempre assim, vamos para algum
lado, nem que seja para casa.
Gostava de dizer mais, mas parece-me que é tudo o que tenho
a dizer. Não. Não é isso. Lembro-me muitas vezes do Chris Flanders, personagem
de Tennessee Williams, acusado de ser «um escritor que não escreve», «a writer
who doesn’t write», frase vergonhosamente plagiada pelo criador de californication, que às tantas punha uma
agente a acusar o sempre cool Hank
Moody de ser exactamente isso, uma negação de si mesmo, um paradoxo
insustentável: um escritor que não escreve. Podemos sempre falar sobre isso, escrever
sobre não se conseguir escrever, já o fiz no passado, mas hoje não, hoje apetece-me
dizer que a noite vem e nós vamos, vamos para algum lado. Eu vim para o
Estoril, deixei uma casa maior que este prédio e vim para aqui, perto de onde
trabalho mas exilado da minha vida. Fui feliz ali, aqui sou apenas um locatário
anónimo, ouço o autoclismo dos vizinhos e demoro oito passos da sala para o
quarto. É ridículo. Nem tudo é mau. Às vezes saio das aulas quase de noite e
pergunto-me como é que ainda tinha forças para 50 km até casa. É tudo uma
questão de hábito. Estou aqui e estou bem. Posso ir aos ensaios e em dois
minutos estou na escola. Mas tenho saudades dos meus cães, tenho saudades dos
meus cães tenho saudades dos meus cães tenho saudades dos meus cães. Desculpem
dizer isto, mas tenho saudades dos meus cães.
Desculpem.
A vida é uma merda. Não descobri isto hoje. Mas quando uma e
outra vez a vida é uma merda, parece que a única coisa que vale a pena são
mesmo os cães. E eu tenho saudades vossas: Blackie, Dingo e Zucco. E agora vou
tentar dormir. Ontem sonhei convosco,mas a noite e vem e nós vamos, temos sempre de continuar. Temos sempre se continuar.
terça-feira, 4 de março de 2014
EM ENSAIOS (1)
Mas toda a gente, ou quase toda, ou se calhar apenas meia
dúzia, me pergunta por que deixei de escrever, como se isto fosse escrever. As
coisas são o que são e isto é o que é. Mas percebo que queiram ver um novo
texto todos os dias, eu gostava, mas não consigo. Não consigo porque estou em
ensaios, ou não consigo porque entretanto mudei de casa, ou não consigo porque
o que tinha a escrever seria demasiado para que eu próprio o conseguisse verbalizar.
Mas aqui estou eu, inteiro, com a promessa de o voltar a ser todos os dias, e o
arrependimento de não o ter sido por cobardia ou inabilidade (na verdade estou
feliz por ter estado calado: o silêncio é, a palavra não é – uma lição que os
merdas que publicam tudo e mais alguma coisa deviam aprender, mas eles que se
fodam).
Estou assim, sozinho e quieto, mantenho o ódio pelos outros sem
saber quem eles são.
Outra coisa: começámos os ensaios de ICTUS no Teatro
Experimental de Cascais, uma peça que escrevi no final de 2011 e que vai
estrear no próximo dia 27 de Março. Quando se escreve um texto de teatro neste
país, dá-se graças aos deuses por ele ser representado. Em princípio não haverá
segundas leituras, e neste caso as coisas não vão ser diferentes. Está tudo a correr
bem, o elenco é bom e as quase três semanas de ensaios de leitura serviram para
esclarecer alguns pontos que ninguém compreendia, e que o público não irá
compreender.
Faço um parêntesis. Sou bom a fazer parêntesis, faço-os
sempre no sítio certo. Escrevi ICTUS no
final de 2011, a Lídia Muñoz e o Pedro Caeiro foram os primeiros leitores do
texto, os primeiros a acreditar nele, a dizerem-me que ele valia a pena. Devo-lhes
muita coisa. É uma merda as coisas não correrem como queríamos. Mas temos de
viver com o que temos.
Falta menos de um mês para a estreia e há muita gente que
deseja que isto corra mal, há muita gente a querer ver-nos cair. Isso não vai
acontecer. Não vai mesmo acontecer.
De 27 de Março a 27 de Abril: ICTUS, no Teatro Municipal
Mirita Casimiro.
terça-feira, 4 de fevereiro de 2014
DESAGRADAVELMENTE ENFADADO
Confesso que esta história das praxes,
com debates, artigos e polémicas, me enfada mais do que uma colecção
de faiança portuguesa – independentemente do século.
A telenovela foi montada pela
comunicação social e nós fomos atrás. Com um típico enredo
lento, está cheia de protagonistas rombos e de figurantes coloridos.
Nós observamos sentados no sofá e vamos abanando a cabeça para a
frente ou para os lados consoante o novo capítulo nos agrada mais ou
menos. Volto a perguntar-me se estamos a chegar ao fundo da questão
ou se apenas alimentamos o monstro.
Começo por situar o meu percurso
enquanto “caloiro”. Vivi essa situação em duas Faculdades muito
distintas, na primeira fui sujeito durante um dia àquelas coisas
habituais: pinturas, passeios e aulas-fantasma. Chamam-lhe
“brincadeiras inofensivas”, eu não gostei e na restante semana
não pus lá os pés. No ano seguinte mudei de curso e de Faculdade e, já
avisado, mesmo num sítio onde não conhecia ninguém, declarei-me
“anti-praxe”. Não me senti nem mais nem menos inadaptado por
causa disso, nem houve represálias por não aderir ao que me diziam
ser o “espírito académico”, mas nestas coisas, como se costuma
dizer, mais vale cair em graça do que ser engraçado, e sei do caso
de um colega que, tomando a mesma posição que eu, foi rotulado por
uns quantos “veteranos” como uma espécie de proscrito, sendo
durante um ano alvo de frequentes insultos e, pelo menos uma vez,
agressões. Por isso, quando me dão o argumento de que é tudo uma
questão de bom senso, remeto-os para Descartes e para uma verdade
que bem podia ser de la Palice: o bom-senso não costuma andar de
mãos dadas com uma pipa de vinho.
Poderia terminar por aqui, mas talvez
haja quem ainda não tenha percebido: nem o que eu disse, nem o fundo
da questão, como lhe chamei.
Cito a agonia do
cristianismo de Unamuno: «não foi o tirano que fez o
escravo, mas ao contrário. Foi um que se ofereceu para levar aos
ombros o seu irmão, e não este quem obrigou a que aquele o
levasse». Não será esta uma definição absoluta de um ritual que
muitos vêem não como uma humilhação consentida mas como uma forma
simples e directa de integração? Integração em quê, pergunto? Na
fraternidade da grade de cervejas? No clube da cábula? Na ideia –
porque é mesmo só uma ideia – de que pertencem a qualquer coisa,
de que fazem parte de um todo e com isso se sentem mais seguros, mais
capazes de disfarçar a solidão? Convém talvez perguntar a todos
esses jovens o que os motiva realmente, para ver se eles ao menos
sabem a resposta, e convém também perguntar aos pais que educação
lhes deram para afirmarem comovidos na televisão que os filhos
morreram felizes porque morreram trajados. E o outro lado? Dizia o
meu amigo Carlos Carranca que em Coimbra cerca de 90% das Repúblicas
são hoje “anti-praxe”, não por uma qualquer epifania, mas
porque militam na juventude de um partido de extrema esquerda que é
contra toda e qualquer tradição. Andamos à procura de uma
identidade colectiva, parece-me. E não gosto disso.
Volto a Unamuno: «os Homens procuram a
paz em tempos de guerra e a guerra em tempo de paz; procuram a
liberdade sob a tirania e procuram a tirania sob a liberdade». Não
será também isso que aqui se passa: a procura da estupidez num
sítio de saber, a procura do colectivo num sítio que deveria ser de
pensamento individual? Já no discurso sobre o filho-da-puta
Alberto Pimenta lançava o aviso sobre as nossas Universidades como
sítios de excelência para não pensar, com muros altos e
“seguidismos” por toda a parte. Afinal, transformámos a Academia
e os jovens que a frequentam em quê?
Num
excelente ensaio de 1963 (a agressão – uma história
natural do mal), Konrad Lorenz
concluía que o maior problema do Homem era não possuir uma
mentalidade de carnívoro. Os carnívoros têm uma espécie de
“válvula de segurança” que – em circunstâncias normais – os
impede de matar os elementos da mesma espécie. Os meus cães vivem
assim: sempre que o Zucco quer ser o líder da matilha, o Dingo, que
é o macho Alfa, mostra violentamente a sua superioridade até que o
outro se deita de costas em posição submissa, com a garganta
descoberta e as patas no ar. E o Dingo, que é apenas um cão, nunca
o agrediu depois disso. Toda a nossa desgraça, diz Lorenz, vem do
facto de sermos, no fundo, criaturas inofensivas e omnívoras.
Incapazes de matar grandes presas, fomos também incapazes de nos
controlar quando aprendemos a fazê-lo.
Não há nada a discutir. Proibir as praxes e expulsar das Universidades quem teimasse em mantê-las seria um sinal de inteligência e civilização, mas, como se tem visto, essas são duas qualidades que rareiam neste mundo, quanto mais neste país.
segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014
AMIGOS DISTANTES
Lembro-me da primeira vez que me senti
assim. Foi há quatro anos e eu ia dar aulas no primeiro dia a seguir
às férias do Natal, é a única coisa que me lembro desse dia.
Quando estava a sair da auto-estrada, o locutor anunciou a próxima
música, is anything wrong de Lhasa de Sela, que tinha morrido
dois ou três dias antes com 37 anos: cancro da mama. Era de manhã,
estava sol e foi daquelas poucas vezes em que quase comecei a chorar,
em que me senti sozinho, perdido, incapaz de compreender o que estava
ali a fazer, a existência de tudo à minha volta.
Em que momento é que deixamos de
acreditar naquela estúpida ideia de imortalidade? Parece que de cada
vez que nos morre alguém voltamos a essa certeza, por isso se calhar
nunca nos livramos dela.
E estas pessoas de quem gostamos mas
com quem nunca falámos? Músicos, actores, filósofos, escritores.
Não sabemos nada sobre eles mas vivemos uma vida a ouvi-los, a
lê-los, a olhar para eles sem nunca os termos conhecido, e gostamos
deles porque de alguma maneira achamos que nos daríamos bem se nos
encontrássemos um dia. Ficam connosco. Lembramo-nos da música que
estava a tocar quando nos apaixonámos, do filme que fomos ver ao
cinema antes de nos beijarmos, de ouvirmos os mesmos discos, de
lermos os mesmos livros. Estranhos que entram pela nossa vida e
passam a ser amigos de casa. E depois, um dia, eles morrem. E mesmo
sabendo que não nos são nada, ficamos tristes, talvez porque não
fomos capazes de os ajudar quando eles nos ajudaram tantas vezes.
Quando me sinto assim penso nos
dinossauros. Penso muitas vezes nos dinossauros. Não é só nos 75
milhões de anos que nos distanciam deles, mas principalmente nos
mais de 130 que por cá andaram. Hoje são fósseis e ossos, nem
sequer sabemos de que cor eram, não fazemos ideia, pintamo-los de
verde porque a maioria dos lagartos são verdes, mas até podiam ser
amarelos ou cor-de-rosa, ou até transparentes. Penso nos dinossauros
porque duvido que a humanidade se aguente tanto tempo quanto eles sem
nos espatifarmos uns aos outros, basta olhar para o que fizemos até
agora para termos uma ideia do que nos pode acontecer, e somos ainda
crianças. E depois lembro-me da sonda Pioneer 10, com aquela célebre
imagem de um homem e de uma mulher a saudar o Universo, a vaguear
sozinhos pelo espaço. Daqui a 75 milhões de anos talvez seja só
isso que resta de nós, e talvez uma nova espécie habite este
planeta e nos coloque, anónimos, num museu de história natural, sem
saber sequer de que cor era a nossa pele.
Estou triste. Sei que é estúpido
sentir-me assim, mas é como me sinto. E por falar em amigos que
morreram, queria perguntar-te, Will, se as coisas eram diferentes no
teu tempo, se éramos mesmo feitos da mesma matéria que os sonhos. É
que parece que hoje somos apenas pesadelos, Will, daqueles que nos
afastam do mundo e nos metem uma puta de uma agulha no braço e nos
deixam estendidos numa casa-de-banho. Sozinhos numa casa-de-banho aos
46 anos com uma puta de uma agulha no braço, Will.
E não compreendo. A sério que não
compreendo.
sábado, 1 de fevereiro de 2014
MAIS DO MESMO
Quando Descartes, que não era
estúpido, escreveu: «o bom senso é a coisa que no mundo está mais
bem distribuída, porque cada um pensa estar tão bem dotado dele,
que até mesmo aqueles que dificilmente se contentam com qualquer
coisa não costumam desejar mais do que aquele que possuem», não
estava, de certeza, a pensar em mim (nem na economia das palavras).
Cedo substitui o «conhece-te a ti
mesmo» pelo «desconfia de ti mesmo», prática que me leva sempre a
fazer exactamente o contrário daquilo que o meu bom senso determina.
Creio que tudo começou ainda na
primária, na altura em que os problemas matemáticos envolvem regularmente uma história absurda, do género: «o João bebe dois litros de
whisky por dia e só tem em casa copos de 20 centilitros», etc. A
perda de fé na minha capacidade de julgamento começou com uma coisa
parecida: a professora anunciou à turma que o problema era complexo
e que por isso cada aluno deveria escrever a resposta num papel,
ir até ela e mostrar-lha, o que logo me fez sorrir e
pensar na eminente vitória que me aguardava.
Desta vez uma mãe tinha feito um bolo
e cortado três fatias para os seus três filhos: ao João (que
acabou mais tarde a beber dois litros de whisky por dia) coube uma
fatia de 100 gramas, ao Jorge uma de 1000 decagramas e ao José uma
de 10000 centigramas, e a pergunta era a única possível: qual
deles tinha ficado com a maior fatia? Não havia dúvidas, não só a
senhora tinha uma obsessão com nomes começados por J como,
obviamente, tinha calhado ao jovem José uma fatia de bolo enorme. Escrevi
o nome no papel, levantei-me e mostrei-lhe orgulhoso a minha
resposta,
- Errado.
Os meus colegas levantavam-se e iam até
ela. Todos regressavam com o peso desse
- errado
para a carteira.
«Deve ser uma rasteira», pensei.
Escrevi «João», num papel e voltei a levantar-me,
- errado.
À minha volta havia olhares tão
confusos como o meu.Mas como só sobrava uma resposta adiantei-me a
toda a gente e não quis saber de lógica e pensamentos racionais, o
que só me enfureceu mais quando a ouvi dizer,
- errado
depois de ter lido o nome «Jorge» no
papel.
Tudo aquilo me baralhava. Três
respostas possíveis e todas erradas. É nessas alturas em que nos
afastamos do instinto e percebemos que só pela análise absoluta das coisas podemos chegar à verdade. O João, o Jorge e o
José, três fatias de bolo e nenhuma é maior do que a outra, qual
poderia ser a resposta? E foi então que percebi o óbvio, a resposta
mais simples de todas e ninguém a tinha compreendido. Levantei-me
orgulhoso, encaminhei-me para a professora e entreguei-lhe o papel
com a minha última resposta. Quem tinha ficado com a fatia de bolo
maior? A mãe, obviamente
Não sei quantos anos se passaram,
demasiados, se pensar no assunto. Mas não me esqueço daquele olhar,
aquele abanar da cabeça dela como se dissesse: «não há nada a fazer, este é um caso perdido».
E é fácil perceber por que razão faço desde esse dia o contrário
daquilo que o meu bom senso me diz para fazer. E desde esse dia que
mantenho uma luta permanente dentro de mim. E desde esse dia que... Ainda agora, por exemplo,
disse para mim mesmo:
- Miguel, está frio, estás
cansado, tens de trabalhar, vamos ficar em casa.
Adivinhem o que vou fazer.
terça-feira, 28 de janeiro de 2014
FANTASIA EM DÓ MENOR
Deus, o destino ou o universo, um deles
deve ter um sentido de humor apurado quando se lembra de interferir
na minha vida. Sou daqueles que quando têm pressa em sair de casa
descobrem muito tempo depois as chaves do carro no congelador, ou dos
que se lembram um dia de comprar uma "raspadinha" para ver a velhinha
do lado, que entrou dez segundos depois, ganhar o jackpot.
Os
outros olham para isto e chamam-lhe coincidências ou distracções,
incapazes de compreenderem a presença de uma mão metafísica que
me esconde as coisas ou que impede que as velhinhas andem com passo
apressado.
A única pessoa que
algum dia compreendeu esta situação, e que a declarou como um facto
indesmentível e não uma paranóia egocêntrica, foi o meu médico,
o doutor Diogo Dingo que, soube hoje, morreu no final de Dezembro do
ano passado. Cancro, claro.
Dentro dessa classe
de curandeiros, foi o único com quem alguma vez consegui comunicar,
não só isso, mas o único que encontrava realmente soluções práticas
e eficientes para os meus problemas. Odeio médicos. Disfarçam
sempre a incompetência com uma desculpa qualquer: os cigarros,
o Mcdonald's, o não participarmos na maratona; tudo lhes garante a impunidade. Uma vez fui
a uma consulta de rotina com a nova médica de família e apareceu-me
à frente uma rapariga que nem sequer era bonita, passou o tempo a
fazer-me perguntas parvas do género:
- O senhor bebe?
- Hmm... Sim...
- Porquê?
Nunca mais a vi.
Com o doutor Diogo Dingo as coisas nunca foram assim. Quando andava ansioso e com
palpitações, disse-me para passar a beber os cafés sem açúcar,
noutra vez, acometido de uma tosse permanente e de um cansaço
ofegante, recomendou-me tabaco de enrolar sem aditivos, e quando me
queixei de uma crónica indisposição matinal, receitou-me Canadian
Club e proibiu-me aquilo que ele chamava «zurrapa martelada»,
quer viesse da Escócia, dos Estados Unidos ou da Irlanda.
Um dia sentei-me no
consultório e depois dos habituais cumprimentos disse:
- Doutor, não
me consigo integrar. Não falo com ninguém.
- Vá dar aulas.
E fui.
Tenho razão quando digo que deus, o destino ou o universo, um deles deve ter um sentido
de humor apurado quando se lembra de interferir na minha vida, porque
no mesmo dia em que soube da morte deste meu amigo, sou obrigado a
estar aqui a corrigir testes que não acabam enquanto o meu
computador, neste lugar morto de internet, teima em fazer surgir no canto inferior direito do ecrã
uma mensagem intermitente que diz:
- you are not
connected.
segunda-feira, 27 de janeiro de 2014
VOZES DO PASSADO
«Toda a gente se queixa da sua
memória, mas ninguém se queixa da sua inteligência». Eu lembro-me
de cada vez menos coisas e estou progressivamente convencido de que
tenho razão em tudo, o que pela velha máxima de La Rochefoucauld
faz de mim um cretino igual a tantos outros.
Quando temos vinte anos a vida parece
um enorme caderno em branco a preencher com sucessos, amores e
algumas dificuldades, que por sermos obviamente especiais
transformaremos em vitórias. Depois os anos passam e todo o passado
se resume a uma vaga ideia do que aconteceu, uma recordação geral
de uma série de acontecimentos particulares que nunca conseguimos
controlar. Chama-se viver. Vamos andando em frente deixando muitas
coisas para trás, e nem sequer pensamos nisso.
As conversas sobre quem somos vão
desaparecendo porque a dada altura já não precisamos de ir jantar
fora ou ir beber um copo a um bar para ir para a cama com alguém.
Deixamos de nos apaixonar e deixamos de falar sobre o que nos
aconteceu porque todas as pessoas à nossa volta ou já conhecem as
histórias ou estavam lá presentes quando elas aconteceram. Ficamos
cada vez mais sozinhos e com isso já não falamos sobre nós, sobre
como chegámos até aqui. Conversamos sobre o presente, o dia-a-dia.
Actualizamos os que estão à nossa volta sobre o que nos acontece
com a regularidade de um jornal, diário ou semanário, e quando as
amizades nos afastam alguns meses, somos uma espécie de revista
trimestral, que deixa de lado a espuma dos dias e se concentra nos
grandes acontecimentos e mudanças que possam ter ocorrido, mesmo que
não tenha acontecido nada.
Mas há sempre um dia – que estranho
– em que encontramos um rosto familiar na rua, de um velho amigo ou
de uma mulher que amámos, e por uns instantes parece que o tempo não
é uma linha contínua mas uma fita de Moebius, que estamos no mesmo
sítio onde estávamos há não sei quanto tempo e que o passado
afinal estava mesmo ali ao nosso lado, tão nítido como no dia em
que o vivemos.
Mas é diferente, não é?
E depois de três sorrisos e quatro
gargalhadas vem o silêncio, um silêncio que diz que não sabemos
com quem estamos a falar, que a pessoa que conhecemos está
diferente, está velha, e que por isso também nós devemos estar
diferentes e velhos. E então perguntamos: «o que é que
aconteceu?».
Mas não é assim. Isto não é nada.
Isto sou eu a preparar-me para o que vou escrever a seguir.
Já era de madrugada e eu ia trabalhar numa peça que estou a escrever, apesar de te ter dito que estava a corrigir testes.
Depois ouvi a tua voz a dizer: «fala comigo». E eu falei como se
não houvesse silêncios entre nós.
sábado, 25 de janeiro de 2014
THE ACT OF ACTING
Passou quase um ano, e foi estranho
sentar-me a ver onde é que estavas quando te vi pela última vez,
uma curta peça que escrevi para a Lídia e à qual falta um ponto de
interrogação no título, como muito bem observaram alguns
entendidos.
Não
gosto de ver em cena o que escrevo. Fico sempre a olhar para o
público, para a reacção das pessoas, oscilo entre Eros e Tanatos
consoante os sorrisos ou os bocejos das pessoas. Mas foi bom ver a
sala cheia e quase todas as pessoas de pé no final, é uma sensação
agradável, mesmo que as palmas não sejam para mim, mesmo que não
saibam quem eu sou.
Já
não ouvia o texto há quase um ano, e ontem, numa espécie de ensaio
geral possível, senti-me na pele de um espectador desatento que não
sabe onde está. Não reconheci as palavras, não sabia o que ia
acontecer, qual a sequência das ideias e como elas se ordenavam umas
à frente das outras.
É
quase incestuoso gostar de uma coisa que escrevi e não me lembrar de
a ter escrito.
Quase
nem me lembro que estivemos um mês em cena no ano passado, no Teatro
Rápido.
Foi o único texto que escrevi em que não fui acusado de misoginia.
Foi o único texto que escrevi em que não fui acusado de misoginia.
A
acção, que eu julguei simples, trata de uma mulher que prefere
sonhar com a materialização do amor da vida dela numa fotografia do
que a viver a realidade. As histórias que vai inventando servem para
não estar sozinha nessa repetição, mas com isso perde-se na sua
própria alteridade porque o mundo do “faz-de-conta” é, afinal,
tão real quanto a vida (algumas crianças que assistiram ao
espectáculo não tiveram qualquer dificuldade em perceber o texto,
ao contrário de muitos adultos, que se baralhavam e perdiam nas
muitas efabulações da personagem).
Acho que onde é que estavas quando te vi pela última vez é sobre as pessoas e sobre o teatro.
Acho que onde é que estavas quando te vi pela última vez é sobre as pessoas e sobre o teatro.
silêncio
E
estamos sozinhos a inventar histórias, estamos sempre sozinhos a
inventar histórias, acho que foi isso que quis dizer.
silêncio
Mas
não era isto que eu queria dizer. O que eu queria dizer é que ainda
podem ver a Lídia a dizer as minhas palavras amanhã (hoje), pelas
22h40 no Espaço Evoé (rua
das Canastras, nº 36, Lisboa).
terça-feira, 21 de janeiro de 2014
O QUE FICA NO FINAL?
Enquanto
o país se afoga devagar, vamos conversando nos cafés sobre o que
verdadeiramente nos apoquenta: a co-adopção, a bola de ouro e a
comenda do Cristiano Ronaldo, ou a ida de Eusébio para o Panteão.
Pelo meio, atiramos uns insultos a Passos Coelho e Portas, olhamos
para a lista dos Oscars deste ano (ou para a dos Prémios Nova Gente)
e distraímo-nos da forma que mais nos agrada, seja com a telenovela
ou com o último comentário de José Gil num jornal de referência.
Mas no final do dia olhamos para o lado com a sensação de que nos
está a escapar aquilo que é importante.
No
sábado fui finalmente ver Sea Wall (Um
Precipício no Mar) de Simon
Stephens. Conheci-o há uns anos quando ele veio ver, creio, o último
dia de Harper Regan no
TNDMII. Por esta altura eu deveria contar uma história divertida que
nos tivesse acontecido aos dois, transmitia uma suposta
cumplicidade entre ambos e implicitamente teria a autoridade para
dizer as maiores baboseiras sobre ele. Mas tal não aconteceu.
Falámos no máximo uns cinco minutos antes e depois do espectáculo:
eu elogiei-lhe o texto e ele elogiou-me Lisboa como se eu fosse
responsável por alguma parte do destino urbanístico da cidade, e
foi apenas isso.
Na
altura andávamos à procura de textos inéditos em português, e o
Luís Barros, que fazia a assistência de encenação e que foi o
responsável por este breve encontro, contactou-o uns dias ou meses
mais tarde e o simpático Stephens lá nos mandou a sua obra completa
por e-mail. Foi assim
que li Sea Wall. Na
altura ainda falámos em comprar os direitos da peça, mas nunca o
fizemos.
A
personagem única, Alex, já nem sequer é um homem, é uma coisa
destruída. A morte da filha de oito ou nove anos estilhaçou-o mais
do que uma bala de canhão. Mas isso ele só dirá no final. Tal como
nós, Alex vai falando de outras coisas, de fotografias, de
matemática, de Deus, do mar.
Tenho
andado nestes dias a pensar no espectáculo e na peça, na pena que
tenho de não a ter traduzido, nos silêncios e no olhar do actor
(João Meireles) e na dúzia de pessoas que estavam presentes no
Mirita Casimiro, cinco delas da casa.
E
também não sei se é isto que é importante, quando à noite olho
para o lado não está lá ninguém.
quinta-feira, 16 de janeiro de 2014
UM SEGUNDO ANTES
Estreou ontem as you like it, no
São Luiz, uma daquelas peças de Shakespeare que pela simplicidade
do título divide os tradutores de tal forma que mais vale
referirmo-nos a ela no original. Fui no dia anterior ao ensaio geral
e profetizo que conhecerá um merecido sucesso entre crítica e
público. Luísa Cruz arrasa como Touchstone e o restante elenco
corresponde de acordo com o talento individual de cada um. Quanto ao
resto, tudo funciona.
Shakesepeare era um génio da palavra e
do pensamento, mas também era um dramaturgo consciente dos gostos do
público, não só do isabelino, mas do ser humano no geral. as
you like it seria hoje muito provavelmente uma comédia romântica
de Hollywood e um garantido sucesso de bilheteira; e é sempre
agradável ver um Shakespeare “descomplicado”, em que o que
importa são os actores e o texto, e não as cabriolas da encenação.
No mesmo dia, na escola, dois
exercícios a partir de Brecht, o que diz sim e o que diz
não. A história, baseada num texto do Teatro Noh, é muito
curiosa: uma expedição de professor e alunos parte numa viagem
pelas montanhas em busca de medicamentos para a peste que se instalou
na cidade. Um dos alunos é demasiado jovem mas insiste em acompanhar
o professor porque a sua mãe está doente. No topo da montanha
começa a demonstrar sintomas de que também ele está doente e os
outros deparam-se com um problema: sendo impossível fazê-lo
transpor a montanha, deverão abandoná-lo ou voltar para trás,
carregando-o de volta? A pergunta é feita directamente ao jovem,
relembrando-o que a tradição dita que ele deve estar preparado para
arcar com as consequências, ou seja, que deve aceitar ser
abandonado. Em o que diz sim, o jovem é atirado para o abismo
para não morrer sozinho, em o que diz não, ele recusa-se a
ser sacrificado e convence os restantes a voltar para trás. Escusado
será dizer que nos identificamos mais com o que diz não do
que com o que diz sim. Somos contra a tradição quando ela é
irracional, somos contra a regra quando ela é injusta.
Voltemos a as you like it porque
também aí as personagens têm de fazer escolhas, e dizem que sim e
dizem que não. Dizem que não à injustiça, à tirania e aos
opressores e dizem que sim ao perdão, à amizade e ao amor (excepto
Jaques – que mesmo aqueles que nunca leram/ viram a peça o
conhecem do discurso: «all the world's a stage» – tem de haver
sempre alguém à parte para que os outros estejam unidos). E é
curioso ver como Shakespeare nos conhece tão bem, como continuamos
iguais, como continuamos a insurgir-nos contra a tirania, a preferir
o exílio à derrota (não será isso que os nosso jovens emigrantes
estão a fazer?), ao mesmo tempo que seguimos a mais antiga de todas
as tradições: em última análise estamos aqui para tentar alcançar
a felicidade, e o amor parece continuar a ser o caminho mais curto
para lá chegar.
Continuamos a dizer que sim e a dizer
que não, as we like it (excepto Jaques).
quarta-feira, 15 de janeiro de 2014
UM SEGUNDO DEPOIS
A escrita é uma droga que sei evitar. Sou como aqueles yuppies dos anos 80 e 90 que tanta matéria deram a Brett Easton Ellis e derivados: uso e abuso, mas nunca vou parar à sarjeta; um belíssimo adágio, se rimasse.
Gosto pouco dos que dizem em entrevistas que se não escrevessem morreriam, e menos ainda dos líderes do campeonato-do-número-de-páginas-publicadas-por-ano. Escrevem tanto que namoram as esferográficas, e com certeza encontram nelas tudo o que necessitam para descobrirem o prazer auto-erótico. Desprezo-os, a eles, aos livros deles e aos leitores dos livros deles.
A escrita prosaica, cronista, em muito autobiográfica, é a pior das drogas. Um dia sem escrever não é uma necessidade insatisfeita nem o desespero do papel em branco, um dia sem escrever é um dia que não aconteceu, uma ausência de significado, uma perda de tempo.
Felizmente nunca conheci dias desses. Há sempre alguma coisa a acontecer na minha vida, sou vítima do inesperado. Hoje, por exemplo, numa espécie de tribunal de pequeníssima instância, tentava que finalmente alguém me pagasse o arranjo do carro depois de mo terem espatifado há quase um ano. Havia muito por onde escolher: o juiz, um ancião janota, o meirinho, uma espécie de comentador desportivo sofisticado, e os dois advogados (eu representava-me a mim próprio), ela, que parecia ambicionar ter sido um dia acessora de Coco Channel, e ele, que apesar da postura à Perry Mason, dava mais ares de ter vindo de uma banca de frangos da feira de São Mateus. Mas o vencedor foi a testemunha chave, o condutor do veículo A: hirto, suado, nervoso do queixo às unhas, que mal se senta se dirige ao juiz,
- eu quero dizer neste...
Hesita, ia dizer "tribunal", mas estamos numa sala vulgar, mesas, cadeiras e uns carrinhos de brincar em cima de estradas coloridas feitas de polyester. Continua,
- eu quero dizer nesta cerimónia...
Interrompe-se porque todos riem muito, eu também.
Mas não foi bem assim que aconteceu, nem foi isto que me aconteceu hoje. As banalidades parecem sempre interessantes quando narradas com sarcasmo.
Então o que é que realmente me aconteceu hoje? O que é que eu vivi? O que é que aprendi?
E ontem, que nem escrevi nada?
Ontem foi muito diferente. mas só amanhã falarei sobre isso.
segunda-feira, 13 de janeiro de 2014
WEAPON OF CHOICE
Nunca escrevi a canivete, nem nas mesas nem nas árvores. Aliás, uma das coisas que mais estimei na vida foi uma máquina de escrever que a minha mãe me ofereceu quando eu tinha uns 16 anos. Ainda por cima não era uma máquina de escrever qualquer, era uma smith corona com um pequeno processador de texto incorporado que permitia escrever umas mil palavras que depois eram dactilografadas automaticamente, com margens justificadas e tudo - tecnologia de ponta, portanto.
Até essa altura escrevia à noite sentado na secretária do meu quarto. Escondia os papéis rabiscados e no dia seguinte tentava decifrar a minha própria caligrafia. Achava que uma máquina de escrever me daria a autoridade de um escritor, mas depressa percebi que, neste campo, as coisas nunca seriam simples. Para começar, o anúncio de "ultra-silenciosa" era manifestamente publicidade enganosa, a madrugada e os vizinhos que o digam. E depois, bom, digamos que o desafio de conseguir escrever uma frase sem falhar uma única tecla raramente foi alcançado. Lembro-me sobretudo da imensa desilusão que senti quando pousei pela primeira vez a minha smith corona na secretária. Tinha a certeza que de imediato me sairia a imortalidade pelos dedos, mas não saiu nada.
Os anos seguintes foram um pouco mais produtivos, comecei romances, contos, poemas e guiões. Acho que nunca acabei nenhum. Um dia peguei nessa "obra incompleta" e mandei tudo para o contentor, um gesto a puxar para o dramático, mas que eu defendi como uma necessidade de começar do zero.
Depois vieram os computadores. Primeiro as "torres" e depois os portáteis, quatro no total. Não sei quantos milhares de páginas perdi desde que comecei, mas para terem uma ideia, só descobri o dropbox há dois anos e nunca soube o que era um backup, e talvez nem seja preciso um bom psicólogo para explicar as razões deste desleixe.
Lembrei-me disto tudo por duas razões, primeiro porque estou a escrever este texto num pequeno aparelho a que se designou iPhone, segundo porque estou a trabalhar num texto, camilo e fanny (1957) sobre o trágico triângulo amoroso entre Camilo Castelo Branco, Fanny Owen e José Augusto Pinto de Magalhães. Não é o trabalho em si nem a acção da peça que vêm ao caso, antes o facto de ter descoberto que a autora, Manuela de Azevedo, de 104 anos, ainda escreve.
De maneira que quando a encontrar em Fevereiro, a ver se não me esqueço de lhe perguntar se também tem uma smith corona, é que eu ando com saudades da minha e nem sei onde está.
sábado, 11 de janeiro de 2014
ESTÁ FRIO E NÃO ME APETECE TRABALHAR
Escrever num blog deve estar tão fora de moda como beber black russians, ser de direita ou ouvir Tom Jobim. Mas eu nunca fui de modas, até rapei a barba depois de ter lido num artigo qualquer, daqueles que se encontram no facebook, que a barba de três dias era a moda do ano. E por falar em facebook, não têm saudades dos tempos em que tínhamos tempo para ler qualquer coisa com mais de uma frase? Já é mau que os livros se tenham tornado numa espécie de objecto de decoração com que se preenchem estantes, mas passar a vida a pôr gostos em banalidades que quase sempre acabam em reticências...
Não sei mesmo o que é que vai sair daqui, se calhar fecho isto para a semana, mas não sei porquê lembrei-me de um ano sísifo do Edgar Morin e decidi (re)começar.
Portanto, sem respeitar o novo acordo ortográfico nem todos os instintos do meu corpo que me dizem para não fazer isto: «"well, I'm back", he said», como disse o Tolkien no final do the lord of the rings.
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