sábado, 25 de junho de 2016

THE END

Entretanto não morri e é estranho não ter morrido porque, às vezes, nos ensaios, começava a achar que eu era um fantasma e que os estava a ouvir dizer,
– ele morreu,
sem saber que eu tinha morrido mesmo. Começava a achar que eu era um fantasma que se recusava a ir embora até a peça estrear. Mas afinal estou aqui, não me atirei da varanda nem da Boca do Inferno. Tudo continua igual.
Começo pelo princípio. A vida, parece-me, é cada vez mais aquela espécie de jogo de crianças onde temos de unir um ponto ao outro para que apareça um desenho. Olhamos para aquilo e não vemos nada, só uns números ao lado uns dos outros, só uns números distantes que parecem ser apenas números distantes, mas depois, começamos a uni-los e no final sai um girassol ou umas ondas com um barquinho ou outra coisa qualquer.  A vida, parece-me, é cada vez mais esse jogo de crianças em que unimos o 1 ao 17 e o 35 ao 92, e no fim olhamos para aquilo e parecesse apenas com um monte de riscos sem sentido, uma série de coisas que apenas estão ali, que não fazem sentido porque o 1 nada tem a ver com o 17 e o 35 vai dar ao 36 e não ao 92.
Continuamos.
Parei de escrever porque às vezes dá-me para não escrever. Fico a olhar para as teclas ou para o ecrã ou para o papel ou para a caneta. Ninguém percebe bem o que isso quer dizer, eu sentado à frente do computador com os phones nos ouvidos e o tempo a passar até ser de manhã. Ninguém percebe e eu também não sei explicar,
– então, não escreveste?
Ao terceiro dia parei de escrever, já não conseguia escrever uma palavra, já não conseguia escrever nada.  Já não estava com cabeça para inventar histórias, porque nas duas últimas crónicas era tudo mentira – desculpem – mas, percebem? – aquilo no Porto era tudo inventado, nada daquilo aconteceu. O David não me mandou foder, a peça já estava escrita há três meses e a Jani não andou  a pedir francesinhas às dez da manhã. Era tudo mentira porque eu achei que ia ter piada, mas depois percebi que não ia ter piada nenhuma, que não ia ter piada nenhuma as pessoas acharem que eu/
Parei. Fui à varanda fumar um cigarro. Gostava que estivesses agora ao meu lado, ia dizer-te uma coisa e tu ias rir-te com o que eu te ia dizer, ias rir-te daquela maneira, só tu é que te ris dessa maneira. Gosto quando te ris assim porque não consigo parar de sorrir quando te ris dessa maneira.
Agora já não sei onde ia, mas não interessa, entretanto percebi como isto acaba e acho que vais gostar como isto acaba.
Continuamos.
Estamos no Porto. No terceiro dia uma aluna da ACE vem ter à mesa onde estamos sentados e pergunta-me se fui eu que escrevi o se eu não fechar os olhos, pergunta-me se eu sou o Miguel Graça. Eu fico todo contente e digo que sim. Ela dá-me os parabéns e diz que adorou e eu pergunto-lhe como ela se chama. Ela diz-me o nome dela. Eu começo a rir e pergunto-lhe se ela quer um autógrafo. Estou a rir-me porque inventei uma competição entre a Jani e o David, por causa dos autógrafos, desde que chegámos que não podemos sair à rua sem que perguntem ao David onde é que anda o Hélder ou tratem a Jani por Dra. Marta,
(estava renhido 8 – 6, para a Jani)
– deves ser atrasado, tu,
disse a rapariga. E foi-se embora.
O David ri-se, são duas da manhã e estamos no Candelabro a beber um copo. O Daniel Worm foi-se embora e a Jani está a olhar para mim com ar de quem se quer ir embora dali.
No dia a seguir veio o Dinarte. E é estranho estar a escrever isto. Ele sabe porquê.
Do princípio: por esta altura era suposto eu estar morto, por esta altura era suposto eu ter morrido. Mas não morri nem estou morto. Às vezes o que escrevo não acontece, ou então demora a acontecer.
Continuamos no Porto, agora já não tem piada, mas vou contar na mesma. Era tudo mentira, ia escrever que o David deixava de me falar porque eu o mandava para o caralho, eu dizia-lhe assim,
– vais fazer esta cena assim?, então vai para o caralho,
e ele deixava de me falar porque eu o tinha mandado para o caralho e telefonava às pessoas e dizia-lhes,
– ele mandou-me para o caralho,
e as pessoas davam-lhe razão e diziam que eu era um traste e um ingrato e uma besta, e que ele me devia dizer,
– não aturo mais as tuas merdas, estou farto de ti, estou farto que me dês cabo da cabeça com a merda dos teus textos de merda, estou farto de dar cabo da minha vida por causa de ti – sabes quantas vezes já dei cabo da minha vida por tua causa?,
e que a Jani engordava dez quilos em três dias e que eu a chamava de porca gorda enquanto ela continuava a comer francesinhas até não haver amanhã e eu aos gritos,
– Jani, pára de comer, estás a ficar uma baleia,
e o Dinarte ameaçava que me dava um excerto de porrada, que me deixava todo partido no meio do chão enquanto me segurava pelos colarinhos de madrugada no Plano B e que o Daniel desistia do projecto porque eu não conseguia acabar o texto.
Agora não tem piada nenhuma. Agora já não tem piada nenhuma. Agora já viemos do Porto e já fizemos o espectáculo. Agora já acabou. E estou para aqui sozinho a escrever isto e apetece-me ir ter com eles.
Não sei.
A Jani falou em família no outro dia. É a segunda vez que isso acontece em peças minhas e acho que é isso que quero que aconteça sempre.
A sério que não sei. Acho que chegamos a esta altura, a meio da vida se tivermos sorte, e começamos a tentar perceber como é que chegámos aqui, e como não fazemos a mínima ideia de como chegámos aqui, começamos a achar que o problema foi não termos pensado nisso, foi não termos pensado nas coisas, foi termos deixado que as coisas acontecessem sem pensar que podiam acontecer de outra maneira. Depois achamos que daqui para a frente vai ser diferente, que vamos controlar tudo, mas não controlamos nada.
Hoje não conseguia dormir. Estou habituado, às vezes acho que não durmo, que apenas caio inconsciente ou desmaio de cansaço porque não aguento mais. Às sete da manhã estava a olhar para o relógio e a pensar,
– são sete da manhã, o que é que estou a fazer acordado às sete da manhã?,
depois consegui adormecer e sonhei contigo. No meu sonho tudo isto fazia sentido e caminhava para um único lugar. E tudo fazia sentido. Tudo fazia mesmo imenso sentido. Achas que tudo isto está a caminhar para um único lugar mesmo que seja muito distante?
Vou confessar-vos uma coisa que só algumas pessoas perceberam, a peça chamava-se Minotauro porque é assim que eu vejo as pessoas, como elas se sentem, como um minotauro, metade uma coisa e metade outra, ao mesmo tempo monstros e ao mesmo tempo humanos, sem saberem bem quem são, encerradas nas paredes de um labirinto sem saída, sem família, sem pai, sem mãe. Sem saberem a que sítio pertencem. Sem amor. Apenas a solidão de um labirinto de onde não se pode sair. Apenas as paredes e o minotauro a gritar,
– quero sair daqui.
Na estreia ficámos abraçados muito tempo depois de acabar. Ela estava a chorar e eu nem sei como aguentaste, desculpa. Depois, no último dia mandei-lhe uma mensagem. Escrevi-te,
– Não queres vir hoje ao último dia? No fim fugíamos os dois para qualquer lado longe daqui e éramos felizes para sempre. Era um bom final.

E, desculpa, mas é um bom final. É mesmo um bom final.

quinta-feira, 9 de junho de 2016

MINOTAURO (2)

O segundo dia correu melhor. Acho que correu melhor. Levantámo-nos às dez da manhã, o que foi óptimo porque já não dormia três horas seguidas numa cama há mais de uma semana. O David bateu à porta, abriu a porta e disse,
– são dez da manhã, são horas de acordar, li a tua crónica e sei que te deitaste tarde, mas são horas de acordar, estás acordado?, quero dizer-te uma coisa, acho que ontem exagerei, desculpa ter exagerado,  não queria ter exagerado, mas ontem estava mal e precisava de te dizer aquilo, precisava de te mandar foder, acho que me fez bem.
Eu estava ainda de olhos fechados, estava a sonhar contigo, estava a sonhar que tu me batias à porta e dizias,
– vou atirar-me da janela,
e eu dizia,
– não te preocupes, eu apanho-te.
Saímos os três e achamos que vai ser bom tomar o pequeno-almoço numa esplanada. Sentamo-nos. Vem a empregada. Eu quero um croissant misto e uma meia de leite, o David acende um cigarro e diz que não quer nada e a Jani diz,
– quero uma francesinha e uma bifana,
eu olho para ela e ela diz,
– o que é que foi?, tenho fome.
Eu digo que não disse nada e a empregada diz-me,
– vocês parece que me andam a perseguir,
– hã?,
digo eu.
– Viemos ontem juntos no comboio, eu reparei neles por causa da novela, e agora estão aqui a tomar o pequeno-almoço,
ela diz isto e não pára de olhar para mim, eu digo-lhe que isso deve ser um sinal e o David desata-se a rir. A Jani diz,
– a sério?,
e eu digo-lhe que estamos a ensaiar uma peça, que eu sou escritor, que eu escrevi uma peça para eles e que estamos no Porto a ensaiar, que estreamos para a semana em Lisboa.
– Eu adoro escritores,
diz ela,
– são misteriosos,
diz ela. Depois a Jani olha para ela e diz que está cheia de fome e ela pede desculpa e vai-se embora. É uma gorda quem traz a seguir o croissant e o resto das coisas.
Os ensaios estão a correr bem. Eles perguntam-me muitas vezes,
– o que é que isto quer dizer?
ou,
– quando é que acabas esta cena?,
e eu olho para a peça e digo,
– não sei,
ou então apenas não digo nada. Acho que está a correr bem.
À noite jantamos todos juntos, eu, a Jani, o David e o Daniel Worm, que assistiu ao ensaio da tarde e que me disse,
– já tens pouco tempo para acabar o texto, estreias para a semana.
E eu sei que tenho pouco tempo. E acho – não sei – que estou preocupado. Estou preocupado comigo e com o texto. Acho que não é uma questão de as pessoas perceberem, acho que é uma questão de eles perceberem. Acho que se eles perceberem o que eu quero dizer, tudo vai correr bem.
Acho que tenho de me concentrar. Acho que tenho de me focar. Não ando bem.
À noite vamos a um bar que tem um balcão que parece o do Ray’s,
– ficamos aqui,
digo eu. Eles estão preocupados porque o texto não está completo e porque faltam as músicas. Eu digo para eles não se preocuparem, eu digo que o melhor é fazermos um brinde, que tudo vai correr bem. Mais tarde, ao nosso lado, no Candelabro (que é outro bar) ouvimos um tipo dizer a outro tipo que ele continua com vontade de descarregar tudo em cima de alguém, ele diz que precisa de descarregar o que sente em cima de alguém, que hoje vai engatar uma gaja e descarregar tudo em cima dela,
– apetece-me foder uma gaja até a partir aos bocados, apetece-me foder uma gaja com tudo o que sinto, com tanta raiva que a mande para o hospital, vou fodê-la tanto que a vou deixar toda partida nas urgências, acho que é isso que quero fazer, rebentar com ela até não poder mais,
nós ouvimos o que ele está a dizer, e mesmo ele estando bêbado dá vontade de rir e por isso começamos a rir. Se calhar não devíamos rir. A Jani não se ri. A Jani olha para nós e diz que vai para casa, que está farta de estar ali. O David vai também. São duas da manhã,
– estou cansado,
diz ele, e vai com ela. Eu estou à espera que a rapariga que adora escritores misteriosos apareça à minha frente para eu meter conversa. Mas ela não aparece. Não tenho sono. Não quero ir para casa, até porque estou muito longe de casa. Eles voltam-se para trás ao fundo da rua, olham para mim e acenam um adeus. Eu não reajo. Apenas fico ali, sozinho, à espera que alguém me salve de mim próprio.

quarta-feira, 8 de junho de 2016

MINOTAURO (1)

Isto vai ser difícil. E por isso corremos, corremos porque temos de correr, porque se não corrermos o comboio há-de partir sem nós e nós havemos de ficar onde estamos e nós não queremos ficar onde estamos, parados ao lado uns dos outros, com as malas nas mãos e o comboio a partir sem nós e nós com aquela sensação de que tudo está a correr mal, que há sempre um semáforo vermelho ou uma velhinha que atravessa com dificuldade a passadeira, e que ambos são responsáveis por estarmos parados a olhar uns para os outros enquanto o comboio partiu sem nós. Mas isso não aconteceu. Quase aconteceu, mas não aconteceu. E mesmo tendo o David adormecido, mesmo tendo a Jani furado um pneu e mesmo tendo eu achado que era boa ideia procurar em todas as bombas de gasolina a única marca de tabaco que ainda consigo fumar, a verdade é que conseguimos encontrar-nos os três à entrada de Santa Apolónia quando faltava um minuto para o meio-dia. E por isso corremos. Corremos porque não queremos ficar aqui, queremos ir para o Porto porque mesmo sendo aqui ao lado, o Porto é muito longe, e nós queremos ir para muito longe.
Durante a viagem a Jani tira-me uma fotografia. Não falamos muito. Estamos cansados. Ontem foi uma noite complicada, parece que todas as noites, de uma maneira ou de outra, na rua ou em casa, são complicadas. Eu publico no facebook a fotografia que a Jani me tirou, escrevo,
- fuck happiness,
e espero que percebas o que quero dizer, espero que percebas que o que quis dizer foi,
- que se foda a merda da felicidade porque parece que não tenho direito a ela,
espero que tenhas percebido isso, que foi isso que quis dizer.
Durante a viagem levamos com um casal com uma criança aos berros. O David adormece e acorda de trinta em trinta segundos. A Jani diz-me que cheira mal, que cheira muito mal, está de costas e não percebe que os pais estão a mudar a fralda da criança mesmo ali atrás dela, e eu dou por mim sem saber se quero matar os pais, a criança ou a mim mesmo.
Chegamos ao Porto e o Daniel Worm está à nossa espera. Vamos até à Mala Voadora, onde vamos ficar até Domingo, e como se fôssemos parolos que chegam ao Porto, assim que pousamos as malas, vamos comer uma francesinha.
Estamos cansados mas ainda fazemos um ensaio. Estamos com problemas com a primeira cena, parece que não está a resultar, parece que todos sabemos o que tem de acontecer para que resulte mas que ninguém consegue dizer o que falta ou o que está a mais. Repetimos a primeira cena. Corrigimos e marcamos. Eles estão exaustos e só ensaiamos a primeira cena.
Vamos às compras e jantamos em casa. Estamos na varanda a falar sobre a primeira cena. A discutir a primeira cena. Depois vamos ao Maus Hábitos. Eu tiro uma fotografia e a Jani pergunta-me,
- porque é que estás a tirar uma fotografia?
O Daniel Worm já não está connosco, estamos só os três, Ele vem ter connosco amanhã ao almoço. A Jani pergunta,
- o que é que estás a fazer?,
eu digo,
- nada,
digo que não é nada mas não é verdade, e a Jani,
- o que é que estás a fazer?,
enquanto eu olho para ela e para o telemóvel e digo,
- nada.
O David levantou-se, está todo fodido. Olho para ele e percebo que tudo nele está mal, que tudo está ao contrário, que ele já quase não sabe quem é, parece que a vida dele é apenas o que eu escrevi, que ele é apenas uma personagem a quem eu fodi a vida. Eu digo-lhe que tudo vai correr bem. Digo-lhe,
- David, vai tudo correr bem.
 Ele diz-me,
- vai-te foder,
sem sequer hesitar, diz-me,
- vai-te foder,
enquanto a Jani se levanta e lhe pega na mão e o leva para longe e lhe diz,
- não vale a pena.
Depois voltamos para casa, que não é a nossa casa porque não estamos em casa, estamos no Porto, na Mala Voadora, eles num quarto e eu noutro. Não falamos. Eles vão dormir e eu fico acordado. O tempo passa e eu continuo aqui até o Sol nascer e ser de manhã.