sábado, 25 de junho de 2016

THE END

Entretanto não morri e é estranho não ter morrido porque, às vezes, nos ensaios, começava a achar que eu era um fantasma e que os estava a ouvir dizer,
– ele morreu,
sem saber que eu tinha morrido mesmo. Começava a achar que eu era um fantasma que se recusava a ir embora até a peça estrear. Mas afinal estou aqui, não me atirei da varanda nem da Boca do Inferno. Tudo continua igual.
Começo pelo princípio. A vida, parece-me, é cada vez mais aquela espécie de jogo de crianças onde temos de unir um ponto ao outro para que apareça um desenho. Olhamos para aquilo e não vemos nada, só uns números ao lado uns dos outros, só uns números distantes que parecem ser apenas números distantes, mas depois, começamos a uni-los e no final sai um girassol ou umas ondas com um barquinho ou outra coisa qualquer.  A vida, parece-me, é cada vez mais esse jogo de crianças em que unimos o 1 ao 17 e o 35 ao 92, e no fim olhamos para aquilo e parecesse apenas com um monte de riscos sem sentido, uma série de coisas que apenas estão ali, que não fazem sentido porque o 1 nada tem a ver com o 17 e o 35 vai dar ao 36 e não ao 92.
Continuamos.
Parei de escrever porque às vezes dá-me para não escrever. Fico a olhar para as teclas ou para o ecrã ou para o papel ou para a caneta. Ninguém percebe bem o que isso quer dizer, eu sentado à frente do computador com os phones nos ouvidos e o tempo a passar até ser de manhã. Ninguém percebe e eu também não sei explicar,
– então, não escreveste?
Ao terceiro dia parei de escrever, já não conseguia escrever uma palavra, já não conseguia escrever nada.  Já não estava com cabeça para inventar histórias, porque nas duas últimas crónicas era tudo mentira – desculpem – mas, percebem? – aquilo no Porto era tudo inventado, nada daquilo aconteceu. O David não me mandou foder, a peça já estava escrita há três meses e a Jani não andou  a pedir francesinhas às dez da manhã. Era tudo mentira porque eu achei que ia ter piada, mas depois percebi que não ia ter piada nenhuma, que não ia ter piada nenhuma as pessoas acharem que eu/
Parei. Fui à varanda fumar um cigarro. Gostava que estivesses agora ao meu lado, ia dizer-te uma coisa e tu ias rir-te com o que eu te ia dizer, ias rir-te daquela maneira, só tu é que te ris dessa maneira. Gosto quando te ris assim porque não consigo parar de sorrir quando te ris dessa maneira.
Agora já não sei onde ia, mas não interessa, entretanto percebi como isto acaba e acho que vais gostar como isto acaba.
Continuamos.
Estamos no Porto. No terceiro dia uma aluna da ACE vem ter à mesa onde estamos sentados e pergunta-me se fui eu que escrevi o se eu não fechar os olhos, pergunta-me se eu sou o Miguel Graça. Eu fico todo contente e digo que sim. Ela dá-me os parabéns e diz que adorou e eu pergunto-lhe como ela se chama. Ela diz-me o nome dela. Eu começo a rir e pergunto-lhe se ela quer um autógrafo. Estou a rir-me porque inventei uma competição entre a Jani e o David, por causa dos autógrafos, desde que chegámos que não podemos sair à rua sem que perguntem ao David onde é que anda o Hélder ou tratem a Jani por Dra. Marta,
(estava renhido 8 – 6, para a Jani)
– deves ser atrasado, tu,
disse a rapariga. E foi-se embora.
O David ri-se, são duas da manhã e estamos no Candelabro a beber um copo. O Daniel Worm foi-se embora e a Jani está a olhar para mim com ar de quem se quer ir embora dali.
No dia a seguir veio o Dinarte. E é estranho estar a escrever isto. Ele sabe porquê.
Do princípio: por esta altura era suposto eu estar morto, por esta altura era suposto eu ter morrido. Mas não morri nem estou morto. Às vezes o que escrevo não acontece, ou então demora a acontecer.
Continuamos no Porto, agora já não tem piada, mas vou contar na mesma. Era tudo mentira, ia escrever que o David deixava de me falar porque eu o mandava para o caralho, eu dizia-lhe assim,
– vais fazer esta cena assim?, então vai para o caralho,
e ele deixava de me falar porque eu o tinha mandado para o caralho e telefonava às pessoas e dizia-lhes,
– ele mandou-me para o caralho,
e as pessoas davam-lhe razão e diziam que eu era um traste e um ingrato e uma besta, e que ele me devia dizer,
– não aturo mais as tuas merdas, estou farto de ti, estou farto que me dês cabo da cabeça com a merda dos teus textos de merda, estou farto de dar cabo da minha vida por causa de ti – sabes quantas vezes já dei cabo da minha vida por tua causa?,
e que a Jani engordava dez quilos em três dias e que eu a chamava de porca gorda enquanto ela continuava a comer francesinhas até não haver amanhã e eu aos gritos,
– Jani, pára de comer, estás a ficar uma baleia,
e o Dinarte ameaçava que me dava um excerto de porrada, que me deixava todo partido no meio do chão enquanto me segurava pelos colarinhos de madrugada no Plano B e que o Daniel desistia do projecto porque eu não conseguia acabar o texto.
Agora não tem piada nenhuma. Agora já não tem piada nenhuma. Agora já viemos do Porto e já fizemos o espectáculo. Agora já acabou. E estou para aqui sozinho a escrever isto e apetece-me ir ter com eles.
Não sei.
A Jani falou em família no outro dia. É a segunda vez que isso acontece em peças minhas e acho que é isso que quero que aconteça sempre.
A sério que não sei. Acho que chegamos a esta altura, a meio da vida se tivermos sorte, e começamos a tentar perceber como é que chegámos aqui, e como não fazemos a mínima ideia de como chegámos aqui, começamos a achar que o problema foi não termos pensado nisso, foi não termos pensado nas coisas, foi termos deixado que as coisas acontecessem sem pensar que podiam acontecer de outra maneira. Depois achamos que daqui para a frente vai ser diferente, que vamos controlar tudo, mas não controlamos nada.
Hoje não conseguia dormir. Estou habituado, às vezes acho que não durmo, que apenas caio inconsciente ou desmaio de cansaço porque não aguento mais. Às sete da manhã estava a olhar para o relógio e a pensar,
– são sete da manhã, o que é que estou a fazer acordado às sete da manhã?,
depois consegui adormecer e sonhei contigo. No meu sonho tudo isto fazia sentido e caminhava para um único lugar. E tudo fazia sentido. Tudo fazia mesmo imenso sentido. Achas que tudo isto está a caminhar para um único lugar mesmo que seja muito distante?
Vou confessar-vos uma coisa que só algumas pessoas perceberam, a peça chamava-se Minotauro porque é assim que eu vejo as pessoas, como elas se sentem, como um minotauro, metade uma coisa e metade outra, ao mesmo tempo monstros e ao mesmo tempo humanos, sem saberem bem quem são, encerradas nas paredes de um labirinto sem saída, sem família, sem pai, sem mãe. Sem saberem a que sítio pertencem. Sem amor. Apenas a solidão de um labirinto de onde não se pode sair. Apenas as paredes e o minotauro a gritar,
– quero sair daqui.
Na estreia ficámos abraçados muito tempo depois de acabar. Ela estava a chorar e eu nem sei como aguentaste, desculpa. Depois, no último dia mandei-lhe uma mensagem. Escrevi-te,
– Não queres vir hoje ao último dia? No fim fugíamos os dois para qualquer lado longe daqui e éramos felizes para sempre. Era um bom final.

E, desculpa, mas é um bom final. É mesmo um bom final.

quinta-feira, 9 de junho de 2016

MINOTAURO (2)

O segundo dia correu melhor. Acho que correu melhor. Levantámo-nos às dez da manhã, o que foi óptimo porque já não dormia três horas seguidas numa cama há mais de uma semana. O David bateu à porta, abriu a porta e disse,
– são dez da manhã, são horas de acordar, li a tua crónica e sei que te deitaste tarde, mas são horas de acordar, estás acordado?, quero dizer-te uma coisa, acho que ontem exagerei, desculpa ter exagerado,  não queria ter exagerado, mas ontem estava mal e precisava de te dizer aquilo, precisava de te mandar foder, acho que me fez bem.
Eu estava ainda de olhos fechados, estava a sonhar contigo, estava a sonhar que tu me batias à porta e dizias,
– vou atirar-me da janela,
e eu dizia,
– não te preocupes, eu apanho-te.
Saímos os três e achamos que vai ser bom tomar o pequeno-almoço numa esplanada. Sentamo-nos. Vem a empregada. Eu quero um croissant misto e uma meia de leite, o David acende um cigarro e diz que não quer nada e a Jani diz,
– quero uma francesinha e uma bifana,
eu olho para ela e ela diz,
– o que é que foi?, tenho fome.
Eu digo que não disse nada e a empregada diz-me,
– vocês parece que me andam a perseguir,
– hã?,
digo eu.
– Viemos ontem juntos no comboio, eu reparei neles por causa da novela, e agora estão aqui a tomar o pequeno-almoço,
ela diz isto e não pára de olhar para mim, eu digo-lhe que isso deve ser um sinal e o David desata-se a rir. A Jani diz,
– a sério?,
e eu digo-lhe que estamos a ensaiar uma peça, que eu sou escritor, que eu escrevi uma peça para eles e que estamos no Porto a ensaiar, que estreamos para a semana em Lisboa.
– Eu adoro escritores,
diz ela,
– são misteriosos,
diz ela. Depois a Jani olha para ela e diz que está cheia de fome e ela pede desculpa e vai-se embora. É uma gorda quem traz a seguir o croissant e o resto das coisas.
Os ensaios estão a correr bem. Eles perguntam-me muitas vezes,
– o que é que isto quer dizer?
ou,
– quando é que acabas esta cena?,
e eu olho para a peça e digo,
– não sei,
ou então apenas não digo nada. Acho que está a correr bem.
À noite jantamos todos juntos, eu, a Jani, o David e o Daniel Worm, que assistiu ao ensaio da tarde e que me disse,
– já tens pouco tempo para acabar o texto, estreias para a semana.
E eu sei que tenho pouco tempo. E acho – não sei – que estou preocupado. Estou preocupado comigo e com o texto. Acho que não é uma questão de as pessoas perceberem, acho que é uma questão de eles perceberem. Acho que se eles perceberem o que eu quero dizer, tudo vai correr bem.
Acho que tenho de me concentrar. Acho que tenho de me focar. Não ando bem.
À noite vamos a um bar que tem um balcão que parece o do Ray’s,
– ficamos aqui,
digo eu. Eles estão preocupados porque o texto não está completo e porque faltam as músicas. Eu digo para eles não se preocuparem, eu digo que o melhor é fazermos um brinde, que tudo vai correr bem. Mais tarde, ao nosso lado, no Candelabro (que é outro bar) ouvimos um tipo dizer a outro tipo que ele continua com vontade de descarregar tudo em cima de alguém, ele diz que precisa de descarregar o que sente em cima de alguém, que hoje vai engatar uma gaja e descarregar tudo em cima dela,
– apetece-me foder uma gaja até a partir aos bocados, apetece-me foder uma gaja com tudo o que sinto, com tanta raiva que a mande para o hospital, vou fodê-la tanto que a vou deixar toda partida nas urgências, acho que é isso que quero fazer, rebentar com ela até não poder mais,
nós ouvimos o que ele está a dizer, e mesmo ele estando bêbado dá vontade de rir e por isso começamos a rir. Se calhar não devíamos rir. A Jani não se ri. A Jani olha para nós e diz que vai para casa, que está farta de estar ali. O David vai também. São duas da manhã,
– estou cansado,
diz ele, e vai com ela. Eu estou à espera que a rapariga que adora escritores misteriosos apareça à minha frente para eu meter conversa. Mas ela não aparece. Não tenho sono. Não quero ir para casa, até porque estou muito longe de casa. Eles voltam-se para trás ao fundo da rua, olham para mim e acenam um adeus. Eu não reajo. Apenas fico ali, sozinho, à espera que alguém me salve de mim próprio.

quarta-feira, 8 de junho de 2016

MINOTAURO (1)

Isto vai ser difícil. E por isso corremos, corremos porque temos de correr, porque se não corrermos o comboio há-de partir sem nós e nós havemos de ficar onde estamos e nós não queremos ficar onde estamos, parados ao lado uns dos outros, com as malas nas mãos e o comboio a partir sem nós e nós com aquela sensação de que tudo está a correr mal, que há sempre um semáforo vermelho ou uma velhinha que atravessa com dificuldade a passadeira, e que ambos são responsáveis por estarmos parados a olhar uns para os outros enquanto o comboio partiu sem nós. Mas isso não aconteceu. Quase aconteceu, mas não aconteceu. E mesmo tendo o David adormecido, mesmo tendo a Jani furado um pneu e mesmo tendo eu achado que era boa ideia procurar em todas as bombas de gasolina a única marca de tabaco que ainda consigo fumar, a verdade é que conseguimos encontrar-nos os três à entrada de Santa Apolónia quando faltava um minuto para o meio-dia. E por isso corremos. Corremos porque não queremos ficar aqui, queremos ir para o Porto porque mesmo sendo aqui ao lado, o Porto é muito longe, e nós queremos ir para muito longe.
Durante a viagem a Jani tira-me uma fotografia. Não falamos muito. Estamos cansados. Ontem foi uma noite complicada, parece que todas as noites, de uma maneira ou de outra, na rua ou em casa, são complicadas. Eu publico no facebook a fotografia que a Jani me tirou, escrevo,
- fuck happiness,
e espero que percebas o que quero dizer, espero que percebas que o que quis dizer foi,
- que se foda a merda da felicidade porque parece que não tenho direito a ela,
espero que tenhas percebido isso, que foi isso que quis dizer.
Durante a viagem levamos com um casal com uma criança aos berros. O David adormece e acorda de trinta em trinta segundos. A Jani diz-me que cheira mal, que cheira muito mal, está de costas e não percebe que os pais estão a mudar a fralda da criança mesmo ali atrás dela, e eu dou por mim sem saber se quero matar os pais, a criança ou a mim mesmo.
Chegamos ao Porto e o Daniel Worm está à nossa espera. Vamos até à Mala Voadora, onde vamos ficar até Domingo, e como se fôssemos parolos que chegam ao Porto, assim que pousamos as malas, vamos comer uma francesinha.
Estamos cansados mas ainda fazemos um ensaio. Estamos com problemas com a primeira cena, parece que não está a resultar, parece que todos sabemos o que tem de acontecer para que resulte mas que ninguém consegue dizer o que falta ou o que está a mais. Repetimos a primeira cena. Corrigimos e marcamos. Eles estão exaustos e só ensaiamos a primeira cena.
Vamos às compras e jantamos em casa. Estamos na varanda a falar sobre a primeira cena. A discutir a primeira cena. Depois vamos ao Maus Hábitos. Eu tiro uma fotografia e a Jani pergunta-me,
- porque é que estás a tirar uma fotografia?
O Daniel Worm já não está connosco, estamos só os três, Ele vem ter connosco amanhã ao almoço. A Jani pergunta,
- o que é que estás a fazer?,
eu digo,
- nada,
digo que não é nada mas não é verdade, e a Jani,
- o que é que estás a fazer?,
enquanto eu olho para ela e para o telemóvel e digo,
- nada.
O David levantou-se, está todo fodido. Olho para ele e percebo que tudo nele está mal, que tudo está ao contrário, que ele já quase não sabe quem é, parece que a vida dele é apenas o que eu escrevi, que ele é apenas uma personagem a quem eu fodi a vida. Eu digo-lhe que tudo vai correr bem. Digo-lhe,
- David, vai tudo correr bem.
 Ele diz-me,
- vai-te foder,
sem sequer hesitar, diz-me,
- vai-te foder,
enquanto a Jani se levanta e lhe pega na mão e o leva para longe e lhe diz,
- não vale a pena.
Depois voltamos para casa, que não é a nossa casa porque não estamos em casa, estamos no Porto, na Mala Voadora, eles num quarto e eu noutro. Não falamos. Eles vão dormir e eu fico acordado. O tempo passa e eu continuo aqui até o Sol nascer e ser de manhã.

segunda-feira, 30 de maio de 2016

PLANO B

Começo a perceber o porquê. Começo a perceber o porquê das coisas acontecerem da maneira como acontecem. Começo a perceber que há uma razão para tudo isto e que no final tudo há-de fazer sentido, que no final hei-de olhar para trás e dizer,
 – ah!,
e rir-me e perceber que só se me afastar e olhar para tudo, para tudo o que aconteceu, é que vou conseguir perceber que afinal havia um objectivo, que afinal não foi tudo aleatório, que afinal eu estava enganado.
Eu escrevo isto e depois levanto os olhos e leio o que escrevi. Estou a pensar,
– Mike, ainda bem que tens noção das coisas, não arrisques, um dia vais reler isto e pensar, se eu não tivesse escrito isto, não ia estar aqui, a olhar para trás, e a pensar que afinal tudo fez sentido. Se eu não escrevesse isto a minha vida ia ser aquilo que está a ser agora até ao fim, e isso não pode ser, porque se continuar assim não aguento muito tempo,
ainda bem que escrevi aquilo, ainda bem que escrevi que começo a perceber que há uma razão para tudo isto e que no final tudo há-de fazer sentido, porque se não tivesse escrito isso, era bem capaz de achar que hoje ou amanhã era capaz de me atirar da varanda, e depois, hoje ou amanhã, era bem capaz de fazer isso, de me atirar da varanda.
Acho que não estou bem. Sei que não estou bem. Fomos para o Porto e foi bom estarmos no Porto. Foi bom estarmos no Porto todos juntos. Estivemos lá cinco dias e parece que foi ontem que saímos daqui, parece que os dias passaram como os sonhos, e que ainda aqui estamos à espera de ir embora, à espera de fazer isto pela última vez.  
(parece que estes cinco dias foram um parêntesis).
Uns estão melhor, outros estão pior, mas acho que é sempre difícil para eles, acho que é difícil dizerem aquelas coisas sem saberem bem se é a última vez que as estão a dizer, e para mim é difícil saber que é a última vez que as estou a ouvir.
Agora ia falar de ti. Não vou falar de ti,
O David está preocupado porque acha que se está a transformar em mim,
– estou a beber demais, estou deprimido, a minha vida amorosa é uma catástrofe, não consigo dormir, tenho o olho esquerdo a tremer – olha para o meu olho esquerdo, olha como ele está a tremer – tenho a sensação de que vou morrer a qualquer momento, parece que tudo se resume a quantos cigarros vou conseguir fumar durante o dia, porque para cada cigarro que fumo parece que há um bocado da minha vida que se apaga e eu tenho medo de estar a fumar cigarros a mais e a apagar a minha vida.
Depois ele cala-se e olha para o mar. Estamos em Espinho, em casa da minha prima, da Cíntia, estamos em Espinho em casa da Cíntia. Ele cala-se e olha para o mar. Temos espectáculo amanhã e ele olha para o mar enquanto diz que fazer Miguel Graça lhe está a dar cabo da cabeça, que lhe está a dar cabo da vida, que desta vez lhe está mesmo  a dar cabo da vida e da cabeça.
Isto é de manhã. O tempo passa. Depois fazemos o espectáculo e vamos à Cunha comer. Quando estou no Porto vou sempre à Cunha comer. Depois continuamos. Depois vamos e vamos. Não estás aqui, acho que estou sempre a pensar nisso, no quanto gostas do Porto e no que
(pára de falar nela, ela que se foda).
Depois o tempo passa, o Zé diz que eu sou um génio, o Tiago quer ir para casa, a Carolina vai comprar cigarros, o Bruno está noutra galáxia, a Diana ri-se
(acreditas que já passou um ano?)
e a Madalena diz,
– estás parvo?
E eu olho para eles e penso que quero mesmo estar aqui, que quero viver sempre assim, a adormecer às sete da manhã, aninhado com frio numa varanda convosco, sentado no chão ou numa cadeira, a ver o sol nascer mesmo que o sol nasça do outro lado. 
E é isso.
E é estranho o sol nascer sempre do lado errado.
E a Madalena diz,
– estás parvo?,
e eu calo-me. E eu olho em volta e começo a perceber que não é complicado, que afinal é simples perceber o porquê, o porquê das coisas acontecerem como acontecem.

terça-feira, 24 de maio de 2016

CATÁSTROFE

e enquanto estou a abraçá-la, eu com os braços à volta dela, ela com a cabeça encostada no meu ombro, ouço-a dizer a meia voz,
– ainda bem que vamos para o Porto, acho que vai ajudar.
Duas horas depois estou em casa a olhar para a parede. Deixei de escrever. Não consigo escrever. Tudo o que escrevo é uma merda e por isso mando tudo pela sanita abaixo. Duas horas antes estou a falar com a minha actriz preferida, que me pergunta,
– como é que te estás a aguentar, Mike?,
e eu encolho os ombros e mordo os lábios. Não digo nada e olho para as nuvens. Acho que não estou sequer a conseguir levantar-me da cama, acho que na verdade ainda estou deitado quando estou a falar com as pessoas, com os lençóis por cima do corpo, com os olhos fechados, à espera que seja noite para poder dormir e depois acordar e afinal isto ser só um pesadelo. Mas não é.
(és tão melodramático – e depois levanto-me e passeio pela casa – se calhar devia trabalhar, se calhar devia lavar a louça ou começar a fazer reciclagem, sentir-me bem comigo mesmo, fazer a cama, limpar o pó, arrumar tudo o que está desarrumado, pôr a minha vida em ordem)  
As minhas feridas demoram a sarar. Sou assim. Se me corto a cicatriz não aparece. Ando com um penso para estancar o sangue durante o dia, depois à noite está igual. E às vezes estou assim durante muito tempo, as feridas abertas e eu a passar água oxigenada e a tapá-las com algodão. Deve faltar-me uma vitamina qualquer, ou então é só uma metáfora para a minha alma, é só deus, o destino ou o universo, a gozarem comigo.
Há uns dias sentei-me para escrever uma crónica. Ia chamar-lhe CATÁSTROFE e estava dividida em duas partes, na primeira falava sobre a morte de não sei quantas pessoas distantes que morreram num acidente qualquer lá longe onde não vemos, na segunda falava sobre mim, e falar sobre mim era falar sobre ti, sobre a tua indiferença, e de como isso era uma catástrofe, de como tu eras uma catástrofe maior do que a morte de não sei quantas pessoas lá longe, não sei onde. Ia ser uma boa crónica. Ias ficar impressionada. Depois procurei no google,
– catástrofe,
procurei  nas notícias que não vejo há 15 dias. Nada. Nenhuma desgraça. Nenhum massacre. Parecia que ninguém tinha morrido, parecia que vivíamos num planeta chá-lá-lá, numa colónia hippie, sem mortes nem tormentas, parecia que o mundo inteiro se tinha reconciliado com o destino. Fiquei irritado e fui dormir.
– Mas como é que ninguém morre?
No dia a seguir levantei-me e liguei a televisão,
– CATÁSTROFE NO MEDITERRÂNEO,
dizia o rodapé, enquanto um homem explicava o trajecto de um avião e como 66 pessoas tinham morrido. 66 pessoas mortas por minha causa, pensei. E tudo por tua causa, porque eu queria escrever uma crónica sobre ti.
E acho que não vale a pena escrever sobre ti. Para quê?
– Para quê?,
pergunta o David, que é bem capaz de ser um dos melhores actores do mundo mesmo que ninguém o saiba, quando eu lhe digo que te vou telefonar,
– para quê?,
diz o David, que anda todo fodido por minha causa e por tua causa. Não. Que anda todo fodido porque tu és ela e eu sou ele ou porque eu sou ele e ela és tu. É confuso. Mas ele tem razão, mesmo estando todo fodido da cabeça ele tem razão, porque ele está todo fodido da cabeça, tal como eu estou todo fodido da cabeça, parece que todas as pessoas à minha volta estão todas fodidas da cabeça. Parece que toda a gente está assim, fodida da cabeça, a olhar para qualquer coisa e a ver outra, a olhar para qualquer coisa e a não conseguir ver o que lá está. Parece que não somos nós, que somos outros, mas que é sempre a mesma história.
E a minha actriz preferida disse com um sorriso que era meu há umas semanas,
– bem,
quando lhe perguntei como ela estava. Eu gosto de 

terça-feira, 17 de maio de 2016

A CRÓNICA NÚMERO 100

A angústia da morte de Deus nunca me afectou porque nunca considerei a hipótese de que Ele pudesse existir. E, ainda assim, nos últimos dias, enquanto penso mais em Deus do que em mim, ajoelhado no chão da sala, de olhos fechados e cabeça baixa, com o braço direito erguido, a mão aberta, como um suplicante, tenho pedido ajuda.
Pensei que tinha acabado. Mas não. Talvez seja impossível não parar, parar de tentar. Para depois ainda ser pior.
Tenho um amigo, não vou dizer o nome dele, que não se deixa afectar por nada. Ele diz,
– não é essa merda de que podia ser pior, claro que podia ser pior, podia estar a morrer de fome em África  ou podia ter um cancro terminal, ainda no outro dia, no IPO, vi um miúdo com uns 20 anos, deitado numa cama, o cabelo rapado, todo ele a tremer, parecia um cadáver a tremer, mais magro que um esqueleto, só se viam olhos e unhas, claro que podia ser pior, mas não é isso, não é mesmo isso,
a meio do almoço. Acabei de lhe dizer como me sinto, como me estou a sentir, que parece que estou num sítio tão escuro que não me consigo mexer, que só me apetece deitar no chão e ficar assim, de olhos fechados, para não ver a escuridão à minha volta.  Eu digo-lhe que acho que vou morrer. Que desta vez não estou a aguentar. Que me sinto como uma criança pequena de quem sou obrigado a tomar conta. E assim levanto-me e tomo banho e visto-me e vou para a rua como se tivesse alguém a fazer isso por mim, a obrigar-me a fazer isso por mim. E ao almoço não quero comer e é como se pegasse no meu braço e me obrigasse a comer mais,
– só duas garfadas, se não depois não fumas um cigarro,
e eu a abrir a boca e a engolir as ervilhas com vontade de vomitar. Eu com vontade de começar a chorar e a obrigar-me a sorrir, a sorrir para toda a gente.
– Estás com bom aspecto,
dizem-me,
– estás um jovem,
e eu a sorrir, eu a olhar para as pessoas a sorrir e a dizer uma piada e a morrer por dentro. Eu morto por dentro enquanto digo uma piada e toda a gente se ri.
Não acho que seja uma questão de me ir abaixo com facilidade. Não é isso. É apenas muita coisa ao mesmo tempo, muitas coisas, umas a seguir às outras, e todas mais ou menos iguais, e todas igualmente dolorosas, e todas a contribuírem para que eu esteja assim. A minha irmã diz,
– o que é que se passa?,
e eu,
– nada,
e ela,
– não, só escreves assim quando se está a passar alguma coisa,  
e eu,
– estou óptimo,
e ela,
– Mike, o que é que se passa?,
e eu,
– nada.
E agora há um silêncio porque podia acabar assim. Mas continua.
Tenho um amigo, não vou dizer o nome dele, que não se deixa afectar por nada. Fui almoçar com ele hoje num restaurante sobre a praia. Comemos peixe e bebemos duas garrafas de vinho branco. Eu quase não comi e ele quase não bebeu, mas no final dividimos a conta a meias na mesma. Estávamos a falar da minha última peça, que vai estrear daqui a menos de um mês. Eu mandei-lhe o texto por mail e combinámos almoçar, para falarmos sobre isso. E ele estava a falar da peça, do que ele tinha achado. Depois falámos sobre nós, sobre como estamos, o que tem acontecido. E como ele é realmente meu amigo não me obrigo a comer o peixe que não quero comer nem me obrigo a sorrir o que não quero sorrir Estou mais vezes a olhar para o mar do que para ele enquanto falo.
– Tu sabes como eu sou,
diz ele enquanto eu olho para o mar com a cabeça encostada à palma da mão e o cotovelo apoiado na mesa,
– no dia em que tudo correr mal, mato-me. E por tudo correr mal não quero dizer ficar sem pernas por causa de uma mina esquecida no Ruanda ou descobrir que a minha mulher me trai com três gajos, mas não é só com três gajos, é com três gajos ao mesmo tempo, sou eu a entrar no meu quarto e a ver na minha cama a minha mulher com três gajos ao mesmo tempo, com um a dar-lhe na cona, outro no cu e outro na boca.
– O quê?
– Era uma metáfora,
diz ele.
– O que eu estou a dizer é que no dia em que tudo correr mal, dou cabo de mim. Atiro-me da Boca do Inferno ou corto os pulsos na banheira ou meto a cabeça no formo. Mas até esse dia chegar, nada me afecta. E só tens de pensar nisso, será que esse dia chegou, será que é hoje?
– Estás a ajudar imenso,
digo eu.
Ele ri-se. Encolhe os ombros,
– o que queres que te diga?, tudo isto é uma anedota, pelo menos ri-te.
Depois volto a olhar para o mar.  Estou a pensar em Deus. No abandono de Deus. Estou a pensar na possibilidade de haver um Deus que criou isto tudo e que depois nos deixou sozinhos. 
Estou a pensar em ti, no teu abandono. 
Ultimamente têm-me falado de cães, de como há cães que morrem de tristeza porque os donos morreram. E enquanto olho para o mar e para o peixe que não comi lembro-me de Gregor Samsa, ou de como Deus, no momento antes de nos abandonar, provavelmente disse,
– rebola e finge de morto.
E acaba assim, com o abandono de Deus e com o teu abandono e comigo ajoelhado a pedir ajuda, não sei se a ti se a Ele.

terça-feira, 10 de maio de 2016

DAYDREAMING

Vou começar muito bem, entre o melancólico e o divertido. Depois vai ser muito desconfortável. Mesmo sem querer, vão voltar atrás, para lerem outra vez, para tentarem perceber. E, plagiando a minha actriz preferida: um, dois, três,
Tem sido estranho acordar. Demoro cada vez mais tempo a perceber em que realidade estou. Pensei que ia conhecer contigo o novo álbum dos Radiohead, mas afinal tenho-o ouvido sozinho. Ponho-o a tocar e é isso, vai tocando. Quando acaba volta ao princípio e eu vou andando pela casa enquanto não faço o almoço e não faço o jantar.  Acho que estou a começar a perceber que o vou ouvir sempre sozinho.
Tem sido estranho acordar. Hoje acordei com a Maribel ajoelhada ao meu lado a rezar uma Avé Maria ao meu ouvido. Eu a abrir os olhos e a Maribel,
– Nossa, professor, quer me matar do coração?
eu a levantar-me e a perguntar à Maribel o que é que ela está a fazer ajoelhada ao meu lado a rezar uma Avé Maria,
– pensei que cê tava morto, professor, aí deitado no chão, o que é que é isso?, gente, e depois se levanta como Lázaro, Virgem Maria, quer me matar?, o que é que cê tava fazendo aí deitado, professor?
Eu acendo um cigarro. Olho para o relógio na parede.
– Ainda é cedo,
penso,
– tenho de me aguentar pelo menos até às onze.
– Sim... eu... tropecei... e depois... achei que estava qualquer coisa debaixo do sofá... e como estou muito cansado... sim... como estou muito cansado devo ter adormecido... foi isso.
A Maribel olha para mim e diz que eu não estou bem e que tenho de me tratar, que ela acha que Jesus me abandonou e que eu tenho de ir ter com a Idaly, uma Mãe de Santo Camdomblé que dá consultas em Cascais.
– Eu nem sei o que isso quer dizer, Maribel.
– A Idaly é minha prima, é gente séria, e tem muita pessoa famosa que vai lá na Idaly e resolve seus problemas, professor, cê devia ir também.
A Maribel dá-me um cartão que diz,
– Idaly, Mãe de Santo Camdomblé. Através da consulta com jogo de búzios, é possível identificar os seus problemas e ajudá-lo, seja na parte espiritual, amorosa, saúde, problemas financeiros... etc.
Eu não estou com vontade de suportar a Maribel e por isso quando olho para o cartão penso que na pior das hipóteses escrevo uma crónica sobre o assunto e perco 70 euros, que é o mesmo que o chulo do meu psicólogo me leva por não me resolver os problemas. E, por isso, depois de não almoçar vou até Cascais e subo até um segundo andar manhoso depois de a Maribel ter telefonado à prima a dizer que,
– é aquele professor que eu falei para você, cê acha que pode hoje?
e um silêncio,
– ah, tá bom, eu vou dizer para ele.
E ela disse que às duas da tarde a Idaly ia estar à minha espera. Tomei banho. Fiz a barba. Olhei para mim na casa-de-banho enquanto estava com uma toalha enrolada à cintura. Comecei a achar que me estão a nascer cabelos brancos, que me nasceram centenas de cabelos brancos esta semana. E era isso que estava a acontecer. Eu de toalha enrolada à cintura, ainda com alguma espuma da barba na cara, a olhar para mim ao espelho, a contar os cabelos brancos. E foi isso. Foi apenas isso.
E ao mesmo tempo, um dia depois, por causa do Romeo Castellucci, olhei para trás, para a sanita. Pensei,
– que vida de merda,
e depois voltei a olhar para mim e a pensar na merda. A pensar mesmo na merda. Que isto tudo é uma merda.  Que não há nada que aconteça que não seja uma merda. Que a merda não é apenas merda, é aquilo que acontece, é aquilo que tem acontecido. Que a merda não é a merda, a merda é muito mais do que a merda, que a merda nem sequer é acordar no chão com uma brasileira analfabeta a rezar Avé Marias porque acha que eu estou morto, ou eu a escrever para ti e tu não me leres, ou eu a tentar falar contigo e tu não me responderes, ou eu A GRITAR PELA CASA PORQUE NÃO PERCEBO O QUE ACONTECEU.
Não.
Não é nada disso.
A merda somos nós. Eu sou a merda. Tu és a merda.

sábado, 7 de maio de 2016

ROCKET MAN

– Diz o nome de um cão.
– Tem de ter um significado?
– Claro, mas uma coisa que não se perceba.
Ela pensa um bocado.
– Rocket.
O Rocket era um rafeiro. Ninguém sabia nada dele, do passado dele. Tinha sido encontrado a vaguear por uma avenida movimentada da cidade, sem coleira, sem uma placa de metal que lhe dissesse o nome ou um número de telefone para quem ligar caso o encontrassem. Estava mal nutrido e desidratado, não estava a morrer, mas em geral poder-se-ia dizer que estava em muito má condição, e apesar de não ter oferecido resistência quando o apanharam, os empregados municipais sentiram algum receio quando ele olhou para eles depois de o prenderem. O Rocket  era um cão grande. O veterinário da Câmara, um homem obeso com barba branca e uma cicatriz em forma de serpente no braço direito,  pesou-o e fez aquilo que os veterinários da Câmara fazem quando um cão é apanhado na rua, por exemplo dizer,
– oito anos,
depois de lhe examinar os dentes,
– talvez um ano,
depois de lhe perguntarem há quanto tempo ele estaria abandonado,
– ele precisa de vitaminas,
depois de descalçar as luvas de borracha.
Chamaram-lhe Rocket e levaram-no para uma espécie de jaula individual onde ele passava a maior parte do tempo na companhia de outros cães que passavam o dia a ladrar. Não era desconfortável, era apenas uma condição. O Rocket mantinha-se em silêncio, Duas vezes por dia levavam-no a passear para um jardim e atiravam uma bola para longe na esperança que o Rocket fosse buscá-la. O Rocket olhava para a bola e não se mexia, apenas continuava a andar, às vezes com os olhos baixos na relva, outras vezes com o focinho erguido, como se procurasse alguma coisa. Os jovens voluntários do canil municipal davam-lhe festas e biscoitos. O Rocket olhava para eles e afastava-se, deitava-se na relva e fechava os olhos, nenhum deles sabia no que ele estaria a pensar.
Às vezes alguns dos cães eram levados. Vinham pessoas, casais com um filho ou dois, apontavam para um cão e depois de se baixarem e de lhes darem festas, sorriam e iam-se embora com eles. O Rocket olhava para esta cena sem grande emoção, o que não causava surpresa, uma vez que nunca o tinham visto abanar a cauda.
Um dia, uma mulher apontou para ele. Ela estava sozinha. O Rocket saiu da espécie de jaula com pouco entusiasmo e olhou para ela com o mesmo olhar com que tinha encarado os funcionários municipais no dia em que foi capturado. Ela não pareceu preocupada e baixou-se para ele. O Rocket cheirou-a e aproximou-se, passou o pescoço e o dorso pelas pernas dela, ela abraçou-o. Toda a gente estava surpreendida.
Ela levou-o para casa e nas semanas a seguir o Rocket passou os dias dividido entre esperar que ela regressasse a casa e passear com ela pela cidade. Davam longos passeios, muitas vezes até um parque onde ela o soltava. O Rocket não se afastava dela, a não ser quando ela atirava qualquer coisa para longe, uma pedra, por exemplo, que ele ia buscar o mais rápido que conseguia para lhe devolver. Em casa, ela deitava-se no sofá onde muitas vezes adormecia enquanto via televisão. Ele olhava para ela sentado no tapete e às vezes ladrava para a acordar, porque sabia que ela lhe ia dar uma festa quando abrisse os olhos, era uma forma de ele saber que aquilo estava a acontecer, que não era apenas um sonho, um sonho de um cão.
O Rocket era um cão feliz. Mas um dia acordou e percebeu que alguma coisa não estava bem. Ela saiu de casa sem se despedir dele e à noite, quando regressou, foi directamente para a cama, como se ele não existisse. Os longos passeios não se voltaram a repetir e uns dias depois, sem que o Rocket percebesse o que estava a acontecer, ela meteu-o no banco de trás do carro e voltaram ao canil municipal. Ela foi-se embora enquanto punham o Rocket outra vez numa espécie de jaula, sozinho. 
O Rocket ladrou a noite toda.
Depois deixou de ladrar. No dia a seguir os voluntários do canil municipal referiram ao veterinário da Câmara que ele não estava bem. Diziam que estava pior do que antes, que parecia que lhe faltava qualquer coisa, talvez a alma,
– os cães não têm alma,
disse o veterinário, enquanto mencionou depressão e receitou vitaminas.
Rocket was a dead dog.

quarta-feira, 4 de maio de 2016

MURPHY'S LAW

– Como é que te estás a sentir agora?
Eu olho para o relógio que está pendurado na parede. Faltam 25 minutos para sair daqui. Daqui a 25 minutos vou-me embora. Podia ir agora se quisesse, podia levantar-me e sair pela porta, nem sequer tinha de dizer nada, uma perna à frente da outra, apenas andar até à porta e ir-me embora. Mas não quero fazer isso. Não vou fazer isso. Vou ficar aqui sentado mais 25 minutos a fumar cigarros e a responder com monossílabos,
– sim.
– Sim? Isso é muito interessante. Queres dizer que te sentes positivo?
– Não.
Ele continua a falar. Quando sair daqui, daqui a 25 minutos, vou comprar uma garrafa de whisky e fecho-me em casa até amanhã, só tenho aulas às 11 e já não acordo no tapete há algum tempo. Nem sequer sei porque continuo a vir aqui, a olhar para o relógio e a enfiar ar nos pulmões  para depois suspirar muito alto quando ele acaba uma frase. Ele ri-se quando eu faço isso.
– Sabes quem é que me fazes lembrar?
– Não.
– O meu filho de três anos quando vai ao dentista.
– O teu filho de três anos vai ao dentista?
E ele ri-se muito alto e diz que conseguiu arrancar-me mais que uma sílaba numa frase sem sequer se esforçar muito, ele diz que eu sou muito inteligente para umas coisas mas que para outras sou a pessoas mais estúpida que ele alguma vez conheceu,
– porque às vezes és tão estúpido, Miguel, que dá vontade de te atirar com um tijolo à cabeça.
– Isso foi o que a minha actriz preferida disse,
digo eu.
– E ela tem razão?
– Não sei,
digo eu,
– espero que não,
digo eu.
Ele diz que só tenho mais 20 minutos e quer saber se eu quero falar sobre alguma coisa ou se quero apenas suspirar e responder sim ou não enquanto os 20 minutos passam. Eu olho para ele. Gosto do meu psicólogo, acho que ele se preocupa realmente comigo apesar de me cobrar 70 euros por hora. Mas é isso, se queremos que alguém se preocupe connosco se calhar o melhor é dar-lhe 70 euros a cada hora que passa, pelo menos podemos sair pela porta sem dar explicações, mas eu não quero sair pela porta sem dar explicações, eu quero continuar aqui sentado.
– Queres falar sobre o final?
Há dois meses o meu psicólogo sugeriu que eu escrevesse uma série de crónicas que se afastassem da minha vida, que ninguém pudesse ver como autobiográficas, que ninguém acreditasse nelas,
– para te dar algum sossego,
disse ele,
– para não confundires as coisas. Acho que te estás a deixar afectar por isso. Escreves que estás infeliz e as pessoas acham que estás infeliz, escreves que estás apaixonado e as pessoas acham que estás apaixonado.
Pareceu-me uma boa ideia. E o Neil não se ia importar que eu pegasse nele para escrever o Rock and Roll. Dez capítulos, dois meses, e as pessoas a dizerem-me,
– quando é que acabas com essa merda?,
 e eu,
– eu não sou uma telenovela.
Ele olha para mim.
– As pessoas não gostaram.
– Não, as pessoas não gostaram, as pessoas não gostaram nada. Não quero falar sobre isso, sobre o desenvolvimento lento das personagens, etc.. Não gostaram, pronto.
Olho para o relógio pendurado na parede. Faltam quinze minutos para me ir embora.
– No final ele ouve um despertador que é a campainha. Queres falar sobre isso?
– Não.
– Eu pensei que ele fosse ouvir uma campainha que fosse o despertador. Dava a ideia de que tudo tinha sido um sonho, de que nada tinha acontecido. Era um bom final. Mas se ele ouve a campainha... Não sei... É como se quisesses que uma personagem ganhasse vida e te fosse tocar à porta a meio da manhã.
Eu acendo um cigarro e olho para ele. Estou a sorrir e é a primeira vez que estou a sorrir.
– Talvez ela seja real,
digo eu.
– E a campainha tocou?,
pergunta o meu psicólogo. E não, não tocou, nem de manhã, nem de tarde, nem de noite.
– Talvez estejas a ver coisas,
diz ele,
– talvez precises de um psiquiatra e de antipsicópticos.
E eu olho para ele e o tempo passa. O tempo a passar e eu a olhar para ele.
– Talvez,
digo eu,
– talvez não.

segunda-feira, 2 de maio de 2016

ROCK AND ROLL (10)

– What do you think happened?,
pergunta o Neil.
– Não sei, Neil, não sei mesmo,
digo eu enquanto o Neil continua a arrumar as coisas, que não são muitas. O Neil vai-se embora, vai regressar para Springfield, no Illinois, depois de ter descoberto que a,
– nunca me disseste o nome dela,
digo eu,
– you never asked,
diz o Neil, acho que há alguma tristeza na voz dele, não sei se por eu nunca ter perguntado o nome dela se por ele ter de o dizer e recordar,
– Sara, her name is Sara, kind of like the desert, right?,
ele olha para mim,
– you look surprised,
mas eu não respondo e continuo onde estava. O Neil vai-se embora, vai regressar para Springfield, no Illinois, depois de ter descoberto que a Sara tinha trocado o professor de educação física com uma deficiência na fala por um veterano de arquitectura, jogador de râguebi aos sábados, surfista aos domingos e pandeireta da tuna arquitectuna de segunda a sexta,
– that’s just too much for me,
disse o Neil,
– I can’t handle that, I just can’t handle it. I have a daughter, you know, and I left my daughter for this… for this… girl… I don’t even know what to say about her. What would you say about her? I mean, now you know her name, so you know everything about her, ‘cause I told you everything about her, what she did to me, so if I’d ask you what do you think about her, what would you say?
E eu olho para ele e digo,
– vai para casa, Neil. Não é para a tua casa em Cascais, é para a tua casa nos Estados Unidos. O que é que estás aqui a fazer?
E o Neil pega na mochila e nas duas guitarras, vai regressar com o mesmo que veio, e depois pega numa das guitarras, na guitarra preferida dele, e estende-a para mim,
– you take this, my friend,
eu olho para a guitarra que tenho nas mãos,
– you don’t have to say anything, and don’t worry, I travel light.
E acabava assim, comigo a olhar para o Neil, ele com uma guitarra e uma mochila às costas, eu com a guitarra preferida dele nas mãos. Era um final em aberto cheio de significados. Eram dez capítulos ou dez músicas sobre como começar outra vez, sobre como podemos voltar para trás ou como podemos seguir em frente, era um final em aberto em que o Neil eventualmente reencontrava a vida e eu eventualmente reencontrava o amor.
Era um final em aberto.
Mas o Neil ainda tinha de ir até ao aeroporto e eu ia levar o Neil até ao aeroporto, e a meio da A5 ele voltou a perguntar,
– what do you think happened?,
e eu voltei a dizer,
– não sei, Neil, não sei mesmo.
Ele está a falar de ti. Ele está a falar da maneira como apareces e desapareces, ele está a dizer que agora que ele se vai embora tem medo que te vás embora também, ele está preocupado comigo, ele acha que eu vou sucumbir debaixo da minha própria angústia e que não vou aguentar. Mas ele quer contrariar isso e diz,
– don’t worry about it,
e diz,
– it’ll be fine,
e,
– you know, I have a good feeling about this,
mas eu acho que ele só está a tentar animar-me.
Estamos a falar de ti,
– the woman who is a goddess,
como diz o Neil. Estamos os dois no aeroporto da Portela, eu e ele. O Neil vai para Berlim, depois para Nova Iorque, depois para Springfield, no Illinois,
– you know, I’m glad I have someone to say goodbye,
diz o Neil a rir. E dá-me um abraço. Era suposto estares aqui, era suposto teres dito qualquer coisa. Era suposto despedires-te do Neil. Mas disseste,
– quero estar sozinha,
e enquanto ele se afasta para o check-in penso naquela imagem da Pioneer 10, a vaguear pelo espaço, naquelas duas figuras, homem e mulher, o homem a dizer
– olá,
ou
– adeus,
consoante a interpretação, e penso que eles deviam estar de mão dada, e penso que deverias estar agora ao meu lado a dar-me a mão enquanto eu ergo o braço e o Neil se volta para trás e diz,
– don’t you worry, everything will be fine.
Pego no carro e volto para casa. Estou à espera de te encontrar à porta de minha casa, sentada no chão, à minha espera. Não estás sentada no chão à porta de minha casa à minha espera. Vou dormir. Sonho com o Neil a voar sobre o Atlântico. O Neil a voltar para onde nunca devia ter saído.
É amanhã. Levanto-me da cama. Vou acordar cedo, com o Sol a nascer. Vou até à varanda. Acendo um cigarro. Olho para cima, 
E depois o despertador toca, não, e depois a campainha toca. 

sábado, 23 de abril de 2016

ROCK AND ROLL (9)

Acho que tenho falado demasiado sobre o Neil e pouco sobre mim. Não é que tenha medo que as pessoas não saibam quem eu sou, mas, não sei, se calhar um dia alguém pega nestes textos e faz disto uma espécie de peça, de peça de teatro, uma espécie de concerto, uma peça-concerto, com dez músicas ou um monólogo dividido em dez partes, e depois penso nas pessoas que estão presentes a assistir, nas poucas pessoas que estão presentes a assistir e no pouco que elas sabem sobre mim, e não é que isso me preocupe, porque não me preocupa, mas acho que tenho falado demasiado sobre o Neil e pouco sobre mim.
Há dois dias era já de madrugada e tu estavas a lavar os dentes com a porta aberta. Íamos dormir umas três horas porque ficámos a conversar até muito tarde. Estamos nessa fase, em que conversamos até ser muito tarde. Eu estava a olhar para ti sentado à mesa enquanto fumava um cigarro e tu estavas de cuecas e com uma t-shirt minha. Eu estava a olhar para ti a pensar,
– como é que isto aconteceu?,
e depois saíste da casa-de-banho e sentaste-te ao meu colo e abraçaste-me, e eu a pensar,
– como é que de repente isto aconteceu?
As pessoas não nos vêem juntos, não é metafórico, é mesmo verdade, raramente saímos à rua os dois, e quando damos a mão ninguém nos está a ver. E por isso as pessoas olham para mim e dizem,
– tens a certeza que isso não é só na tua cabeça?,
ou,
–  ponho as minhas mãos no fogo em como isso não é verdade,
e dizem isso com tanta convicção
(não gosto desta palavra)
e dizem isso com tanta certeza que começo a duvidar que seja mesmo verdade que estejas agora sentada ao meu colo, de cuecas e t-shirt, a abraçar-me enquanto perguntas,
– estás a pensar em quê?
Vou fazer um silêncio.  E agora vou continuar. Vou falar sobre mim. Não tenho muitos amigos, mas sou capaz de dar por mim a abraçar uma pessoa a meio da noite enquanto ela me diz,
– senti tanto a tua falta,
e acho que isso é bom, acho que isso diz qualquer coisa sobre mim, acho que isso é importante porque se algumas pessoas sentem a minha falta isso quer dizer que eu sou importante para elas, mesmo que haja outras que mal eu me aproxime digam,
– bem, tenho de me ir embora.
O Neil nunca disse isso, e ontem, às quatro da manhã, estamos os dois abraçados no centro de Cascais,
– april is the cruelest month, breeding
grita o Neil,
– liquor out of the dead land.
O Neil está bêbado, o Neil está sempre bêbado, mas às sextas-feiras bebe demais e é capaz de se pôr a fazer variações sobre T.S. Eliot, aos berros no centro de Cascais, enquanto um polícia se aproxima e nos diz para termos calma,
– o que é que se passa aqui?, é melhor terem calma,
e eu, sem saber como, mesmo estando menos bêbado que o Neil também estou a cair, peço desculpa pelos dois e digo que o vou levar a casa, que saímos de uma despedida de solteiro e que ele é o noivo,
– mas há aqui algum problema?,
insiste o polícia,
– sim,
digo eu,
– temos um problema filosófico,
digo eu,
– quando Schopenhauer deu um cacho de uvas brancas a uma rapariga de dezassete anos num passeio de barco, e ele tinha na altura quarenta e três/
ia perguntar-lhe se  o amor não será uma simbiose de contrários, o belo com o feio, o novo com o velho, o júbilo com a melancolia,
mas ele volta-nos as costas enquanto diz,
 – cambada de bêbados,
e o Neil se encosta ao meu ombro e volta a gritar,
– maybe I should go home, I don’t want problems with the law, I just want to fuck the law,
e o polícia a olhar para trás e eu a rir-me e o Neil ainda mais alto,
– fuck the law, fuck you mister policeman,
e o polícia,
– bem, bem...
E lá vamos os dois, rua acima, eu a levar o Neil às costas enquanto penso em ti, talvez nua, talvez vestida, deitada na tua cama, longe de mim porque estou a carregar com o Neil às costas, e o Neil a recitar William Blake e eu a dizer,
– não és o Corto Maltese, pára de dizer poemas,
e depois paramos porque o Neil acha que vai vomitar e não quer vomitar para cima de mim e eu não quero que ele vomite para cima de mim.  Mas o Neil não é gajo para vomitar e depois de uns segundos a olhar para o céu, senta-se no chão encostado a uma parede. Eu sento-me ao lado dele. Estamos os dois sentados no chão encostados a uma parede.
– Estás todo fodido,
digo. Ele acena com a cabeça. Ele concorda,
– I’m all fucked up.
O Neil diz que não é justo, que ele não tem de sofrer por minha causa, que ele me ensinou os acordes, as bases, os truques,
– it’s not fair,
diz o Neil. O Neil diz que com o tempo até podemos tocar juntos à noite, ele diz que eu se calhar estou farto do teatro, que estou farto de escrever, que estou farto de whisky. O Neil diz que eu estou a mudar a minha vida mas que ele não tem de pagar por isso, que ele não quer ser infeliz por mim.
– The woman who is a goddess,
diz o Neil,  
– she changed everything,
diz o Neil.
Mas os meus amigos dizem que tenho de ter cuidado, que eu tenho de ter calma. Os meus amigos não querem que eu sofra. Os meus amigos estão preocupados, os meus amigos dizem,
– aquela miúda do Schopenhauer escreveu no diário, hoje o velho deu-me um cacho de uvas brancas e eu senti vontade de vomitar porque ele tinha tocado nelas,
– se calhar estás a imaginar coisas,
dizem os meus amigos.
– I’m a friend,
diz o Neil,
– and I never said that,
diz o Neil.

domingo, 17 de abril de 2016

ROCK AND ROLL (8)

Estamos no estúdio do Neil, eu e o Neil. Ele diz,
– we’re almost there,
 e eu olho para a guitarra e olho para os meus dedos. É estranho como às vezes as coisas acontecem sem darmos conta que elas estão a acontecer, é estranho como às vezes as coisas acontecem sem percebermos como elas estão acontecer. Ou então é estranho, apenas. Viver é estranho. Acordar todos os dias e abrir os olhos sem saber bem em que mundo se está, abrir os olhos e pensar,
– onde é que eu estou?,
para depois resolvermos um problema maior,
– quem é que eu sou?,
mesmo que não estivéssemos a sonhar que éramos outra pessoa com outra vida noutro lado noutra altura noutra pele, mesmo que sejam apenas os olhos abertos a identificar onde estamos, e sabemos onde estamos, e se sabemos onde estamos sabemos quem somos. É isso? É isso, não é?
– Get ready,
diz o Neil,
– this is it,
diz o Neil,
– you’re ready,
diz o Neil.
Estou a escrever outra vez. Estou a escrever outra vez e tu estás deitada na cama. Não te disse para ires para casa, não te disse que precisava de estar sozinho, não te disse,
– desculpa,
depois de te mandar embora porque estou a escrever outra vez. Apenas fiquei a olhar para ti enquanto te despias. Tinhas tirado as lentes e eu estava sentado à mesa , longe de ti,
– vou pôr os óculos para saber se estás a olhar para mim,
disseste.
– Não é preciso,
disse eu,
– vou estar sempre a olhar para ti.
Tu sorris para mim. Estás sentada na cama. Eu digo que vou voltar a escrever, que demoro uma hora até deitar-me ao teu lado, que talvez nem sequer consiga escrever nada, mas que demoro uma hora até me deitar ao teu lado. Tu voltas a perguntar,
– tens a certeza?, eu posso ir-me embora,
e eu digo que tenho a certeza, eu digo-te,
– tenho a certeza.
Eu sento-me e começo. O Neil diz que já não tem nada a ensinar-me, diz que a partir daqui vou ter de ser eu a continuar sozinho, ele diz que está na altura de eu começar a perceber que não há nada a ensinar, que é tudo uma questão de confiança, que eu tenho de confiar em mim e confiar nela,
– nela?,
pergunto eu,
– na guitarra,
diz o Neil. Ficamos em silêncio. O Neil faz um charro, eu faço um cigarro. O Neil olha para mim e pergunta-me se eu o vou matar,
– are you going to kill me?
O Neil, de Springfield, Illinois, pergunta-me se eu o vou matar ou se o vou deixar a viver na merda, a tocar nos bares de Cascais à espera que ela apareça enquanto ele engata uma quarentona porque ela não apareceu. O Neil diz que não quer isso, que não quer ficar a tocar nos bares de Cascais para sempre, à espera que ela entre pela porta. Ele diz que prefere voltar para casa, que prefere ir à procura da filha, que prefere isso a ficar à espera para sempre que ela entre pela porta do bar e lhe diga,
– acho que cometi o maior erro da minha vida.
Eu olho para o Neil. Ele acende o charro, eu acendo o cigarro.
– How about that girl, the one that got away, did you find her?,
e eu penso em ti deitada na cama, de olhos fechados, à espera que eu regresse, à espera que eu te abrace enquanto eu voltei a escrever.
– You know, the woman who was a goddess, what happened to her?,
pergunta o Neil, enquanto eu me levanto para ir ter contigo e digo,
– estás fodido, Neil, não vais voltar para casa.

domingo, 10 de abril de 2016

ROCK AND ROLL (7)

Alguns de vocês já viram o Neil a tocar ao vivo. Alguns de vocês já o viram no final de um concerto a rodopiar a guitarra sobre a cabeça, o resto da banda a tocar e o Neil no palco com o cabelo de um lado para o outro, como se fosse um super-herói a voar pelo céu. O Neil com vontade de espatifar a guitarra contra o chão, mas o Neil a saber que se espatifar a guitarra contra o chão vai ter de comprar uma nova, e o Neil não tem dinheiro para comprar uma guitarra nova, e por isso apenas a rodopia no ar, como se fosse uma ventoinha.
– I don’t give a fuck,
diz o Neil quando o dono do bar lhe diz que as quarentonas gostam de músicas animadas, que elas querem ouvir músicas dos anos 80, coisas mexidas que as fazem recordar que quando eram novas iam ser felizes. O dono do bar diz que elas bebem mais quando se lembram do passado,
– elas bebem mais quando se lembram do passado.
O Neil olha para ele e diz,
– I don’t give a fuck,
e é capaz de começar com Bob Dylan e acabar com o Papa Loves Mambo, só porque lhe apetece. São as quintas-feiras do Neil. E às quintas-feiras o Neil faz o que lhe apetece, às quintas-feiras quem manda é o Neil, e as quarentonas pedem sempre mais uma pint, mesmo que não tenham sede, e às vezes até puxam o top para cima e mostram as mamas ao Neil, mesmo quando não beberam nada.
Eu estou ao balcão. Estou sempre ao balcão, parece que a minha vida é passada ao balcão de um bar. Parece que a minha vida é um bocado de madeira debaixo dos meus cotovelos e eu a dizer,
– outro,
enquanto me vão servindo whisky e me vão servindo whisky e me vão servindo whisky.
– Estou farto de mim,
digo ao Neil quando ele se senta ao meu lado num intervalo,
– we’re gonna take a small break, don’t go away, the booze’s on the counter and I’ll be there too, ladies.
(toda a gente se ri e bate palmas)
 – thank you, thank you, it’s good to be here. It’s good to be here again.
E depois sai do palco que não é um palco. E caminha com as botas de cowboy até ao balcão. E pede whisky.
– How’re you doing, Mike?
Eu olho para ele e abano a cabeça. As coisas estão a mudar. As coisas estão a mudar para melhor. As coisas só são más quando acreditamos que elas são más. As coisas só são más quando deixamos que elas tomem conta de nós, como tu tomaste conta de mim,
– what?,
diz o Neil,
– nada,
digo eu.
– Where is she?,
diz o Neil,
– where is that woman that is a goddess?
As garrafas balançam à minha frente e eu balanço com elas, dançamos todos, eu e as garrafas, mesmo sem o Neil a cantar, mesmo comigo sentado ao balcão e as garrafas quietas atrás da miúda que me vai servindo whisky quando digo,
– outro.
Ela foi-se embora, Neil, ela tinha de se ir embora,
– why?
pergunta o Neil, acho que está preocupado.
Está muito barulho. Há uma miúda com uns vinte anos sentada ao meu lado, quer pedir uma cerveja mas não consegue que a ouçam. Do outro lado do balcão uma quarentona não larga os olhos do Neil enquanto ele fala comigo,
– what happened?,
eu estou a pensar em ti enquanto me lembro de ti,
– estava a pensar numa ideia para uma história,
digo eu ao Neil,
– um escritor que conhece uma mulher, e ela é perfeita, é perfeita em tudo, e o escritor é um merdas, é um merdas em tudo. Mas mesmo assim ela quer estar com ele, ela quer mesmo estar com ele. Às vezes isso acontece, às vezes isso acontece mesmo. E depois, quando ele está sozinho, em casa, ele pergunta porquê e ele percebe que ela não é uma mulher, que ela é uma deusa, como na antiguidade, e ele escreve num caderno,
– a mulher que é uma deusa,
ele escreve isso num caderno. E depois ele escreve uma história sobre isso. Ele disfarça a realidade com a ficção. Ele finge que isto não está a acontecer. Ele pede outro whisky.
O tempo passa. O Neil está outra vez no palco. Eu estou ao balcão. E tu, estás onde?

domingo, 3 de abril de 2016

ROCK AND ROLL (6)

O Neil está deprimido. O Neil diz que o mundo anda ao contrário, que ele não compreende como podem as pessoas acordar de manhã e abrirem os olhos para o dia e pensarem,
– vou levantar-me.
O Neil toma dois anti-depressivos ao pequeno-almoço, bebe uma caneca de chá preto, come uma torrada e volta a enfiar-se na cama. Enterra a cabeça na almofada e diz,
– fuck the world,
enquanto volta a adormecer sem pensar noutra coisa que não seja dormir.
Combinámos almoçar num sushi às duas da tarde, um daqueles em que se pode comer até cair. O Neil disse que lhe apetecia saqué, mas que não tinha fome, eram sete da manhã e eu tinha vindo de Lisboa e tinha ido ter com ele a um bar em Cascais que ainda estava aberto. O Neil estava perdido de bêbado, eu estava só perdido. Também não tinha fome, não me apetecia saqué, mas pensei que talvez às duas da tarde tivéssemos fome e que eu podia beber outra coisa qualquer. Pedi um whisky. Pedir um whisky às sete da manhã é sinal de que ainda não se viveu nada ou de que já se viveu tudo, inclino-me para a segunda hipótese. Fomo-nos embora passados 10 minutos, o Neil disse que conhecia um café que já estava aberto, eu perguntei-lhe se se ele queria que eu o levasse a casa,
– no, man, I’m gonna walk, it won’t hurt me and maybe it’ll make me some good. How about you, how was your night?,
eu digo,
– até amanhã, Neil, já é tarde,
enquanto caminho na direcção contrária e o ouço ao longe a dizer,
– if you don’t like the subject, just change the conversation, right?, I know that one,
e ri-se,
– don’t you mind those fucking bitches, Mike, not only they’re bitches but they’re also dykes.
Pensei chegar a casa e dormir, enfiar-me nos lençóis e fechar os olhos. Às vezes as coisas mais simples são as mais difíceis. Sentei-me no sofá, fumei quatro cigarros seguidos, levantei a cabeça e apaguei o cigarro. Depois fui até à varanda. O Sol batia-me na cara. Olhei para baixo e pensei que estou só a oito andares do chão, a quatro ou cinco segundos do chão, pensei. Depois voltei para dentro de casa, parei um momento, e fechei a cortina.
O Neil chegou eram três da tarde, eu já tinha almoçado. Ele pede desculpa,
– São três da tarde, Neil,
e ele pede desculpa outra vez, ele diz que adormeceu, ele diz que está nervoso por causa do concerto de hoje à noite, ele diz que acha que ela talvez apareça, que talvez ela apareça para o ver, que talvez ela faça isso, que talvez ela tenha deixado o professor de educação física com uma deficiência na fala e sinta a falta dele, que talvez ela sinta falta de estar com ele, de o abraçar,
– what do you think?,
diz o Neil,
e eu digo-lhe que acho melhor ele habituar-se à ideia de que ela nunca vai voltar. Eu digo-lhe que talvez seja melhor ele começar a pensar em voltar para os Estados Unidos, que de certeza que há coisas em casa que são importantes e que a única coisa que ele está aqui a fazer é perder tempo, é a perder a vida por causa de uma gaja que não vale nada, que o trocou por um professor de educação física com uma deficiência na fala,
– uma gaja que provavelmente nem se está a rir de ti neste momento porque ela nem sequer está a pensar em ti,
eu digo-lhe que de certeza que ele tem coisas importantes em casa, que não são os concertos em Cascais ou as aulas de guitarra que interessam, eu digo-lhe que ele tem de pensar nas coisas, que não pode continuar a/  
– well, I do have my daughter,
diz o Neil,
– she’s five, it’s been five years since I last saw her.
E depois ficamos a olhar um para o outro durante pouco tempo, é mesmo pouco tempo, não é literário, não é, muito tempo, é pouco tempo porque eu olho para a mesa e ele olha para a janela. Ficamos em silêncio muito tempo. A senhora vem com o saqué. Eu afinal também quero. Eu digo,
– obrigado,
enquanto ele bebe o primeiro copo de uma vez.
– Tu tens uma filha? Estás aqui perdido neste país de merda, nesta cidade de merda, nesta aldeia de merda e tens uma filha?,
– she tells me I’m insane, do you think I’m insane?,
pergunta o Neil.

quarta-feira, 30 de março de 2016

ROCK AND ROLL (5)

Ela diz que não quer ter nada comigo. Ela diz,
– eu não quero ter nada contigo,
diz isto assim, como se fosse a coisa mais normal do mundo. Nem sequer me prepara, apenas me diz,
– eu não quero ter nada contigo,
e eu nem sequer disse nada, apenas falei com ela, apenas lhe disse,
– olá,
e ela logo a seguir,
– eu não quero ter nada contigo,
e eu, assim, de repente, ao olhar para isto, para esta frase que me aconteceu, a achar que deve haver qualquer coisa de errado comigo, qualquer coisa que não se diz porque não há nada para dizer, a pensar em mim como uma coisa que não funciona, um frigorífico estragado, um canivete que não corta, e ela a dizer,
– eu não quero ter nada contigo,
como se eu tivesse lepra, como se eu fosse um leproso com um sino pendurado à volta do pescoço,
– tu escreves bem,
diz a amiga do Neil enquanto olha para o telemóvel,
– é uma aliteração,
digo eu, são seis da manhã. O quê? Talvez seja o meu passado, talvez seja o meu passado ou o que eu fui, aquilo que eu fui, nós não somos apenas onde estamos, somos onde estivemos, o que fomos, e talvez aquilo que eu fui tenha sido o suficiente para agora olharem para mim e dizerem,
– eu não quero ter nada contigo,
que é o que ela diz quando eu falo com ela,
e por isso ela vai-se embora. Ela sai pela porta e eu olho para a porta e depois ouço o Neil a dizer,
– a dyke, man. Can you fucking believe it? I slept with a fucking dyke,
diz o Neil enquanto enrola um charro. Dói-me a cabeça. Dói-me a alma. Dói-me a vida.
– What happened to your girl?, she left?,
pergunta o Neil enquanto eu olho em volta,
– não sei, não me lembro,
deitado no chão,
– and why are you on the floor? You could’ve slept on the bed,
diz o Neil sentado na cama onde eu devia ter dormido.  
– Não me lembro, Neil. Não me lembro sequer de ter chegado a tua casa, nem me lembro quem é que me trouxe para tua casa, o que é que aconteceu?, nunca mais saio contigo, sabes que idade é que tenho?, estas coisas dão cabo de mim, já não tenho idade para estas coisas.
Levanto-me. Ponho as mãos na cabeça.
– I made you some coffee,
diz o Neil enquanto me estende uma chávena de água suja. Eu sento-me ao lado dele, na cama onde devia ter dormido. Eu acendo um cigarro, o Neil acende o charro.
– What a fucking night,
diz ele,
– my fingers are all dry,
e ri-se,
– that dyke just couldn’t make it, and I guess it’s ok, ‘cause she’s a dyke, I mean, she told me, sorry, I like pussy, I don’t like dick, and it just won’t work. Maybe you can hold me. Just hold me. And you know what? I put my arms around her, and we just slept through the morning, like if we’re friends. I hold her all night. Just like that, my arms around her. And that was fine.
O Neil continua a falar. Eu não o estou a ouvir. Eu estou a pensar em ti. Estou a fumar o cigarro e a pensar em ti. Não penses que estou a pensar em ti, não estou a pensar em ti, estou a pensar em ti, mas não é em ti, é noutra pessoa, porque eu não quero pensar em ti, eu quero que tu te fodas. Estás a ouvir? Não quero pensar na miúda que se foi embora a meio da noite, nem em mim a dormir no chão em vez de dormir numa cama. Não quero pensar em ti. Estou a pensar em ti enquanto o Neil se levanta e põe a tocar o último álbum dos The War on Drugs. Estou a pensar em ti. Estou a pensar no que aconteceu para eu estar aqui, em casa do Neil, a acordar no chão sem ninguém ao meu lado quando o Neil me garante que éramos quatro quando chegámos,
– I got the dyke, you got the grenade, Mike. This is war and you jumped to the grenade. I’ de thank you but we both got fucked, ‘cause mine was a dyke and yours was a grenade.
E o Neil ri-se outra vez, o Neil ri-se e eu deixo de o ouvir enquanto penso em ti. Ultimamente tenho pensado em ti, na vida que levo por não te ter, no que tenho feito por não existires, porque tu não existes, és apenas alguém com quem falo de vez em quando, que vejo de vez em quando, que olho, porque eu olho mesmo para ti quando estou a olhar para ti, de vez em quando.
São quatro da tarde. Tento lembrar-me da noite de ontem. Tento lembrar-me de ti porque te confundo com outras. Se calhar não te amo. Se calhar nem sequer gosto de ti. E depois o Neil cala-se e eu continuo calado. Estamos os dois calados, sentados na cama. E depois eu penso em ti outra vez.


quarta-feira, 23 de março de 2016

ROCK AND ROLL (4)

– you know how sad I am?,
perguntou o Neil ao telefone,
– I’m as sad as one can be.
E por isso peguei no carro e fui até Cascais, perguntar ao Neil o que se tinha passado sem lhe fazer qualquer pergunta, porque não somos homens de fazer perguntas, somos homens de ficar sentados a olhar em frente com os cotovelos apoiados no balcão e o olhar intermitente entre a rapariga que nos serve whisky e o whisky.
É terça-feira. O Neil tem ali um concerto dois dias depois, há não sei quantos anos que o Neil tem ali um concerto às quintas-feiras, há quatro anos que o Neil tem ali um concerto à quinta-feira, chamam-lhe a quinta-feira do Neil, pagam-lhe cem euros mais tudo o que ele conseguir beber. O Neil diz que é um bom negócio,
– it’s a good deal, I get to drink a lot.
O Neil diz que foi aqui que tudo começou, exactamente onde estamos sentados, ele a cantar no palco que vai ser sempre um palco improvisado e ela a falar sentada ao balcão com o professor de educação física com uma deficiência na fala.
– Later she told me that she first kissed him right here where we are, while I was singing Nirvana’s About a Girl over there. Yeah. I didn’t noticed it. I was over there, singing. And I didnt’t see a thing. And then I went to her, I was taking a break, and I shook his hand. I shook his fucking hand.
O Neil diz que ela mudou, que houve um dia, ainda em Nova Iorque, em que ela mudou. Estavam os dois sentados no chão e quando ele olhou para ela, percebeu que ela tinha mudado, não percebeu porquê, nem o que aconteceu, mas naquele momento soube que não havia nada a fazer, que era uma questão de tempo até ela dizer,
– tu és ridículo,
como ela lhe disse uns meses depois, já em Cascais, quando ele se ajoelhou aos pés dela e lhe disse,
– don’t leave me,
depois de ela lhe contar como tinha beijado o professor de educação física com uma deficiência na fala na última quinta-feira.
O Neil está bêbado, o Neil está a começar a ficar muito bêbado e a dizer as coisas que os bêbados dizem,
– she’s one in a million, man, you don’t understand,
e não percebo mesmo porque de tudo o que ele me conta esta gaja só me parece uma vaca ordinária que merece um par de bofetadas logo pela manhã pela merda que há-de fazer de tarde e um chuto no cu ao final da noite. E o Neil atravessou meio mundo por ela. E o Neil está com a cabeça enterrada num balcão por causa dela. E o Neil continua a cantar todas as quintas-feiras,
– I need an easy friend
na esperança que ela entre pela porta do bar e se atire para os braços dele e lhe diga,
– desculpa, enganei-me.
Olho para ele. Olho para a rapariga do bar e peço mais dois. Ele insiste em pagar. Eu tenho pena dele e não quero ter pena dele. Vou dizer qualquer coisa mas ele adianta-se,
– I know what you’re going to say, my friend, you’re going to say, you’ve made your bed, now lie in it. Yeah. I’ve heard that one before. Well, you know something? I sleep on the floor. That’s right, I sleep on the floor. How about that? Now you go home and write on your fucking computer that I sleep on the floor. You do that, my friend. I’m going to fuck that girl over there, and you’re going to go home and write about me. That’s what you do, right? I’ll see you tomorrow. I’m drunk and I know that I’m drunk, but it’s ok, it's ok 'cause it’s always about a girl, Mike, it’s always about a girl.
O Neil quase cai quando se levanta do balcão. Vai ter com uma irlandesa roliça que dança sozinha e que o beija passados trinta segundos. É tarde. Cá fora, enquanto fumo um cigarro e pondero a hipótese de ir até ao carro debaixo de chuva, uma francesa pergunta-me as horas.

segunda-feira, 21 de março de 2016

ROCK AND ROLL (3)

Aos Domingos lembro-me de ex-namoradas porque como não consigo encontrar uma única coisa para fazer, tento recordar o que fazia quando tinha alguém ao meu lado, mas só me consigo lembrar de almoços de família, supermercados e sestas no sofá. Talvez afinal esteja melhor sozinho porque como não tenho quem me diga,
– vai almoçar com a tua mãe,
ou,
– já não vês o teu pai há quinze dias,
acabo por lhes dizer que tenho ensaio e muitas coisas para fazer e aproveito para dormir até ser quase de noite, e como já nem sequer faço o almoço e à noite encomendo uma pizza por telefone também não vou ao supermercado, e como durmo até não poder mais não faço sestas no sofá, apenas vagueio pela casa a pensar em coisas que me vão surgindo na cabeça, como ex-namoradas ou Domingos em que havia qualquer coisa para fazer.
Ao final da tarde lembrei-me da guitarra. Passei a semana sem tocar, deitado na cama, inchado de tosse febre espirros arrepios comichões, com um lenço na mão e um pacote de lenços na outra, a tirar um lenço e a deitá-lo fora, e depois outra vez. Eu a assoar-me e a espirrar e deitar o lenço fora e a tirar outro e a dizer aos alunos,
– se eu desmaiar não se admirem.
Os alunos riem-se e eu continuo a dar a aula, a interromper-me com ataques de tosse e murros na parede.
– Alergias,
disse a minha médica,
– a quê?,
perguntei.
E ela calada a olhar para mim.
– Vou receitar-te um anti-histamínico, um anti-depressivo e um calmante, e não te preocupes, podes beber whisky à vontade.
– A sério?
– Sim,
disse ela.
– Miguel,
disse ela quando me levantei,
– lembras-te do que aconteceu da última vez?
E eu lembro-me do que aconteceu da última vez, lembro-me porque não é fácil esquecer-me, não é fácil fazer de conta que não aconteceu, nem é fácil imaginar-me outra vez assim, doente sem diagnóstico, com a minha médica a perguntar,
– o escritor és tu, qual é a palavra para a ausência de sentimentos?,
e eu automático,
– indiferença.
– Não tenho medicamentos que curem isso,
dizia ela, e agora diz,
– queres voltar ao que aconteceu da última vez?
Eu olho para ela e digo que não. Digo que não e que vou tomar os comprimidos, que vou parar, que eu sei que ela tem razão, que ela não tem de se preocupar, que eu vou ficar bem, que é só tomar os comprimidos à noite antes de ir dormir e não beber muito whisky.
Isto foi na sexta-feira. Acordei hoje e só percebi que era Domingo porque tinha trinta e oito chamadas não atendidas e achei que era demais. Achei que ninguém tem trinta e oito chamadas não atendidas numa só noite. E depois percebi que já era Domingo. E depois pus-me a pensar no que havia de fazer porque não tinha nada para fazer. Olhei para a guitarra. E já não sei se pensei em ex-namoradas ou em futuras namoradas, se pensei no que fazíamos ou no que vamos fazer, porque uma e outra coisa me parecem tão distantes quanto um Si Bemol de um Ré.
– You just have to practice,
diz o Neil.
– You just have to understand the position of the fingers, the different position of the fingers. And then you repeat, one, two, three, four, and then you loop that,
diz o Neil,
– you just loop that until you get it,
diz o Neil,
– and then it becomes you, and as it becomes you, you start to feel it. You really feel it.

sábado, 12 de março de 2016

ROCK AND ROLL (2)

Há dias que correm mal, e depois há vidas que correm mal. Lembro-me da minha prima Francisca que não via há muitos anos (e que nem sequer é minha prima) estar um dia sentada no sofá, toda ela curvada, quase com a cabeça no tapete,  e eu,
– o que é que tens, estás a vomitar?
A Francisca devia ter uns 16 anos, eu era miúdo, não sei, talvez 10 ou 12 anos, mas lembro-me que gostava de olhar para a prima Francisca (que nem sequer era minha prima) quando ela saía da piscina a ajeitar o biquíni que parecia estar sempre a querer sair do sítio, que parecia sempre demasiado pequeno para o volume da Francisca.
– Esta rapariga é muito peitriota,
dizia um tio meu enquanto se ria para mim, eu não percebia, e depois ele dizia,
– Mike, isto é que é uma miúda para ti, vai ter com ela e espeta-lhe um beijo na boca ou um apalpão no cu. Elas adoram essas coisas. Ficam malucas.
E eu todo contente fui ter com a Francisca que devia ter mais meio metro que eu, a achar que não lhe conseguia dar um beijo se ela não se baixasse. Ela enrolada na toalha a olhar para mim,
– queres alguma coisa?,
ela a virar-se de costas e a dizer para a deixar em paz. Eu a olhar para a Francisca de costas para mim e a ver o meu tio a fazer sinais, a dizer-me por sinais que era agora. Eu a olhar para o rabo da Francisca. Eu a levar um estalo da Francisca,
– estás parvo?
enquanto o meu tio se ria muito alto e entornava o whisky para o chão porque todo o corpo se ria também,
– é isso, miúdo, é isso,
e eu a fugir da Francisca que balançava pela relva atrás de mim, com o biquíni aos saltos a dizer que me ia matar.
– I’m lost,
disse o Neil,
– where are you going with that?
Agora passo muito tempo com o Neil. Às vezes vou a um concerto dele em Cascais, outras vezes vamos jantar. O Neil está tão tão triste que ao lado dele pareço uma gargalhada. À tarde mostrou-me uma música nova em que está a trabalhar,
– it’s just the beggining.
O ritmo é lento e ele parece que vai desfazer-se em água. Não. Ele parece que vai desfazer-se em merda.
                You destroyed my life, life
                You destroyed my life, life
                You destroyed my life, life
                You destroyed my life, life
                I’m gonna kill myself
                today today today
    I’m gonna kill myself
    today
– what do you think?
Eu abano a cabeça e digo que talvez seja um bom princípio enquanto me lembro da minha prima Francisca (que nem sequer é minha prima), sentada no sofá, com a cabeça quase no tapete, a gemer, com as mãos enfiadas na cabeça,
– o que é que tens, estás a vomitar?,
e ela a gritar, ela a gritar e a levantar-se e a dizer,
– sai daqui deixa-me em paz deixa-me em paz por favor sai daqui deixa-me em paz não quero ver ninguém não quero ver ninguém SAI DAQUI
E eu saí. Eu corri cá para fora e só muitos anos depois descobri que a prima Francisca (que nem sequer é minha prima), naquele início de Verão, tinha descoberto no mesmo dia que estava grávida, que tinha chumbado no nono ano pela terceira vez e que o namorado quando ouviu falar da gravidez lhe disse que estava a pensar em alistar-se no exército e que a andava a trair com a melhor amiga e com outra amiga que não sendo tão amiga quanto a outra também era muito amiga. A Francisca não aguentou e foi contar tudo aos pais cheia de lágrimas. Agarrou-se à mãe a soluçar. Ainda nem tínhamos almoçado. O pai deu-lhe duas bofetadas e passou a tarde a gritar,
– puta puta puta tenho uma filha que é uma puta,
enquanto se virava para a mulher e dizia,
– vê-se logo a quem ela sai.
O meu tio ria-se enquanto entornava mais whisky e dizia,
– a peitriota vai ficar uma vaca leiteira.
E neste dia tudo correu mal para a Francisca, tudo correu mal. Foi um dia em que tudo correu mal. Mas a Francisca teve a criança, os pais ajudaram-na, o namorado que passou a ex-namorado morreu de overdose dois anos depois e nem sequer conheceu o filho, e ela casou mais tarde com um urologista que lhe comprou um Jaguar e uma vivenda em Cascais, mesmo ao lado da casa da portuguesa por quem o Neil se apaixonou. Isso descobri agora quando vejo a Francisca a sair de um Jaguar para abrir o portão da vivenda. Está gorda. Está mesmo gorda.
Estamos os dois no meu carro, o Neil quis saber se ela ainda tinha a luz acesa, se estaria em casa. Está tão destruído que vive destas pequenas coisas. Eu faço-lhe a vontade. Ainda não me disse como ela se chama e eu ainda não perguntei. Estamos os dois muito bêbados. O Neil acende mais um charro e eu acendo mais um cigarro. É nessa altura que aparece a Francisca.
– It’s a small world,
digo eu.
– It’s a shit world,
diz o Neil enquanto olha para o charro,
– it’s a shit shit world, man. All I see is shit all around. Shit and shit and more shit. But it’s the shit we live in, it’s all there is, just shit and shit and more shit.