sábado, 25 de junho de 2016

THE END

Entretanto não morri e é estranho não ter morrido porque, às vezes, nos ensaios, começava a achar que eu era um fantasma e que os estava a ouvir dizer,
– ele morreu,
sem saber que eu tinha morrido mesmo. Começava a achar que eu era um fantasma que se recusava a ir embora até a peça estrear. Mas afinal estou aqui, não me atirei da varanda nem da Boca do Inferno. Tudo continua igual.
Começo pelo princípio. A vida, parece-me, é cada vez mais aquela espécie de jogo de crianças onde temos de unir um ponto ao outro para que apareça um desenho. Olhamos para aquilo e não vemos nada, só uns números ao lado uns dos outros, só uns números distantes que parecem ser apenas números distantes, mas depois, começamos a uni-los e no final sai um girassol ou umas ondas com um barquinho ou outra coisa qualquer.  A vida, parece-me, é cada vez mais esse jogo de crianças em que unimos o 1 ao 17 e o 35 ao 92, e no fim olhamos para aquilo e parecesse apenas com um monte de riscos sem sentido, uma série de coisas que apenas estão ali, que não fazem sentido porque o 1 nada tem a ver com o 17 e o 35 vai dar ao 36 e não ao 92.
Continuamos.
Parei de escrever porque às vezes dá-me para não escrever. Fico a olhar para as teclas ou para o ecrã ou para o papel ou para a caneta. Ninguém percebe bem o que isso quer dizer, eu sentado à frente do computador com os phones nos ouvidos e o tempo a passar até ser de manhã. Ninguém percebe e eu também não sei explicar,
– então, não escreveste?
Ao terceiro dia parei de escrever, já não conseguia escrever uma palavra, já não conseguia escrever nada.  Já não estava com cabeça para inventar histórias, porque nas duas últimas crónicas era tudo mentira – desculpem – mas, percebem? – aquilo no Porto era tudo inventado, nada daquilo aconteceu. O David não me mandou foder, a peça já estava escrita há três meses e a Jani não andou  a pedir francesinhas às dez da manhã. Era tudo mentira porque eu achei que ia ter piada, mas depois percebi que não ia ter piada nenhuma, que não ia ter piada nenhuma as pessoas acharem que eu/
Parei. Fui à varanda fumar um cigarro. Gostava que estivesses agora ao meu lado, ia dizer-te uma coisa e tu ias rir-te com o que eu te ia dizer, ias rir-te daquela maneira, só tu é que te ris dessa maneira. Gosto quando te ris assim porque não consigo parar de sorrir quando te ris dessa maneira.
Agora já não sei onde ia, mas não interessa, entretanto percebi como isto acaba e acho que vais gostar como isto acaba.
Continuamos.
Estamos no Porto. No terceiro dia uma aluna da ACE vem ter à mesa onde estamos sentados e pergunta-me se fui eu que escrevi o se eu não fechar os olhos, pergunta-me se eu sou o Miguel Graça. Eu fico todo contente e digo que sim. Ela dá-me os parabéns e diz que adorou e eu pergunto-lhe como ela se chama. Ela diz-me o nome dela. Eu começo a rir e pergunto-lhe se ela quer um autógrafo. Estou a rir-me porque inventei uma competição entre a Jani e o David, por causa dos autógrafos, desde que chegámos que não podemos sair à rua sem que perguntem ao David onde é que anda o Hélder ou tratem a Jani por Dra. Marta,
(estava renhido 8 – 6, para a Jani)
– deves ser atrasado, tu,
disse a rapariga. E foi-se embora.
O David ri-se, são duas da manhã e estamos no Candelabro a beber um copo. O Daniel Worm foi-se embora e a Jani está a olhar para mim com ar de quem se quer ir embora dali.
No dia a seguir veio o Dinarte. E é estranho estar a escrever isto. Ele sabe porquê.
Do princípio: por esta altura era suposto eu estar morto, por esta altura era suposto eu ter morrido. Mas não morri nem estou morto. Às vezes o que escrevo não acontece, ou então demora a acontecer.
Continuamos no Porto, agora já não tem piada, mas vou contar na mesma. Era tudo mentira, ia escrever que o David deixava de me falar porque eu o mandava para o caralho, eu dizia-lhe assim,
– vais fazer esta cena assim?, então vai para o caralho,
e ele deixava de me falar porque eu o tinha mandado para o caralho e telefonava às pessoas e dizia-lhes,
– ele mandou-me para o caralho,
e as pessoas davam-lhe razão e diziam que eu era um traste e um ingrato e uma besta, e que ele me devia dizer,
– não aturo mais as tuas merdas, estou farto de ti, estou farto que me dês cabo da cabeça com a merda dos teus textos de merda, estou farto de dar cabo da minha vida por causa de ti – sabes quantas vezes já dei cabo da minha vida por tua causa?,
e que a Jani engordava dez quilos em três dias e que eu a chamava de porca gorda enquanto ela continuava a comer francesinhas até não haver amanhã e eu aos gritos,
– Jani, pára de comer, estás a ficar uma baleia,
e o Dinarte ameaçava que me dava um excerto de porrada, que me deixava todo partido no meio do chão enquanto me segurava pelos colarinhos de madrugada no Plano B e que o Daniel desistia do projecto porque eu não conseguia acabar o texto.
Agora não tem piada nenhuma. Agora já não tem piada nenhuma. Agora já viemos do Porto e já fizemos o espectáculo. Agora já acabou. E estou para aqui sozinho a escrever isto e apetece-me ir ter com eles.
Não sei.
A Jani falou em família no outro dia. É a segunda vez que isso acontece em peças minhas e acho que é isso que quero que aconteça sempre.
A sério que não sei. Acho que chegamos a esta altura, a meio da vida se tivermos sorte, e começamos a tentar perceber como é que chegámos aqui, e como não fazemos a mínima ideia de como chegámos aqui, começamos a achar que o problema foi não termos pensado nisso, foi não termos pensado nas coisas, foi termos deixado que as coisas acontecessem sem pensar que podiam acontecer de outra maneira. Depois achamos que daqui para a frente vai ser diferente, que vamos controlar tudo, mas não controlamos nada.
Hoje não conseguia dormir. Estou habituado, às vezes acho que não durmo, que apenas caio inconsciente ou desmaio de cansaço porque não aguento mais. Às sete da manhã estava a olhar para o relógio e a pensar,
– são sete da manhã, o que é que estou a fazer acordado às sete da manhã?,
depois consegui adormecer e sonhei contigo. No meu sonho tudo isto fazia sentido e caminhava para um único lugar. E tudo fazia sentido. Tudo fazia mesmo imenso sentido. Achas que tudo isto está a caminhar para um único lugar mesmo que seja muito distante?
Vou confessar-vos uma coisa que só algumas pessoas perceberam, a peça chamava-se Minotauro porque é assim que eu vejo as pessoas, como elas se sentem, como um minotauro, metade uma coisa e metade outra, ao mesmo tempo monstros e ao mesmo tempo humanos, sem saberem bem quem são, encerradas nas paredes de um labirinto sem saída, sem família, sem pai, sem mãe. Sem saberem a que sítio pertencem. Sem amor. Apenas a solidão de um labirinto de onde não se pode sair. Apenas as paredes e o minotauro a gritar,
– quero sair daqui.
Na estreia ficámos abraçados muito tempo depois de acabar. Ela estava a chorar e eu nem sei como aguentaste, desculpa. Depois, no último dia mandei-lhe uma mensagem. Escrevi-te,
– Não queres vir hoje ao último dia? No fim fugíamos os dois para qualquer lado longe daqui e éramos felizes para sempre. Era um bom final.

E, desculpa, mas é um bom final. É mesmo um bom final.

quinta-feira, 9 de junho de 2016

MINOTAURO (2)

O segundo dia correu melhor. Acho que correu melhor. Levantámo-nos às dez da manhã, o que foi óptimo porque já não dormia três horas seguidas numa cama há mais de uma semana. O David bateu à porta, abriu a porta e disse,
– são dez da manhã, são horas de acordar, li a tua crónica e sei que te deitaste tarde, mas são horas de acordar, estás acordado?, quero dizer-te uma coisa, acho que ontem exagerei, desculpa ter exagerado,  não queria ter exagerado, mas ontem estava mal e precisava de te dizer aquilo, precisava de te mandar foder, acho que me fez bem.
Eu estava ainda de olhos fechados, estava a sonhar contigo, estava a sonhar que tu me batias à porta e dizias,
– vou atirar-me da janela,
e eu dizia,
– não te preocupes, eu apanho-te.
Saímos os três e achamos que vai ser bom tomar o pequeno-almoço numa esplanada. Sentamo-nos. Vem a empregada. Eu quero um croissant misto e uma meia de leite, o David acende um cigarro e diz que não quer nada e a Jani diz,
– quero uma francesinha e uma bifana,
eu olho para ela e ela diz,
– o que é que foi?, tenho fome.
Eu digo que não disse nada e a empregada diz-me,
– vocês parece que me andam a perseguir,
– hã?,
digo eu.
– Viemos ontem juntos no comboio, eu reparei neles por causa da novela, e agora estão aqui a tomar o pequeno-almoço,
ela diz isto e não pára de olhar para mim, eu digo-lhe que isso deve ser um sinal e o David desata-se a rir. A Jani diz,
– a sério?,
e eu digo-lhe que estamos a ensaiar uma peça, que eu sou escritor, que eu escrevi uma peça para eles e que estamos no Porto a ensaiar, que estreamos para a semana em Lisboa.
– Eu adoro escritores,
diz ela,
– são misteriosos,
diz ela. Depois a Jani olha para ela e diz que está cheia de fome e ela pede desculpa e vai-se embora. É uma gorda quem traz a seguir o croissant e o resto das coisas.
Os ensaios estão a correr bem. Eles perguntam-me muitas vezes,
– o que é que isto quer dizer?
ou,
– quando é que acabas esta cena?,
e eu olho para a peça e digo,
– não sei,
ou então apenas não digo nada. Acho que está a correr bem.
À noite jantamos todos juntos, eu, a Jani, o David e o Daniel Worm, que assistiu ao ensaio da tarde e que me disse,
– já tens pouco tempo para acabar o texto, estreias para a semana.
E eu sei que tenho pouco tempo. E acho – não sei – que estou preocupado. Estou preocupado comigo e com o texto. Acho que não é uma questão de as pessoas perceberem, acho que é uma questão de eles perceberem. Acho que se eles perceberem o que eu quero dizer, tudo vai correr bem.
Acho que tenho de me concentrar. Acho que tenho de me focar. Não ando bem.
À noite vamos a um bar que tem um balcão que parece o do Ray’s,
– ficamos aqui,
digo eu. Eles estão preocupados porque o texto não está completo e porque faltam as músicas. Eu digo para eles não se preocuparem, eu digo que o melhor é fazermos um brinde, que tudo vai correr bem. Mais tarde, ao nosso lado, no Candelabro (que é outro bar) ouvimos um tipo dizer a outro tipo que ele continua com vontade de descarregar tudo em cima de alguém, ele diz que precisa de descarregar o que sente em cima de alguém, que hoje vai engatar uma gaja e descarregar tudo em cima dela,
– apetece-me foder uma gaja até a partir aos bocados, apetece-me foder uma gaja com tudo o que sinto, com tanta raiva que a mande para o hospital, vou fodê-la tanto que a vou deixar toda partida nas urgências, acho que é isso que quero fazer, rebentar com ela até não poder mais,
nós ouvimos o que ele está a dizer, e mesmo ele estando bêbado dá vontade de rir e por isso começamos a rir. Se calhar não devíamos rir. A Jani não se ri. A Jani olha para nós e diz que vai para casa, que está farta de estar ali. O David vai também. São duas da manhã,
– estou cansado,
diz ele, e vai com ela. Eu estou à espera que a rapariga que adora escritores misteriosos apareça à minha frente para eu meter conversa. Mas ela não aparece. Não tenho sono. Não quero ir para casa, até porque estou muito longe de casa. Eles voltam-se para trás ao fundo da rua, olham para mim e acenam um adeus. Eu não reajo. Apenas fico ali, sozinho, à espera que alguém me salve de mim próprio.

quarta-feira, 8 de junho de 2016

MINOTAURO (1)

Isto vai ser difícil. E por isso corremos, corremos porque temos de correr, porque se não corrermos o comboio há-de partir sem nós e nós havemos de ficar onde estamos e nós não queremos ficar onde estamos, parados ao lado uns dos outros, com as malas nas mãos e o comboio a partir sem nós e nós com aquela sensação de que tudo está a correr mal, que há sempre um semáforo vermelho ou uma velhinha que atravessa com dificuldade a passadeira, e que ambos são responsáveis por estarmos parados a olhar uns para os outros enquanto o comboio partiu sem nós. Mas isso não aconteceu. Quase aconteceu, mas não aconteceu. E mesmo tendo o David adormecido, mesmo tendo a Jani furado um pneu e mesmo tendo eu achado que era boa ideia procurar em todas as bombas de gasolina a única marca de tabaco que ainda consigo fumar, a verdade é que conseguimos encontrar-nos os três à entrada de Santa Apolónia quando faltava um minuto para o meio-dia. E por isso corremos. Corremos porque não queremos ficar aqui, queremos ir para o Porto porque mesmo sendo aqui ao lado, o Porto é muito longe, e nós queremos ir para muito longe.
Durante a viagem a Jani tira-me uma fotografia. Não falamos muito. Estamos cansados. Ontem foi uma noite complicada, parece que todas as noites, de uma maneira ou de outra, na rua ou em casa, são complicadas. Eu publico no facebook a fotografia que a Jani me tirou, escrevo,
- fuck happiness,
e espero que percebas o que quero dizer, espero que percebas que o que quis dizer foi,
- que se foda a merda da felicidade porque parece que não tenho direito a ela,
espero que tenhas percebido isso, que foi isso que quis dizer.
Durante a viagem levamos com um casal com uma criança aos berros. O David adormece e acorda de trinta em trinta segundos. A Jani diz-me que cheira mal, que cheira muito mal, está de costas e não percebe que os pais estão a mudar a fralda da criança mesmo ali atrás dela, e eu dou por mim sem saber se quero matar os pais, a criança ou a mim mesmo.
Chegamos ao Porto e o Daniel Worm está à nossa espera. Vamos até à Mala Voadora, onde vamos ficar até Domingo, e como se fôssemos parolos que chegam ao Porto, assim que pousamos as malas, vamos comer uma francesinha.
Estamos cansados mas ainda fazemos um ensaio. Estamos com problemas com a primeira cena, parece que não está a resultar, parece que todos sabemos o que tem de acontecer para que resulte mas que ninguém consegue dizer o que falta ou o que está a mais. Repetimos a primeira cena. Corrigimos e marcamos. Eles estão exaustos e só ensaiamos a primeira cena.
Vamos às compras e jantamos em casa. Estamos na varanda a falar sobre a primeira cena. A discutir a primeira cena. Depois vamos ao Maus Hábitos. Eu tiro uma fotografia e a Jani pergunta-me,
- porque é que estás a tirar uma fotografia?
O Daniel Worm já não está connosco, estamos só os três, Ele vem ter connosco amanhã ao almoço. A Jani pergunta,
- o que é que estás a fazer?,
eu digo,
- nada,
digo que não é nada mas não é verdade, e a Jani,
- o que é que estás a fazer?,
enquanto eu olho para ela e para o telemóvel e digo,
- nada.
O David levantou-se, está todo fodido. Olho para ele e percebo que tudo nele está mal, que tudo está ao contrário, que ele já quase não sabe quem é, parece que a vida dele é apenas o que eu escrevi, que ele é apenas uma personagem a quem eu fodi a vida. Eu digo-lhe que tudo vai correr bem. Digo-lhe,
- David, vai tudo correr bem.
 Ele diz-me,
- vai-te foder,
sem sequer hesitar, diz-me,
- vai-te foder,
enquanto a Jani se levanta e lhe pega na mão e o leva para longe e lhe diz,
- não vale a pena.
Depois voltamos para casa, que não é a nossa casa porque não estamos em casa, estamos no Porto, na Mala Voadora, eles num quarto e eu noutro. Não falamos. Eles vão dormir e eu fico acordado. O tempo passa e eu continuo aqui até o Sol nascer e ser de manhã.

segunda-feira, 30 de maio de 2016

PLANO B

Começo a perceber o porquê. Começo a perceber o porquê das coisas acontecerem da maneira como acontecem. Começo a perceber que há uma razão para tudo isto e que no final tudo há-de fazer sentido, que no final hei-de olhar para trás e dizer,
 – ah!,
e rir-me e perceber que só se me afastar e olhar para tudo, para tudo o que aconteceu, é que vou conseguir perceber que afinal havia um objectivo, que afinal não foi tudo aleatório, que afinal eu estava enganado.
Eu escrevo isto e depois levanto os olhos e leio o que escrevi. Estou a pensar,
– Mike, ainda bem que tens noção das coisas, não arrisques, um dia vais reler isto e pensar, se eu não tivesse escrito isto, não ia estar aqui, a olhar para trás, e a pensar que afinal tudo fez sentido. Se eu não escrevesse isto a minha vida ia ser aquilo que está a ser agora até ao fim, e isso não pode ser, porque se continuar assim não aguento muito tempo,
ainda bem que escrevi aquilo, ainda bem que escrevi que começo a perceber que há uma razão para tudo isto e que no final tudo há-de fazer sentido, porque se não tivesse escrito isso, era bem capaz de achar que hoje ou amanhã era capaz de me atirar da varanda, e depois, hoje ou amanhã, era bem capaz de fazer isso, de me atirar da varanda.
Acho que não estou bem. Sei que não estou bem. Fomos para o Porto e foi bom estarmos no Porto. Foi bom estarmos no Porto todos juntos. Estivemos lá cinco dias e parece que foi ontem que saímos daqui, parece que os dias passaram como os sonhos, e que ainda aqui estamos à espera de ir embora, à espera de fazer isto pela última vez.  
(parece que estes cinco dias foram um parêntesis).
Uns estão melhor, outros estão pior, mas acho que é sempre difícil para eles, acho que é difícil dizerem aquelas coisas sem saberem bem se é a última vez que as estão a dizer, e para mim é difícil saber que é a última vez que as estou a ouvir.
Agora ia falar de ti. Não vou falar de ti,
O David está preocupado porque acha que se está a transformar em mim,
– estou a beber demais, estou deprimido, a minha vida amorosa é uma catástrofe, não consigo dormir, tenho o olho esquerdo a tremer – olha para o meu olho esquerdo, olha como ele está a tremer – tenho a sensação de que vou morrer a qualquer momento, parece que tudo se resume a quantos cigarros vou conseguir fumar durante o dia, porque para cada cigarro que fumo parece que há um bocado da minha vida que se apaga e eu tenho medo de estar a fumar cigarros a mais e a apagar a minha vida.
Depois ele cala-se e olha para o mar. Estamos em Espinho, em casa da minha prima, da Cíntia, estamos em Espinho em casa da Cíntia. Ele cala-se e olha para o mar. Temos espectáculo amanhã e ele olha para o mar enquanto diz que fazer Miguel Graça lhe está a dar cabo da cabeça, que lhe está a dar cabo da vida, que desta vez lhe está mesmo  a dar cabo da vida e da cabeça.
Isto é de manhã. O tempo passa. Depois fazemos o espectáculo e vamos à Cunha comer. Quando estou no Porto vou sempre à Cunha comer. Depois continuamos. Depois vamos e vamos. Não estás aqui, acho que estou sempre a pensar nisso, no quanto gostas do Porto e no que
(pára de falar nela, ela que se foda).
Depois o tempo passa, o Zé diz que eu sou um génio, o Tiago quer ir para casa, a Carolina vai comprar cigarros, o Bruno está noutra galáxia, a Diana ri-se
(acreditas que já passou um ano?)
e a Madalena diz,
– estás parvo?
E eu olho para eles e penso que quero mesmo estar aqui, que quero viver sempre assim, a adormecer às sete da manhã, aninhado com frio numa varanda convosco, sentado no chão ou numa cadeira, a ver o sol nascer mesmo que o sol nasça do outro lado. 
E é isso.
E é estranho o sol nascer sempre do lado errado.
E a Madalena diz,
– estás parvo?,
e eu calo-me. E eu olho em volta e começo a perceber que não é complicado, que afinal é simples perceber o porquê, o porquê das coisas acontecerem como acontecem.

terça-feira, 24 de maio de 2016

CATÁSTROFE

e enquanto estou a abraçá-la, eu com os braços à volta dela, ela com a cabeça encostada no meu ombro, ouço-a dizer a meia voz,
– ainda bem que vamos para o Porto, acho que vai ajudar.
Duas horas depois estou em casa a olhar para a parede. Deixei de escrever. Não consigo escrever. Tudo o que escrevo é uma merda e por isso mando tudo pela sanita abaixo. Duas horas antes estou a falar com a minha actriz preferida, que me pergunta,
– como é que te estás a aguentar, Mike?,
e eu encolho os ombros e mordo os lábios. Não digo nada e olho para as nuvens. Acho que não estou sequer a conseguir levantar-me da cama, acho que na verdade ainda estou deitado quando estou a falar com as pessoas, com os lençóis por cima do corpo, com os olhos fechados, à espera que seja noite para poder dormir e depois acordar e afinal isto ser só um pesadelo. Mas não é.
(és tão melodramático – e depois levanto-me e passeio pela casa – se calhar devia trabalhar, se calhar devia lavar a louça ou começar a fazer reciclagem, sentir-me bem comigo mesmo, fazer a cama, limpar o pó, arrumar tudo o que está desarrumado, pôr a minha vida em ordem)  
As minhas feridas demoram a sarar. Sou assim. Se me corto a cicatriz não aparece. Ando com um penso para estancar o sangue durante o dia, depois à noite está igual. E às vezes estou assim durante muito tempo, as feridas abertas e eu a passar água oxigenada e a tapá-las com algodão. Deve faltar-me uma vitamina qualquer, ou então é só uma metáfora para a minha alma, é só deus, o destino ou o universo, a gozarem comigo.
Há uns dias sentei-me para escrever uma crónica. Ia chamar-lhe CATÁSTROFE e estava dividida em duas partes, na primeira falava sobre a morte de não sei quantas pessoas distantes que morreram num acidente qualquer lá longe onde não vemos, na segunda falava sobre mim, e falar sobre mim era falar sobre ti, sobre a tua indiferença, e de como isso era uma catástrofe, de como tu eras uma catástrofe maior do que a morte de não sei quantas pessoas lá longe, não sei onde. Ia ser uma boa crónica. Ias ficar impressionada. Depois procurei no google,
– catástrofe,
procurei  nas notícias que não vejo há 15 dias. Nada. Nenhuma desgraça. Nenhum massacre. Parecia que ninguém tinha morrido, parecia que vivíamos num planeta chá-lá-lá, numa colónia hippie, sem mortes nem tormentas, parecia que o mundo inteiro se tinha reconciliado com o destino. Fiquei irritado e fui dormir.
– Mas como é que ninguém morre?
No dia a seguir levantei-me e liguei a televisão,
– CATÁSTROFE NO MEDITERRÂNEO,
dizia o rodapé, enquanto um homem explicava o trajecto de um avião e como 66 pessoas tinham morrido. 66 pessoas mortas por minha causa, pensei. E tudo por tua causa, porque eu queria escrever uma crónica sobre ti.
E acho que não vale a pena escrever sobre ti. Para quê?
– Para quê?,
pergunta o David, que é bem capaz de ser um dos melhores actores do mundo mesmo que ninguém o saiba, quando eu lhe digo que te vou telefonar,
– para quê?,
diz o David, que anda todo fodido por minha causa e por tua causa. Não. Que anda todo fodido porque tu és ela e eu sou ele ou porque eu sou ele e ela és tu. É confuso. Mas ele tem razão, mesmo estando todo fodido da cabeça ele tem razão, porque ele está todo fodido da cabeça, tal como eu estou todo fodido da cabeça, parece que todas as pessoas à minha volta estão todas fodidas da cabeça. Parece que toda a gente está assim, fodida da cabeça, a olhar para qualquer coisa e a ver outra, a olhar para qualquer coisa e a não conseguir ver o que lá está. Parece que não somos nós, que somos outros, mas que é sempre a mesma história.
E a minha actriz preferida disse com um sorriso que era meu há umas semanas,
– bem,
quando lhe perguntei como ela estava. Eu gosto de 

terça-feira, 17 de maio de 2016

A CRÓNICA NÚMERO 100

A angústia da morte de Deus nunca me afectou porque nunca considerei a hipótese de que Ele pudesse existir. E, ainda assim, nos últimos dias, enquanto penso mais em Deus do que em mim, ajoelhado no chão da sala, de olhos fechados e cabeça baixa, com o braço direito erguido, a mão aberta, como um suplicante, tenho pedido ajuda.
Pensei que tinha acabado. Mas não. Talvez seja impossível não parar, parar de tentar. Para depois ainda ser pior.
Tenho um amigo, não vou dizer o nome dele, que não se deixa afectar por nada. Ele diz,
– não é essa merda de que podia ser pior, claro que podia ser pior, podia estar a morrer de fome em África  ou podia ter um cancro terminal, ainda no outro dia, no IPO, vi um miúdo com uns 20 anos, deitado numa cama, o cabelo rapado, todo ele a tremer, parecia um cadáver a tremer, mais magro que um esqueleto, só se viam olhos e unhas, claro que podia ser pior, mas não é isso, não é mesmo isso,
a meio do almoço. Acabei de lhe dizer como me sinto, como me estou a sentir, que parece que estou num sítio tão escuro que não me consigo mexer, que só me apetece deitar no chão e ficar assim, de olhos fechados, para não ver a escuridão à minha volta.  Eu digo-lhe que acho que vou morrer. Que desta vez não estou a aguentar. Que me sinto como uma criança pequena de quem sou obrigado a tomar conta. E assim levanto-me e tomo banho e visto-me e vou para a rua como se tivesse alguém a fazer isso por mim, a obrigar-me a fazer isso por mim. E ao almoço não quero comer e é como se pegasse no meu braço e me obrigasse a comer mais,
– só duas garfadas, se não depois não fumas um cigarro,
e eu a abrir a boca e a engolir as ervilhas com vontade de vomitar. Eu com vontade de começar a chorar e a obrigar-me a sorrir, a sorrir para toda a gente.
– Estás com bom aspecto,
dizem-me,
– estás um jovem,
e eu a sorrir, eu a olhar para as pessoas a sorrir e a dizer uma piada e a morrer por dentro. Eu morto por dentro enquanto digo uma piada e toda a gente se ri.
Não acho que seja uma questão de me ir abaixo com facilidade. Não é isso. É apenas muita coisa ao mesmo tempo, muitas coisas, umas a seguir às outras, e todas mais ou menos iguais, e todas igualmente dolorosas, e todas a contribuírem para que eu esteja assim. A minha irmã diz,
– o que é que se passa?,
e eu,
– nada,
e ela,
– não, só escreves assim quando se está a passar alguma coisa,  
e eu,
– estou óptimo,
e ela,
– Mike, o que é que se passa?,
e eu,
– nada.
E agora há um silêncio porque podia acabar assim. Mas continua.
Tenho um amigo, não vou dizer o nome dele, que não se deixa afectar por nada. Fui almoçar com ele hoje num restaurante sobre a praia. Comemos peixe e bebemos duas garrafas de vinho branco. Eu quase não comi e ele quase não bebeu, mas no final dividimos a conta a meias na mesma. Estávamos a falar da minha última peça, que vai estrear daqui a menos de um mês. Eu mandei-lhe o texto por mail e combinámos almoçar, para falarmos sobre isso. E ele estava a falar da peça, do que ele tinha achado. Depois falámos sobre nós, sobre como estamos, o que tem acontecido. E como ele é realmente meu amigo não me obrigo a comer o peixe que não quero comer nem me obrigo a sorrir o que não quero sorrir Estou mais vezes a olhar para o mar do que para ele enquanto falo.
– Tu sabes como eu sou,
diz ele enquanto eu olho para o mar com a cabeça encostada à palma da mão e o cotovelo apoiado na mesa,
– no dia em que tudo correr mal, mato-me. E por tudo correr mal não quero dizer ficar sem pernas por causa de uma mina esquecida no Ruanda ou descobrir que a minha mulher me trai com três gajos, mas não é só com três gajos, é com três gajos ao mesmo tempo, sou eu a entrar no meu quarto e a ver na minha cama a minha mulher com três gajos ao mesmo tempo, com um a dar-lhe na cona, outro no cu e outro na boca.
– O quê?
– Era uma metáfora,
diz ele.
– O que eu estou a dizer é que no dia em que tudo correr mal, dou cabo de mim. Atiro-me da Boca do Inferno ou corto os pulsos na banheira ou meto a cabeça no formo. Mas até esse dia chegar, nada me afecta. E só tens de pensar nisso, será que esse dia chegou, será que é hoje?
– Estás a ajudar imenso,
digo eu.
Ele ri-se. Encolhe os ombros,
– o que queres que te diga?, tudo isto é uma anedota, pelo menos ri-te.
Depois volto a olhar para o mar.  Estou a pensar em Deus. No abandono de Deus. Estou a pensar na possibilidade de haver um Deus que criou isto tudo e que depois nos deixou sozinhos. 
Estou a pensar em ti, no teu abandono. 
Ultimamente têm-me falado de cães, de como há cães que morrem de tristeza porque os donos morreram. E enquanto olho para o mar e para o peixe que não comi lembro-me de Gregor Samsa, ou de como Deus, no momento antes de nos abandonar, provavelmente disse,
– rebola e finge de morto.
E acaba assim, com o abandono de Deus e com o teu abandono e comigo ajoelhado a pedir ajuda, não sei se a ti se a Ele.

terça-feira, 10 de maio de 2016

DAYDREAMING

Vou começar muito bem, entre o melancólico e o divertido. Depois vai ser muito desconfortável. Mesmo sem querer, vão voltar atrás, para lerem outra vez, para tentarem perceber. E, plagiando a minha actriz preferida: um, dois, três,
Tem sido estranho acordar. Demoro cada vez mais tempo a perceber em que realidade estou. Pensei que ia conhecer contigo o novo álbum dos Radiohead, mas afinal tenho-o ouvido sozinho. Ponho-o a tocar e é isso, vai tocando. Quando acaba volta ao princípio e eu vou andando pela casa enquanto não faço o almoço e não faço o jantar.  Acho que estou a começar a perceber que o vou ouvir sempre sozinho.
Tem sido estranho acordar. Hoje acordei com a Maribel ajoelhada ao meu lado a rezar uma Avé Maria ao meu ouvido. Eu a abrir os olhos e a Maribel,
– Nossa, professor, quer me matar do coração?
eu a levantar-me e a perguntar à Maribel o que é que ela está a fazer ajoelhada ao meu lado a rezar uma Avé Maria,
– pensei que cê tava morto, professor, aí deitado no chão, o que é que é isso?, gente, e depois se levanta como Lázaro, Virgem Maria, quer me matar?, o que é que cê tava fazendo aí deitado, professor?
Eu acendo um cigarro. Olho para o relógio na parede.
– Ainda é cedo,
penso,
– tenho de me aguentar pelo menos até às onze.
– Sim... eu... tropecei... e depois... achei que estava qualquer coisa debaixo do sofá... e como estou muito cansado... sim... como estou muito cansado devo ter adormecido... foi isso.
A Maribel olha para mim e diz que eu não estou bem e que tenho de me tratar, que ela acha que Jesus me abandonou e que eu tenho de ir ter com a Idaly, uma Mãe de Santo Camdomblé que dá consultas em Cascais.
– Eu nem sei o que isso quer dizer, Maribel.
– A Idaly é minha prima, é gente séria, e tem muita pessoa famosa que vai lá na Idaly e resolve seus problemas, professor, cê devia ir também.
A Maribel dá-me um cartão que diz,
– Idaly, Mãe de Santo Camdomblé. Através da consulta com jogo de búzios, é possível identificar os seus problemas e ajudá-lo, seja na parte espiritual, amorosa, saúde, problemas financeiros... etc.
Eu não estou com vontade de suportar a Maribel e por isso quando olho para o cartão penso que na pior das hipóteses escrevo uma crónica sobre o assunto e perco 70 euros, que é o mesmo que o chulo do meu psicólogo me leva por não me resolver os problemas. E, por isso, depois de não almoçar vou até Cascais e subo até um segundo andar manhoso depois de a Maribel ter telefonado à prima a dizer que,
– é aquele professor que eu falei para você, cê acha que pode hoje?
e um silêncio,
– ah, tá bom, eu vou dizer para ele.
E ela disse que às duas da tarde a Idaly ia estar à minha espera. Tomei banho. Fiz a barba. Olhei para mim na casa-de-banho enquanto estava com uma toalha enrolada à cintura. Comecei a achar que me estão a nascer cabelos brancos, que me nasceram centenas de cabelos brancos esta semana. E era isso que estava a acontecer. Eu de toalha enrolada à cintura, ainda com alguma espuma da barba na cara, a olhar para mim ao espelho, a contar os cabelos brancos. E foi isso. Foi apenas isso.
E ao mesmo tempo, um dia depois, por causa do Romeo Castellucci, olhei para trás, para a sanita. Pensei,
– que vida de merda,
e depois voltei a olhar para mim e a pensar na merda. A pensar mesmo na merda. Que isto tudo é uma merda.  Que não há nada que aconteça que não seja uma merda. Que a merda não é apenas merda, é aquilo que acontece, é aquilo que tem acontecido. Que a merda não é a merda, a merda é muito mais do que a merda, que a merda nem sequer é acordar no chão com uma brasileira analfabeta a rezar Avé Marias porque acha que eu estou morto, ou eu a escrever para ti e tu não me leres, ou eu a tentar falar contigo e tu não me responderes, ou eu A GRITAR PELA CASA PORQUE NÃO PERCEBO O QUE ACONTECEU.
Não.
Não é nada disso.
A merda somos nós. Eu sou a merda. Tu és a merda.