domingo, 28 de junho de 2015

TEXTO BREVE SOBRE DESISTIR

Que não é fácil escrever, todos os que escrevem sabem. Há muitos que escrevem e não sabem disso, mas façamos de conta que eles não existem (que país higiénico teríamos!). Não vou dizer nomes, obviamente: mas lembro-me, de repente, do Peixoto, que escreve tão bem como fala, do Tavares das metáforas idiotas (refiro-me a Gonçalo M; o filho de Sophia só conheço como comentador da vida político-futebolística) ou do Tordo, que é uma espécie de chinelos do chinês. Todos ganham prémios e escrevem à bruta, e ainda bem para eles, mas quanto a esses façamos questão de fingir que não existem e que por isso a minha primeira frase não se aplica a eles. Aliás, faço um mea culpa, confesso que nunca li nada do que publicaram até ao fim, apenas aguentei, no máximo, 20 páginas, um erro meu, obviamente, mas defendo-me com Schopenhauer:«o que dizem ultrapassa o meu fraco entendimento:talvez tenham qualidade, mas não consigo compreendê-la e renuncio assim a qualquer juízo».
Voltando atrás, há depois uma outra dificuldade acrescida, que tem a ver com o que se pode ou não escrever porque outros hão-de ler isto, uns por curiosidade, outros por gosto, e outros ainda por desgosto, mas entre todos esses há muitos que me conhecem e que podem associar a isto ou aquilo. E assim, aviso que este texto que ainda não começou – isto é apenas o prefácio – pode ter quatro interpretações diferentes, três delas têm a ver com a minha vida pessoal (ou profissional, mas a minha vida pessoal confunde-se com a profissional), e apenas uma terá a ver com uma interpretação metafísica. Serei suficientemente ambíguo e, no final, apenas eu saberei sobre o que escrevi, e ainda que todos tenham uma diferente perspectiva, duas perguntas cairão sobre as vossas cabeças: quem tem razão? O que é que ele quis dizer realmente com aquilo?
– Apaga o que acabaste de escrever. 

segunda-feira, 22 de junho de 2015

TOMORROW, AND TOMORROW, AND TOMORROW

Caro Will,
a vida vai andando com altos e baixos, nada de diferente do habitual. Acabei de tirar o post-it da parede que dizia,
– falta um dia.
Afinal não aconteceu nada de importante, nem para o mundo nem para mim. Afinal só faltava um dia para acabar de te traduzir. E, sim, tinhas razão, ganhaste. Esmagaste-me completamente. Cada frase que passa é uma derrota. Derrota atrás de derrota. Não é fácil. Contei vinte e dois versos em que ganhei, e mais oito em que talvez esteja empatado, foi só o que consegui. Mas consegui, Will, consegui. Só que desta vez não sinto nada. Nem alívio nem felicidade. Sinto-me apenas mais velho e mais cansado. Estou muito cansado, Will, como se tudo o que fiz tivesse sido feito agora e todo o peso das coisas desabasse sobre mim. E estou a envelhecer. Estou a descobrir que estou a ficar velho. Daqui a dez anos não me reconheço, daqui a dez anos já não te consigo traduzir e vou viver com a sensação de que tudo passou e que não há nada para fazer. Sabes, estava a olhar para o post-it na parede e estive quase por substituí-lo por um que dissesse,
– é hoje.
Mas não é hoje, Will, pois não? Nem amanhã, nem amanhã, nem amanhã. Começo a achar que tudo passou, que estou a ver os meus dias como se fosse outra pessoa, não sei como mas o futuro deixou de ser uma coisa distante, de repente, sem querer, já tudo aconteceu.
E é isso, a vida vai andando com altos e baixos, mas hoje, Will, hoje parece que é um precipício sem fim.

P.S. Manda um abraço ao Ibsen, diz que sinto falta dele e que ele não se preocupe, ninguém reparou.

quinta-feira, 18 de junho de 2015

MELANCOLIA

Ando assim, distraído. Agora deu-me para andar a pé, o que é um problema quando a regressar para casa dou por mim na Parede ou em Algés, obrigado a chamar um táxi que me leve de regresso ao Estoril, a insultar-me a mim próprio porque estou a gastar dinheiro em táxis quando estava ao lado de casa. Mesmo assim, suponho que seja uma vantagem voltar a pé, se voltasse de carro dava por mim no Algarve ou em Espanha, e não havia táxi que me valesse.
Quando entro em casa falo com as minhas orquídeas, às vezes dou-lhes um beijo se estiver melancólico. Quase sempre estou melancólico. Acho que estive a vida toda melancólico. Mas às vezes estou mais. Quando estou melancólico e já é tarde sento-me à secretária e escrevo qualquer coisa como estou a escrever agora. Depois carrego no "publicar" e arrependo-me sempre, Nunca devíamos publicar nada, Tenho tido menos gostos e menos leitores, suponho que a maioria não seja melancólica, ou que não goste da melancolia. Eu gosto da palavra,
– m e l a n c o l i a
como uma espécie de janela onde as orquídeas nascem e continuam a nascer.
Ando assim, distraído. Fiz a última alteração no Peer Gynt,
                                                  (Solveig, tira-me deste caminho,
                                                  Que eu morro sem ti e morro sozinho.)
e continuo a lutar contra o Macbeth, que todos os dias me ganha e todos os dias me atrasa,
– desta vez não estás a ajudar, Will.
Ando assim, distraído. Os dias consomem-se como carvão e as noites são ilusões que me levam a caminhar até à Parede ou Algés. Estou a envelhecer mal, sem noção das coisas. Mas gosto das minhas orquídeas, gosto de as beijar quando chego a casa melancólico.

terça-feira, 16 de junho de 2015

MEIAS PALAVRAS

É quase meia-noite e estamos os três numa varanda com mais gente à nossa volta. O Pedro faz 30 anos e juntámo-nos para celebrar com vinho e comida vegetariana. Estamos a falar de As Raposas, que estreia na sexta-feira. O Victor diz que Walter Benjamin considerava o coleccionismo como um elemento de elevação do ser humano, não sei se foi isto que ele disse porque estou distraído a mandar uma mensagem enquanto eles falam,
– uns coleccionam objectos, outros arte, outros namoradas.
O Pedro ri e o Victor também. Ambos olham para mim. O Pedro diz que devíamos utilizar isto, o aqui e o agora no jogo com o espectador (por alguma razão estranha ambos acham que eu sou uma boa desculpa para a criação de um espectáculo), o Victor diz que o telemóvel também tem de entrar, que o público devia ver as mensagens e eles os dois não. Eu tento defender-me. Não colecciono nada. Só tento ser uma pessoa normal. 
Uma hora antes, a propósito de normalidade, contava eu que uma aluna, depois de me encontrar no supermercado, me perguntou junto à caixa,
– o professor também vai às compras?
como se a minha presença ali, naquele sítio tão mundano, fosse uma aberração do universo, uma contradição da ordem natural das coisas.
Acho que era isso que queria dizer na mensagem, que sou uma pessoa normal, com uma vida normal. Sonho como todos sonhamos e sou ridículo como todos somos ridículos.
Depois a noite continuou e eu vim para casa sem dizer o que realmente queria dizer.  

terça-feira, 9 de junho de 2015

O MEU EXISTENCIALISMO

Tenho um post-it à minha frente que diz,
– Faltam 15 dias.
Na verdade só faltam 14, mas tenho por hábito mudá-lo quando acordo e não antes de me deitar. Desde há uns dias que quando me levanto vou escrevendo num post-it,
– faltam 20 dias,
– faltam 19 dias,
atiro o anterior para o lixo, colo o novo na parede à frente da minha secretária e começo a minha vida. Foi assim até agora e em todos os momentos soube ao que se referia aquela contagem decrescente. Mas ainda agora, agora mesmo, levantei os olhos e vi aquela mensagem,
– faltam 15 dias,
e não me lembrei que dias eram esses e o que ia acontecer no final deles.
Muitas vezes achamos que sabemos o que vai acontecer. Quase sempre sabemos o que vai acontecer, vamos jantar,vamos trabalhar, vamos dormir. Mas depois acontecem-nos coisas que não sabíamos que existiam e nem jantamos, nem vamos trabalhar nem conseguimos dormir.
Faltam 15 dias para quê? Estarei a contar os dias finais do mundo? Os meus dias finais?
(Não sejas assim.)
A descoberta da cura do cancro? Ia continuar com exemplos de grande alcance, como energia limpa e gratuita para o mundo inteiro ou o desarmamento global, mas contentava-me com o anúncio da cura do cancro em 15 dias.
No segundo a seguir lembrei-me da razão de ser do post-it, lembrei-me para que é que faltam 15 dias, faltam 15 dias para entregar a tradução do Macbeth,
– 14,
mas gostava que fosse para outra coisa. Há coisas mais importantes e até sou capaz de entregar tudo antes do tempo. Vou tentar fazer isso e esperar que afinal os post-it na parede sejam para outra coisa, e mesmo que ainda faltem 5 ou 6 dias e já tenha entregado tudo, vou continuar a levantar-me e a trocá-los. E se não acontecer nada vou começar outra vez, dos 20 ou dos 30, talvez. Porque espero que aconteça alguma coisa, alguma coisa realmente importante, como descobrirem a cura do cancro ou tu estenderes a mão na direcção da minha.  

domingo, 7 de junho de 2015

O MEU SUICÍDIO

São célebres algumas frases finais, uma espécie de epitáfios, por vezes involuntários ou talvez inconscientes, mas que parecem sempre fazer sentido quando aplicados à obra do autor.
– Ich sterbe (estou a morrer),
disse Tchekhov a um médico alemão que lhe recomendou champagne na hora da morte.
– Mais luz,
disse Goethe à enteada depois de discutir com ela toda a noite a diversidade dos fenómenos ópticos.
– Pelo contrário,
disse Ibsen depois da enfermeira ter respondido,
– Muito melhor,
à pergunta,
– Como está ele?
Disseram estas frases e morreram, e afinal nada de significativo há nelas, todos somos iguais na morte, no último momento. Tchekhov estava com medo, Goethe queria que abrissem a janela e Ibsen, na verdade, disse,
– Em contrário,
e não,
– Pelo contrário,
estava apenas demente.
As últimas palavras de Shakespeare são também alvo de discussão. Ninguém as ouviu, estão escritas. Para os que não sabem, Shakespeare morreu três dias antes de fazer 52 anos, alguns teóricos conjecturam que o facto de ter alterado o seu testamento poucos meses antes da morte indica que foi acometido de alguma doença grave, mas a tradição tem mantido a ideia de que Shakespeare era alcoólico e morreu após uma terrível bebedeira com dois amigos, Ben Jonson e Michael Drayton. Seja como for, o certo é que antes de morrer, ao contrário de Tchechov, Goethe e Ibsen, nada disse, apenas se sentou numa mesa e escreveu num papel,
– Sometimes I’m so stupid I forget I am will.
A frase tem originado inúmeras discussões no meio académico, principalmente graças ao jogo de palavras, tão recorrente em Shakespeare, em relação a “will” – grafado com minúscula no original – que tanto se pode referir a “will” como “William” (às vezes sou tão estúpido que me esqueço que sou Will, ou seja, às vezes sou tão estúpido que me esqueço de quem sou (William Shakespeare) – tese defendida por Dreydon [1994]), “will” como “vontade” (às vezes sou tão estúpido que me esqueço que sou vontade, ou seja, às vezes sou tão estúpido que me esqueço que sou feito de força – Bloom defende esta ideia, ainda que de forma bastante romba em Shakespeare Scattered [2005]), e ainda “will” como “testamento”, (às vezes sou tão estúpido que me esqueço que sou um testamento, ou seja, às vezes sou tão estúpido que me esqueço que vou ficar para a história, que Steiner tão bem defendeu na conferência After Shakespeare [2000]. Há ainda alguns teóricos de menor renome que defendem que Shakespeare morreu a meio da frase e que ela na verdade está incompleta,
– Sometimes I’m so stupid I forget I am will[ing to start over] (às vezes sou tão estúpido que me esqueço que anseio por recomeçar),
foi uma das hipóteses  aventadas por Nuñez [2014], mas quase toda a comunidade académica a considerou ridícula e, sobretudo, desnecessária.
Se as dúvidas em relação à palavra “will”, são muitas, o certo é que a primeira parte é muito clara, aquele: «sometimes I’m so stupid» não pode ter mais do que uma interpretação. No final da vida, bêbado ou não, Shakespeare diz que às vezes é tão estúpido que. Dreyton, defende que o autor de Romeu e Julieta, velho e cansado, se tinha apaixonado por uma jovem de Stradford e que os dois amigos o tinham visitado exactamente para o avisar das tristes figuras que andava a fazer, o que valida a fórmula: «às vezes sou tão estúpido que me esqueço de quem sou». Por outro lado, o «sometimes I’m so stupid», segundo Bloom, tem a ver com uns certos negócios obscuros que o autor de O Mercador de Veneza fez no final da vida – prejudicando muita gente pobre, aliás, Shakespeare morreu rico – argumentos que Edward Bond utilizou para a peça Bingo, na qual Shakespeare morre não de bebedeira mas de suicídio,  por ter consciência moral e económica, obviamente.
Seja como for,
 – Às vezes sou tão estúpido que me esqueço que sou graça.

terça-feira, 2 de junho de 2015

BREVE TEXTO AUTOBIOGRÁFICO

«Estou triste, madame. Sinto o meu coração pesado e não sei porquê. Muitas vezes encontro-me assim, triste. Mas desta vez é diferente», dizia o Inspector no Roberto Zucco, frases que eu traduzi do Koltès e que me ficaram sempre na cabeça. Se fosse actor havia de querer fazer este Inspector Melancólico, mas não sou actor nem nunca quis ser, e por isso, ao contrário dos que amam os actores porque não tiveram talento ou sorte para o ser, são-me personagens indiferentes que tolero quendo estão calados e abomino quando querem passar-se por pessoas interessantes e exigentes, como se fossem interessantes e tivessem direito a exigências. Felizmente conheço mais de uma dúzia de excepções que contrariam a regra, caso contrário abandonaria a profissão e por certo teria um futuro auspicioso à minha espera na publicidade ou no mundo do crime.
Voltando ao Koltès, a chave está no «mas desta vez é diferente». Porque desta vez é diferente, não é? Desta vez tens a certeza que não é apenas porque sim ou porque não, desta vez estás a envelhecer, pobre carcaça, e resta-te pouco tempo. Decidi que hoje estou a meio da minha vida. Vou morrer na madrugada do dia 2 de Junho de 2048, com quase 70 anos, espero que num hotel em Las Vegas depois de apostar uma fortuna no zero e perder. E se estiver aqui, no Monte Estoril, que morra com uma bala na têmpora, que não mereci mais do que isso.
«Desta vez é diferente», desta vez não há volta a dar, desta vez estás fodido, diz uma voz na minha cabeça. Mas não é verdade. Talvez esteja triste, talvez tenha o coração pesado, talvez me encontre muitas vezes assim, mas desta vez é diferente, sei que é diferente. 

segunda-feira, 1 de junho de 2015

DOMINGO, DE MANHÃ À TARDE E À NOITE

Ando assim, sem saber bem para onde ando. Às vezes parece que estou chateado com o mundo, outras vezes ponho-me a cantar na rua,
– lá, lá, lá
porque vejo um casal de namorados de mão dada ou um velhote a apanhar a merda do cão.
Hoje fui à praia. Não tinha nada para fazer e disse,
– vou à praia
mas estava muita gente e muito calor, e por isso voltei para casa. Vi o futebol. Pensei em ti. Fiz o jantar. Pensei se estarias a pensar em mim. Nunca gostei de Domingos. Passei a infância deprimido à custa dos Domingos, o dia inteiro a imaginar no que me ia acontecer amanhã, a levantar-me cedo, a ir para a escola (nunca gostei da escola), a aturar professores que já na altura achava serem menos inteligentes do que eu, aliás, que já na altura achava serem estúpidos como portas.
Peço desculpa aos meus ex-professores de infância, o meu psicólogo disse-me anteontem que eu devia ser mais tolerante com os outros e que devia aprender a pedir desculpa,
– Não devia insultar as pessoas nem tratá-las como se fossem atrasadas mentais.
Eu disse-lhe que o horóscopo da Maya no Correio da Manhã dizia exactamente a mesma coisa e despedi-me com um,
– Vá bardamerda.
No teatro temos as matinés. Ultimamente não tenho lá aparecido, e agora até acabaram, mas mesmo assim gostava de encontrar a besta que um dia se lembrou de dizer,
– E se ao Domingo fizéssemos espectáculo à tarde? Assim os velhos podiam dormir a sesta na plateia!
para lhe agradecer pessoalmente ter estragado grande parte dos Domingos da minha idade adulta e depois enfiar-lhe um valente pontapé nos tomates.
O meu psicólogo diz que eu sou uma pessoa amarga. Eu digo-lhe que ele é um pateta alegre e que devia admitir a homossexualidade.
Odeio Domingos. Aposto que o Verão vai ser todo assim. Sozinho em casa a olhar para o relógio, as horas que não passam e eu a pensar em ti e a pensar se pensas em mim.
Amanhã vou comprar uma Playstation. De certeza que a meio de um jogo de futebol vou começar a cantar,
– lá, lá, lá.