terça-feira, 2 de junho de 2015

BREVE TEXTO AUTOBIOGRÁFICO

«Estou triste, madame. Sinto o meu coração pesado e não sei porquê. Muitas vezes encontro-me assim, triste. Mas desta vez é diferente», dizia o Inspector no Roberto Zucco, frases que eu traduzi do Koltès e que me ficaram sempre na cabeça. Se fosse actor havia de querer fazer este Inspector Melancólico, mas não sou actor nem nunca quis ser, e por isso, ao contrário dos que amam os actores porque não tiveram talento ou sorte para o ser, são-me personagens indiferentes que tolero quendo estão calados e abomino quando querem passar-se por pessoas interessantes e exigentes, como se fossem interessantes e tivessem direito a exigências. Felizmente conheço mais de uma dúzia de excepções que contrariam a regra, caso contrário abandonaria a profissão e por certo teria um futuro auspicioso à minha espera na publicidade ou no mundo do crime.
Voltando ao Koltès, a chave está no «mas desta vez é diferente». Porque desta vez é diferente, não é? Desta vez tens a certeza que não é apenas porque sim ou porque não, desta vez estás a envelhecer, pobre carcaça, e resta-te pouco tempo. Decidi que hoje estou a meio da minha vida. Vou morrer na madrugada do dia 2 de Junho de 2048, com quase 70 anos, espero que num hotel em Las Vegas depois de apostar uma fortuna no zero e perder. E se estiver aqui, no Monte Estoril, que morra com uma bala na têmpora, que não mereci mais do que isso.
«Desta vez é diferente», desta vez não há volta a dar, desta vez estás fodido, diz uma voz na minha cabeça. Mas não é verdade. Talvez esteja triste, talvez tenha o coração pesado, talvez me encontre muitas vezes assim, mas desta vez é diferente, sei que é diferente. 

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