domingo, 7 de junho de 2015

O MEU SUICÍDIO

São célebres algumas frases finais, uma espécie de epitáfios, por vezes involuntários ou talvez inconscientes, mas que parecem sempre fazer sentido quando aplicados à obra do autor.
– Ich sterbe (estou a morrer),
disse Tchekhov a um médico alemão que lhe recomendou champagne na hora da morte.
– Mais luz,
disse Goethe à enteada depois de discutir com ela toda a noite a diversidade dos fenómenos ópticos.
– Pelo contrário,
disse Ibsen depois da enfermeira ter respondido,
– Muito melhor,
à pergunta,
– Como está ele?
Disseram estas frases e morreram, e afinal nada de significativo há nelas, todos somos iguais na morte, no último momento. Tchekhov estava com medo, Goethe queria que abrissem a janela e Ibsen, na verdade, disse,
– Em contrário,
e não,
– Pelo contrário,
estava apenas demente.
As últimas palavras de Shakespeare são também alvo de discussão. Ninguém as ouviu, estão escritas. Para os que não sabem, Shakespeare morreu três dias antes de fazer 52 anos, alguns teóricos conjecturam que o facto de ter alterado o seu testamento poucos meses antes da morte indica que foi acometido de alguma doença grave, mas a tradição tem mantido a ideia de que Shakespeare era alcoólico e morreu após uma terrível bebedeira com dois amigos, Ben Jonson e Michael Drayton. Seja como for, o certo é que antes de morrer, ao contrário de Tchechov, Goethe e Ibsen, nada disse, apenas se sentou numa mesa e escreveu num papel,
– Sometimes I’m so stupid I forget I am will.
A frase tem originado inúmeras discussões no meio académico, principalmente graças ao jogo de palavras, tão recorrente em Shakespeare, em relação a “will” – grafado com minúscula no original – que tanto se pode referir a “will” como “William” (às vezes sou tão estúpido que me esqueço que sou Will, ou seja, às vezes sou tão estúpido que me esqueço de quem sou (William Shakespeare) – tese defendida por Dreydon [1994]), “will” como “vontade” (às vezes sou tão estúpido que me esqueço que sou vontade, ou seja, às vezes sou tão estúpido que me esqueço que sou feito de força – Bloom defende esta ideia, ainda que de forma bastante romba em Shakespeare Scattered [2005]), e ainda “will” como “testamento”, (às vezes sou tão estúpido que me esqueço que sou um testamento, ou seja, às vezes sou tão estúpido que me esqueço que vou ficar para a história, que Steiner tão bem defendeu na conferência After Shakespeare [2000]. Há ainda alguns teóricos de menor renome que defendem que Shakespeare morreu a meio da frase e que ela na verdade está incompleta,
– Sometimes I’m so stupid I forget I am will[ing to start over] (às vezes sou tão estúpido que me esqueço que anseio por recomeçar),
foi uma das hipóteses  aventadas por Nuñez [2014], mas quase toda a comunidade académica a considerou ridícula e, sobretudo, desnecessária.
Se as dúvidas em relação à palavra “will”, são muitas, o certo é que a primeira parte é muito clara, aquele: «sometimes I’m so stupid» não pode ter mais do que uma interpretação. No final da vida, bêbado ou não, Shakespeare diz que às vezes é tão estúpido que. Dreyton, defende que o autor de Romeu e Julieta, velho e cansado, se tinha apaixonado por uma jovem de Stradford e que os dois amigos o tinham visitado exactamente para o avisar das tristes figuras que andava a fazer, o que valida a fórmula: «às vezes sou tão estúpido que me esqueço de quem sou». Por outro lado, o «sometimes I’m so stupid», segundo Bloom, tem a ver com uns certos negócios obscuros que o autor de O Mercador de Veneza fez no final da vida – prejudicando muita gente pobre, aliás, Shakespeare morreu rico – argumentos que Edward Bond utilizou para a peça Bingo, na qual Shakespeare morre não de bebedeira mas de suicídio,  por ter consciência moral e económica, obviamente.
Seja como for,
 – Às vezes sou tão estúpido que me esqueço que sou graça.

1 comentário:

  1. Às vezes sou tão estúpida que me esqueço de o ler. (: Inspirador professor ;)

    ResponderEliminar