São célebres algumas frases finais,
uma espécie de epitáfios, por vezes involuntários ou talvez inconscientes, mas
que parecem sempre fazer sentido quando aplicados à obra do autor.
– Ich sterbe (estou a morrer),
disse Tchekhov a um médico alemão que
lhe recomendou champagne na hora da
morte.
– Mais luz,
disse Goethe à enteada depois de
discutir com ela toda a noite a diversidade dos fenómenos ópticos.
– Pelo contrário,
disse Ibsen depois da enfermeira
ter respondido,
– Muito melhor,
à pergunta,
– Como está ele?
Disseram estas frases e morreram, e
afinal nada de significativo há nelas, todos somos iguais na morte, no último
momento. Tchekhov estava com medo, Goethe queria que abrissem a janela e Ibsen,
na verdade, disse,
– Em contrário,
e não,
– Pelo contrário,
estava apenas demente.
As últimas palavras de Shakespeare
são também alvo de discussão. Ninguém as ouviu, estão escritas. Para os que não
sabem, Shakespeare morreu três dias antes de fazer 52 anos, alguns teóricos
conjecturam que o facto de ter alterado o seu testamento poucos meses antes da
morte indica que foi acometido de alguma doença grave, mas a tradição tem
mantido a ideia de que Shakespeare era alcoólico e morreu após uma terrível
bebedeira com dois amigos, Ben Jonson e Michael Drayton. Seja como for, o certo
é que antes de morrer, ao contrário de Tchechov, Goethe e Ibsen, nada disse,
apenas se sentou numa mesa e escreveu num papel,
– Sometimes I’m so stupid I forget I am will.
A frase tem originado inúmeras
discussões no meio académico, principalmente graças ao jogo de palavras, tão
recorrente em Shakespeare, em relação a “will” – grafado com minúscula no
original – que tanto se pode referir a “will” como “William” (às vezes sou tão estúpido que me esqueço que
sou Will, ou seja, às vezes sou tão estúpido que me esqueço de quem sou
(William Shakespeare) – tese defendida por Dreydon [1994]), “will” como “vontade”
(às vezes sou tão estúpido que me esqueço
que sou vontade, ou seja, às vezes sou tão estúpido que me esqueço que sou
feito de força – Bloom defende esta ideia, ainda que de forma bastante romba em
Shakespeare Scattered [2005]), e
ainda “will” como “testamento”, (às vezes
sou tão estúpido que me esqueço que sou um testamento, ou seja, às vezes
sou tão estúpido que me esqueço que vou ficar para a história, que Steiner tão
bem defendeu na conferência After
Shakespeare [2000]. Há ainda alguns teóricos de menor renome que defendem
que Shakespeare morreu a meio da frase e que ela na verdade está incompleta,
– Sometimes I’m so stupid I forget
I am will[ing to start over] (às vezes sou tão estúpido que me esqueço que anseio
por recomeçar),
foi uma das hipóteses aventadas por Nuñez [2014], mas quase toda a
comunidade académica a considerou ridícula e, sobretudo, desnecessária.
Se as dúvidas em relação à palavra “will”,
são muitas, o certo é que a primeira parte é muito clara, aquele: «sometimes I’m
so stupid» não pode ter mais do que uma interpretação. No final da vida, bêbado
ou não, Shakespeare diz que às vezes é
tão estúpido que. Dreyton, defende que o autor de Romeu e Julieta, velho e cansado, se tinha apaixonado por uma jovem
de Stradford e que os dois amigos o tinham visitado exactamente para o avisar
das tristes figuras que andava a fazer, o que valida a fórmula: «às vezes sou
tão estúpido que me esqueço de quem sou». Por outro lado, o «sometimes I’m so
stupid», segundo Bloom, tem a ver com uns certos negócios obscuros que o autor
de O Mercador de Veneza fez no final
da vida – prejudicando muita gente pobre, aliás, Shakespeare morreu rico – argumentos
que Edward Bond utilizou para a peça Bingo, na qual Shakespeare morre não de
bebedeira mas de suicídio, por ter
consciência moral e económica, obviamente.
Seja como for,
– Às vezes sou tão estúpido que me esqueço que
sou graça.
Às vezes sou tão estúpida que me esqueço de o ler. (: Inspirador professor ;)
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