quarta-feira, 30 de setembro de 2015

NUNCA VOU ADORMECER

Não está a ser fácil. Não está a ser fácil dormir, não está a ser fácil acordar. O meu psicólogo está pior do que eu, pelo menos fala mais do que eu e por isso deve estar pior do que eu. Eu sento-me no chão e ele na poltrona. Às vezes trocamos. Depois vamos dizendo coisas. Eu gosto de estar calado. Ele sabe disso e por isso começa a falar, começa a andar pelo consultório e vai falando sobre coisas. Eu fico quieto e vou respondendo ao que ele diz. Damos conselhos um ao outro. Tentamos ajudar-nos. Gosto do meu psicólogo. Ele gosta do que escrevo e vai ver as minhas peças. Ontem disse-me que eu não percebia nada, que eu não percebia mesmo nada. Eu tinha-lhe dito que tinha a sensação que ele era capaz de se atirar para cima de um camião para me salvar a vida e ele disse a rir,
– Miguel, tu não percebes nada, tu não percebes mesmo nada.
De manhã recebo mensagens de pessoas que me dizem que estão vazias, que não sabem o que fazer, que não está a ser fácil. Ninguém me pergunta nada e isso é bom. Apenas me dizem o que sentem. Acordo, e tenho pessoas que me dizem o que sentem. Acho que não há nada mais bonito do que isso. Eu não consigo responder e vou dar aulas. Gosto de dar aulas. Gosto de olhar para todas as possibilidades que existem à minha frente, e que eles nem sequer saibam disso.  À noite nunca janto sozinho. Tenho tanta sorte. A minha médica diz-me que eu tenho de descansar e de deixar de ouvir músicas depressivas até ser de manhã, que não me fazem bem.
– Escreve, Miguel,
diz ela,
– escreve para ti.
Mas eu já não consigo escrever para mim. Já só consigo escrever para os outros. Para vocês. Tenho tantas pessoas que gostam de mim que não preciso mesmo de mais nada. E não ia dizer isto, mas vou dizer, vou dizer porque me apetece dizê-lo,
– Já nem sequer preciso de ti.
E agora fico aqui a olhar para o que disse,
– já nem sequer preciso de ti.
E paro e penso,
– já nem sequer preciso de ti.
Não sei se isto é verdade. Acho que isto não é verdade. Eu sei que isto não é verdade. Mas vou continuar a dizer que 
– já nem sequer preciso de ti.
O meu psicólogo está a escrever uma tese de doutoramento sobre a imaturidade feminina, a minha médica diz que eu não posso ficar deprimido e entretanto estou a ouvir a playlist que a Madalena me deu, e nos meus ouvidos ouço,
– I'm just a dreamer, but I'm hanging on.
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terça-feira, 8 de setembro de 2015

SE EU NÃO FECHAR OS OLHOS

Ia escrever, tenho a sorte de ter ao meu lado os melhores actores do mundo. Mas é mentira. O Bruno, a Carolina, o David, a Diana, o José, a Madalena e o Tiago não são os melhores actores do mundo.
Ia escrever, tenho a sorte de ter ao meu lado os melhores actores do mundo a representar o melhor texto do mundo. Mas é mentira. Eu não escrevi o melhor texto do mundo.
Ia escrever, tenho a sorte de ter ao meu lado os melhores actores do mundo a representar o melhor texto do mundo apoiados pelo melhor fotógrafo e pelo melhor desenhador de luz do mundo. Mas é mentira. O Pedro não é o melhor fotógrafo nem o melhor desenhador de luz do mundo.
Ia escrever, tenho a sorte de ter ao meu lado os melhores actores do mundo a representar o melhor texto do mundo apoiados pelo melhor fotógrafo e pelo melhor desenhador de luz do mundo, e com o melhor técnico do mundo. Mas é mentira. O Jorge não é o melhor técnico do mundo.
Mas é estranho, tenho a sorte de ter ao meu lado os melhores actores do mundo a representar o melhor texto do mundo apoiados pelo melhor fotógrafo e pelo melhor desenhador de luz do mundo, e com o melhor técnico do mundo.
À noite jantamos e alguém escreveu num post-it  (tenho a casa cheia de post-it)
– jantares de família,
E é isso, não é? A sensação que criámos uma família num mês. E como qualquer família temos tudo o que as famílias têm. Mas quando olho para vocês, quando estão os sete em cena e olho para vocês lá de cima, com o Pedro e o Jorge ao meu lado, tenho a sensação que todo eu me vou transformar em água e que não há nada que eu queira fazer que não estar ali ao vosso lado.
Tenho a sorte de ter os melhores actores do mundo a representar o melhor texto do mundo apoiados pelo melhor fotógrafo e pelo melhor desenhador de luz do mundo, e com o melhor técnico do mundo. E mesmo que isso seja mentira, para nós é verdade. Para nós é verdade, e se para nós é verdade, é porque é verdade.
Como é que tudo isto começou? Depois eu rio-me e não digo mais nada. Tudo isto começou com o Estado Islâmico, com o John Grant e contigo. Sim, a culpa não é minha, é tua. Porque tudo isto foi um acto de amor. E talvez por isso as pessoas vão dizer que afinal não se sentem mal, que se sentem bem.
O importante é não ter medo, o importante é não pensar.

SE EU NÃO FECHAR OS OLHOS

16 a 20 de Setembro no Teatro Municipal Mirita Casimiro (Monte Estoril)
23 a 27 de Setembro no Teatro do Bairro (Lisboa)

domingo, 6 de setembro de 2015

COMO DESAPARECER COMPLETAMENTE

Escreve, disse ele. Escreve qualquer coisa.
Estou a desaparecer.
A minha médica às vezes pergunta como estou. Eu respondo que estou bem. E estou bem. Não estou doente, não me dói nada. E como não estou doente nem me dói nada, porque não me dói nada, nem o joelho nem a cabeça nem o peito, é porque estou bem. Há bocado até me fartei de rir com uma anedota que me contaram, era sobre um anão e um preto e começava numa casa de banho, mas não me lembro como acabava. Estou cansado. Acho que afinal me dói qualquer coisa, afinal acho que estou doente. No outro dia disseram-me,
 – tens muitas razões de queixa, tu
num tom irónico. E não tenho. Se pensar no assunto não tenho razões de queixa.  Mesmo se não pensar no assunto sei que não tenho razões de queixa.
Mas estou a desaparecer.
O mais difícil às vezes é encontrar uma razão para fazer as coisas. Faz o almoço, faz o jantar, limpa a casa, vê as notícias, lava a loiça, fala com as pessoas, vai ver o teu e-mail, toma um banho, compra um casaco, lê qualquer coisa, vai à rua, sorri para as pessoas, sê simpático, sê simpático foda-se, senta-te e lê qualquer coisa, ouve música, não dês um murro na parede, para que é que deste um murro na parede? E entretanto fecho a porta e olho para mim.
Estou a desaparecer.
Tive de acrescentar furos aos cintos. Emagreci tanto que nada me serve. Tenho em mim o desconforto de um caixão. Parece que estou a encolher. A encolher tanto que por muitos furos que acrescente nenhum cinto será suficiente para me apertar tanto que eu sinta o aperto de um abraço.
É assim que me sinto. Estás a plagiar-te. Vai à varanda, olha para a Lua e pensa neles. Já estou na varanda, já estou a pensar neles. Não faças isso. Não escrevas isso. Não escrevas o que vais escrever. Está bem, Vou escrever outra coisa.
Estou a desaparecer. Só tenho pele e osso, percebes? Só pele e osso. Não. Já nem pele tenho, sou só ossos. Sou só ossos que se mexem porque se continuam a mexer. Achas que consegues ver os meus ossos?
Não estou a desaparecer.