sábado, 26 de abril de 2014

ANA

Eu estava nervoso. A Ana, o Pedro, o Fillol, a Rita e o Sá vieram ver o ICTUS. São os meus amigos mais antigos. Não os vejo durante meses. Aniversários e pouco mais. Gosto tanto deles e de estar com eles. Mas é assim que a vida se faz, cheia de pessoas que não vemos e de abandonos, cheia de recordações que se atiram para uma mesa com um sorriso. E passaram quantos anos, perguntamos a meio da conversa?
Eu não estava nervoso por causa deles, estava nervoso por causa da Ana. 
Namorei cinco anos com a Ana. Mais. Acho que foram cinco anos e meio. 
A Ana é a melhor recordação que tenho. Quando nos decidimos separar, ambos sabíamos por que o estávamos a fazer, e ambos o queríamos fazer. Desses cinco anos e meio que passámos juntos, muita coisa correu mal. Houve muitos gritos, lágrimas e dor. Às tantas já não conseguíamos sequer olhar um para o outro. Hoje não me lembro de como isso aconteceu, nem me lembro de sentir isso. Houve muita ingenuidade. Éramos miúdos a tentar ser adultos. E havia tanta coisa contra nós: a família, os cursos, a rotina. Não estou a dizer tudo. Não gosto quando não estou a dizer tudo. Vou dizer tudo no próximo parágrafo.
Hoje quando me lembro de ti, Ana, só me lembro da tua cabeça no meu colo. É disso que me lembro.
Esta merda de vida que faz de nós estranhos.
Esta merda de vida. 
Fiquei tão nervoso quando te vi. Fiquei tão feliz quanto te vi. Fiquei tão triste quando te vi. Porque não merecemos, pois não, Ana? Não merecemos o que nos aconteceu. E é tão tarde para voltar para trás, não é, Ana? É tão tarde para voltar para trás. Mas podemos voltar para trás, Ana. Achas que podemos? Eu não sei, porque eu não sei nada. Mas tu? Achas que podemos? Achas que ainda podemos?

quinta-feira, 24 de abril de 2014

HEY, WILL, HOW ARE YOU DOING?

Estou tão vazio que quando acabar a CASSIOPEIA me vou apaixonar. Vou apaixonar-me a sério, com filmes no sofá e passeios de pés descalços à beira-mar. Se for a tempo ainda vou celebrar o 25 do 4. Vou gritar, «viva a liberdade», e insultar os polícias, se houver polícias, mas deve haver polícias, vou gritar «filho-da-puta» de boca bem aberta. Não. Isso seria demais. Lamento, mas isso não vou fazer. Isso seria demais, nem eu acreditaria nisso. Vou apaixonar-me, isso chega.
Estou farto de ser assim. Vou passar a beber água e sorrir quando me sorriem. Vou apanhar sol. É isso. Hei-de sair de casa um dia e dizer que vou apanhar sol. Vou dizer para a cama depois de me levantar: «vou apanhar sol», e a cama há-de sorrir-me e dizer-me sem voz, «senta-te numa esplanada, pede uma água e apanha sol: tudo vai fazer sentido». Toda a gente gosta disso, por que não hei eu de gostar? Que frase complicada. Gostava de escrever com erros ortográficos e gramaticais. Gosto de pessoas que escrevem no facebook a vida que têm com erros ortográficos e gramaticais. Gostava de ser estúpido. Se eu fosse estúpido a vida de certeza que faria sentido. E se estivesse numa esplanada, ao sol, a escrever a minha vida com erros ortográficos e gramaticais, então seria o pico da felicidade humana. As pessoas haviam de dizer que estou com bom aspecto, que rejuvenesci, e eu ia gostar de ouvir isso e iria sorrir, iria sempre sempre sorrir, como um pateta.
O ICTUS está a acabar. Faltam quatro dias para as personagens morrerem, quatro dias para deixarem de existir. Devia estar deprimido, mas não vale a pena. Depois há-de começar tudo outra vez, com outra peça, outras palavras. O Shakespeare, que sabia tudo antes de nós sabermos, percebeu cedo a verdade das coisas: tudo acaba e tudo se repete, e o tudo é um nada maior que o infinito.
Vou apaixonar-me. Vou acabar a CASSIOPEIA e o ICTUS vai acabar. Depois vou olhar para ti e vou apaixonar-me. Vou apaixonar-me mesmo. E seremos feitos da mesma matéria que os sonhos.

quarta-feira, 23 de abril de 2014

ESCREVER

Quando escrevo alguma coisa, ponho tudo o que tenho lá dentro. Isso não é agradável. Nem agradável nem saudável, uma rima que não quis fazer mas que agora que a fiz não a quero desfazer. Vou mantê-la.
Não conseguimos viver a vida. Acho que ninguém consegue. Todos encontramos uma forma de escapar, uma forma de fingir que a vida é qualquer coisa que passa ao nosso lado, que nós a estamos a ver mas que ela não existe. O tempo passa depressa, já estamos na Páscoa e parece que foi ontem, mas a culpa é nossa. Não vivemos todos os dias como se fosse o último e por isso temos medo. Eu não tenho medo.
Tenho muitos problemas.
Estou a escrever uma peça. Chama-se CASSIOPEIA. Estreia daqui a 22 dias e ainda não a acabei. Não estou preocupado com isso. Comecei a pensar nela em Dezembro, comecei a escrevê-la a meio de Março. Tinha um prazo, estou atrasado um mês. Não estou preocupado com isso. Falta-me só a última cena. São doze, já escrevi onze. Os actores estão a ensaiar. Falta-me a última cena. É o texto mais difícil que já escrevi. Todos são difíceis. Mas este parece estar a invadir a minha vida. O meu método está a dar cabo de mim. Não gosto de escrever sobre como escrevo, parece-me uma coisa que é só minha, que ninguém tem direito a sabê-la. Estou preocupado comigo. Parece que estou a desistir, sinto-me a desaparecer.
Sabem como um fósforo se acende? É assim que eu me sinto, todos os dias. Todos os dias como se fosse uma chama enorme que depois se acalma e tenta respirar. E esta última cena, esta última cena está a dar cabo de mim de uma maneira tão grande que me afastei dela e escrevi isto. Não vejo ninguém, não estou com ninguém, A minha família pergunta-me por que não fui ao almoço de Páscoa. E eu não sei responder.
Não sou eu.
Mas falta uma cena, uma cena apenas, a mais difícil. Escritores de merda com ideias de merda. Odeio todos os escritores. Menos o F. Scott Fitzgerald, o Hemingway, o Joyce, o Poe, o Carver, o Faulkner, a Dorothy Parker (com quem eu me poderia ter casado), o Tennessee Williams, o Capote e o Shakespeare. Bela lista. O resto são uns merdas.