Acho que tenho falado demasiado sobre o Neil e pouco sobre
mim. Não é que tenha medo que as pessoas não saibam quem eu sou, mas, não sei,
se calhar um dia alguém pega nestes textos e faz disto uma espécie de peça, de
peça de teatro, uma espécie de concerto, uma peça-concerto, com dez músicas ou
um monólogo dividido em dez partes, e depois penso nas pessoas que estão
presentes a assistir, nas poucas pessoas que estão presentes a assistir e no
pouco que elas sabem sobre mim, e não é que isso me preocupe, porque não me
preocupa, mas acho que tenho falado demasiado sobre o Neil e pouco
sobre mim.
Há dois dias era já de madrugada e tu estavas a lavar os
dentes com a porta aberta. Íamos dormir umas três horas porque ficámos a
conversar até muito tarde. Estamos nessa fase, em que conversamos até ser muito
tarde. Eu estava a olhar para ti sentado à mesa enquanto fumava um cigarro e tu
estavas de cuecas e com uma t-shirt minha.
Eu estava a olhar para ti a pensar,
– como é que isto aconteceu?,
e depois saíste da casa-de-banho e sentaste-te ao meu colo e
abraçaste-me, e eu a pensar,
– como é que de repente isto aconteceu?
As pessoas não nos vêem juntos, não é metafórico, é mesmo
verdade, raramente saímos à rua os dois, e quando damos a mão ninguém nos está
a ver. E por isso as pessoas olham para mim e dizem,
– tens a certeza que isso não é só na tua cabeça?,
ou,
– ponho as minhas
mãos no fogo em como isso não é verdade,
e dizem isso com tanta convicção
(não gosto desta palavra)
e dizem isso com tanta certeza que começo a duvidar que seja
mesmo verdade que estejas agora sentada ao meu colo, de cuecas e t-shirt, a abraçar-me enquanto
perguntas,
– estás a pensar em quê?
Vou fazer um silêncio. E agora vou continuar. Vou falar sobre mim.
Não tenho muitos amigos, mas sou capaz de dar por mim a abraçar uma pessoa a
meio da noite enquanto ela me diz,
– senti tanto a tua falta,
e acho que isso é bom, acho que isso diz qualquer coisa
sobre mim, acho que isso é importante porque se algumas pessoas sentem a minha
falta isso quer dizer que eu sou importante para elas, mesmo que haja outras
que mal eu me aproxime digam,
– bem, tenho de me ir embora.
O Neil nunca disse isso, e ontem, às quatro da manhã,
estamos os dois abraçados no centro de Cascais,
– april is
the cruelest month, breeding
grita o
Neil,
– liquor
out of the dead land.
O Neil está bêbado, o Neil está sempre bêbado, mas às
sextas-feiras bebe demais e é capaz de se pôr a fazer variações sobre T.S.
Eliot, aos berros no centro de Cascais, enquanto um polícia se aproxima e nos
diz para termos calma,
– o que é que se passa aqui?, é melhor terem calma,
e eu, sem saber como, mesmo estando menos bêbado que o Neil também
estou a cair, peço desculpa pelos dois e digo que o vou levar a casa, que
saímos de uma despedida de solteiro e que ele é o noivo,
– mas há aqui algum problema?,
insiste o polícia,
– sim,
digo eu,
– temos um problema filosófico,
digo eu,
– quando Schopenhauer deu um cacho de uvas brancas a uma
rapariga de dezassete anos num passeio de barco, e ele tinha na altura quarenta
e três/
ia perguntar-lhe se o
amor não será uma simbiose de contrários, o belo com o feio, o novo com o
velho, o júbilo com a melancolia,
mas ele volta-nos as costas enquanto diz,
– cambada de bêbados,
e o Neil se encosta ao meu ombro e volta a gritar,
– maybe I
should go home, I don’t want problems with the law, I just want to fuck the
law,
e o polícia a olhar para trás e eu a rir-me e o Neil ainda
mais alto,
– fuck the
law, fuck you mister policeman,
e o polícia,
– bem, bem...
E lá vamos os dois, rua acima, eu a levar o Neil às costas
enquanto penso em ti, talvez nua, talvez vestida, deitada na tua cama, longe de
mim porque estou a carregar com o Neil às costas, e o Neil a recitar William
Blake e eu a dizer,
– não és o Corto Maltese, pára de dizer poemas,
e depois paramos porque o Neil acha que vai vomitar e não
quer vomitar para cima de mim e eu não quero que ele vomite para cima de mim. Mas o Neil não é gajo para vomitar e depois
de uns segundos a olhar para o céu, senta-se no chão encostado a uma parede. Eu
sento-me ao lado dele. Estamos os dois sentados no chão encostados a uma
parede.
– Estás todo fodido,
digo. Ele acena com a cabeça. Ele concorda,
– I’m all
fucked up.
O Neil diz que não é justo, que ele não tem de sofrer por
minha causa, que ele me ensinou os acordes, as bases, os truques,
– it’s not
fair,
diz o Neil.
O Neil diz que com o tempo até podemos tocar juntos à noite, ele diz que
eu se calhar estou farto do teatro, que estou farto de escrever, que estou
farto de whisky. O Neil diz que eu estou a mudar a minha vida mas que ele não
tem de pagar por isso, que ele não quer ser infeliz por mim.
– The woman
who is a goddess,
diz o Neil,
– she
changed everything,
diz o Neil.
Mas os meus amigos dizem que tenho de ter cuidado, que eu
tenho de ter calma. Os meus amigos não querem que eu sofra. Os meus amigos
estão preocupados, os meus amigos dizem,
– aquela miúda do Schopenhauer escreveu no diário, hoje o
velho deu-me um cacho de uvas brancas e eu senti vontade de vomitar porque ele
tinha tocado nelas,
– se calhar estás a imaginar coisas,
dizem os meus amigos.
– I’m a
friend,
diz o Neil,
– and I never
said that,
diz o Neil.