quinta-feira, 27 de março de 2014

A ANGÚSTIA DO AUTOR ANTES DO MOMENTO DA ESTREIA

Estou a escrever este texto ontem, sentado em casa, sozinho, a tentar que os momentos que me escapam não fujam de mim. Foi um dia longo. Estreamos hoje.
Estive nervoso o dia todo, não foi bem nervoso, foi tenso. Passei o dia a caminhar pelo teatro, quando fico assim gosto de andar, não é que goste de andar, as pernas movimentam-se e eu vou atrás delas. Passeio pelo foyer, pelos camarins, vou até à rua, volto para trás. Pelo caminho passo pelos actores, que julgam estar mais nervosos do que eu. O encenador desapareceu. Fui a Lisboa para uma entrevista. As perguntas são complexas e às vezes consigo dizer qualquer coisa de jeito. Volto para o teatro. Tenho ideia de que passei o dia fazer coisas mas não me lembro o quê. Os minutos avançam como horas, mas as horas passam e não temos tempo. A culpa é da estreia.
Quis fazer operação de vídeo, deve ter sido uma forma que o meu subconsciente arranjou para me obrigar a acalmar. Não resultou.
Ao fim da tarde estou enfiado na cabine, os actores dão entrevistas e dizem coisas sobre mim, mas eu não as ouço, luto para resolver problemas de imagem, tenho de levar isto a sério. Estou sentado numa cadeira com um projector à frente. Disse que nunca mais o fazia, mas volto a fazê-lo. Tento ser eu. Ajuda sermos todos alunos. Mas isso não me interessa.
O que é que vai acontecer agora?

A ANGÚSTIA DO AUTOR ANTES DO MOMENTO DO ENSAIO GERAL

Estou a escrever este texto hoje, sentado em casa, sozinho, a tentar que os momentos que me escapam não fujam de mim. Foi um dia longo. Estreamos amanhã.
Estive nervoso o dia todo, não foi bem nervoso, foi tenso. Passei o dia a caminhar pelo teatro, quando fico assim gosto de andar, não é que goste de andar, as pernas movimentam-se e eu vou atrás delas. Passeio pelo foyer, pelos camarins, vou até à rua, volto para trás. Pelo caminho passo pelos actores, que julgam estar mais nervosos do que eu. O encenador ganha a toda a gente. Fomos os dois a Lisboa para uma entrevista. As perguntas são simples mas eu não digo nada de jeito. Voltámos para o teatro. Tenho ideia de que passei o dia fazer coisas mas não me lembro o quê. Os minutos avançam como horas, mas as horas passam e não temos tempo. A culpa é do ensaio geral.
Quis fazer operação de vídeo, deve ter sido uma forma que o meu subconsciente arranjou para me obrigar a acalmar. Não resultou.
Ao fim da tarde elogiam-me, dizem coisas sobre mim que eu tento levar como banalidades, luto para não acreditar nelas, para não as levar demasiado a sério. Estou sentado numa cadeira a assinar livros. Disse que nunca mais o fazia, mas volto a fazê-lo. Tento ser eu. Ajuda serem quase todos alunos. Mas isso não me interessa.
O que é que vai acontecer amanhã?

segunda-feira, 24 de março de 2014

GOOD FENCES MAKE GOOD NEIGHBORS

Do que menos gosto num prédio são os vizinhos. Não é o barulho, porque não os ouço, não tenho obras ruidosas que me martelem de manhã nem recém-nascidos que me gritem de noite. Mas não gosto de vizinhos.
O regresso a casa a meio da tarde é sempre um problema. Dou por mim a olhar para as pessoas, tentando adivinhar para onde vão. Apresso o passo ou finjo contemplar a natureza se com isso conseguir evitar o contacto ocasional que a educação diz que tem de ser preenchido com palavras. Odeio os «boa tarde» tanto como os «com licença» ou os «faz favor». Às vezes, no elevador, sou obrigado a falar sobre o tempo. Que me interessa a mim que esteja a chover se já é Primavera? Que me interessa se está sol ou se está calor? Muitas vezes calculo mal a rota dos vizinhos, ou porque se demoraram a abrir a caixa do correio ou porque encontraram outro vizinho na porta da entrada e ficaram parados a falar sobre o tempo. Nessas alturas, perante a hesitação do cumprimento, finjo que apenas ali estou porque preciso de ir com urgência à clínica veterinária na porta ao lado. Mas não é fácil. Não levo um gatinho debaixo do braço nem trago um cão à trela, de maneira que quando as senhoras do balcão me perguntam,
– sim?
E eu respondo,
– estou só a ver,
sinto que elas me olham com uma desconfiança profunda, porque a única coisa que há para ver são posters de cãezinhos e gatinhos e cartazes com conselhos úteis sobre os sintomas da raiva ou como evitar as pulgas. Às vezes finjo que não sou dali, que estou a caminho de casa e que ainda é longe. Dou a volta ao quarteirão e tento outra vez. Devem pensar que eu sou um sociopata, mas good fences make good neighbors, como dizia o Robert Frost. Agora que me lembro, não era ele que dizia isso, era o vizinho, e por isso neste caso não sou o Robert Frost mas aquele que gosta de construir barreiras e de as manter. Gosto de muros à minha volta, muito altos de preferência. Alguns podem confundir isto com timidez, mas não. Simplesmente não gosto de vizinhos.

sábado, 22 de março de 2014

DIFFERENT TRAINS (1)

Acontece-me às vezes andar de comboio. Agora mais. Vou dizer que é agradável: é agradável. Ninguém olha para lado nenhum. Na era dos super-telefones olha-se para um ecrã minúsculo ou fecha-se os olhos porque a música dos headphones embala mais que a carruagem.
Acontece-me agora andar de comboio. Nos ensaios não devem sentir a minha ausência e eu gosto de olhar para as pessoas sem que elas olhem para mim. Há um grupo de quatro amigos que fala muito alto. Quando chegarmos hão-de dizer que a viagem pareceu curta, terá sido da conversa, tão sonora e interessante. Mas por essa altura não estarei a olhar para eles, estarei atento ao casal que está do outro lado da janela. Foi a mala de viagem enorme que me chamou a atenção. São novos. Estão tristes. Ele vai para qualquer lado, nenhuma mulher poria as roupas num malão daqueles. Ela tem a cabeça encostada ao ombro dele. Eu estou a olhar para ela. Não trocaram uma palavra desde que entraram. Sentaram-se. Ele deixou o malão no meio do corredor, ao lado dele. O comboio avançou. Não falaram, não disseram nada. Estou a imaginar que ele é um soldado e que vai numa missão militar para o Afeganistão. Tem o cabelo rapado debaixo do boné e é encorpado. Mas o exército não ia mandar um magala em turística para o médio oriente. Penso em aviões. Londres ou Berlim. Um casal sem dinheiro, ela tem a mãe doente e não pode ir com ele. Talvez tenha um primo distante que lhe disse que lá fora é melhor, que este pais não tem nada para nos dar.Têm os dois os olhos fechados, ela com a cabeça encostada ao ombro dele. 
Acontece-me gostar de andar de comboio. Ela abre os olhos e encara-me. Não estamos muito longe um do outro. Ela olha para mim. Um corredor e uma, duas, três filas de cadeiras duplas separam-nos. 
Não tenho escrito nada. Não consigo escrever nada. Pensei que todos os dias iria descrever os ensaios e afinal estou num comboio a olhar para eles.
Tão estranho. Quero ver para onde ele vai. Quero vê-los a despedirem-se. Aposto que depois apanham o metro até ao aeroporto, aposto que ele vai para Berlim, que ela vai chorar, que ele vai apaixonar-se por uma alemã duas semanas depois, que ela vai chorar outra vez, e amaldiçoar a mãe que continua doente e lembrar-se de mim, de mim que olhei para ela quando ela tinha a cabeça encostada ao ombro dele.
Mas estou no mesmo sítio, já regressei. Gosto de regressar.

quinta-feira, 6 de março de 2014

UM RÁDIO POR PESSOA

Muita coisa pode sair de uma noite de insónia. A Wilde saiu-lhe a Salomé, a Pessoa os heterónimos e O Guardador de Rebanhos «de um jacto», dizia ele. Eu nunca tive essa sorte, as minhas noites de insónia nunca foram assim, talvez porque nunca sofri de insónias, simplesmente não consigo dormir, ou talvez apenas não goste de dormir quando os outros dormem.
Quando eu era novo (talvez seja a primeira vez que estou a usar esta expressão), nos tempos da Universidade, achava que havia um certo glamour em amar a poesia. Pouca gente sequer gostava dela, e eu até estava num curso de literatura, por isso aproveitava todas as oportunidades para marcar a diferença. Andava sempre com livros debaixo do braço que nada tinham a ver com as cadeiras leccionadas, coisas complicadas, o Cantos do Pound, o Celan, o Cummings: eram ao mesmo tempo, achava eu, uma espécie de escudo e arma de arremesso contra os imbecis. Para além disso, lembro-me de duas t-shirts que ostentava com orgulho debaixo de um casaco de cabedal negro, uma tinha a assinatura de Rimbaud e dizia o célebre «je est un autre», comprei-a num espectáculo no Coliseu (acho) que se chamava os Filhos de Rimbaud e que juntava o Sérgio Godinho, o Rui Reininho, o Al Berto, o João Peste e o Jorge Palma (acho). O tempo passa e a memória esvai-se, e o que fomos é quase um heterónimo. A outra pedi à minha mãe que a fizesse, ela na altura fazia umas t-shirts, esta tinha o desenho do Pessoa pelo Almada e por baixo lia-se: «há metafísica bastante em não pensar em nada». Por que razão escolhi este e não outro qualquer verso é um mistério para mim, provavelmente porque ele hoje faz sentido mesmo que não fizesse na altura, ou talvez porque eu um dia não escreveria este texto se essa t-shirt não tivesse existido.
Quando eu era muito novo (outro heterónimo), não tinha direito a insónias porque me levantava às seis da manhã. Ia para o colégio de carro no banco de trás e para além do trânsito eu e a minha mãe tínhamos também o rádio por companhia. A estação era a TSF (acho) e durante um tempo que não sei quantificar – a mim parecem-me anos, mas devem ter sido dias – um pouco antes do noticiário das oito, o locutor anunciava uma música brasileira que eu ouvia todos os dias com mais atenção do qua alguma vez prestei a qualquer aula. O que me fascinava era a história que a música contava, a sequência dos versos que desembocavam num imediato, num aqui e agora que, não sei como, na altura consegui decifrar. Depois a música mudou e eu esqueci-me dela.
Já era o jovem universitário que achava um certo glamour em amar a poesia quando descobri no meio das muitas dezenas de vinyl do meu tio o Meu Caro Amigo do Chico Buarque. Lembro-me desse dia como um primeiro encontro com o passado, como a primeira vez em que percebi o valor real da distância, que as coisas nunca desaparecem. E foi só há uns meses que a Fernanda Lapa me contou que ela estava em casa do Augusto Boal quando ele recebeu pelo correio a primeira demo da música – que era para ele – que o «meu caro amigo» era o Boal, que «um beijo na família/ na Cecília e nas crianças», era para a Cecília Boal e para os filhos deles.
Não sei porquê, mas quando me convidaram para escrever este texto, pensei em tudo isto. Nestes pontos distantes que tento unir. Talvez haja uma ligação entre as coisas, qualquer coisa que eu não compreendo, qualquer metafísica que me escapa. Mas talvez não haja nada. Talvez as noites de insónia sejam só noites sem dormir, talvez não sejamos outros. Talvez o que ouvi seja mentira e a mentira esteja em mim.

*UM RÁDIO POR PESSOA estará em cena no próximo sábado, dia 8, no Teatro Municipal São Luiz, às 22h30. A entrada é livre e têm mais informações aqui: http://www.teatrosaoluiz.pt/catalogo/detalhes_produto.php?id=404

quarta-feira, 5 de março de 2014

A NOITE VEM E NÓS VAMOS

A noite vem e nós vamos. É sempre assim, vamos para algum lado, nem que seja para casa.
Gostava de dizer mais, mas parece-me que é tudo o que tenho a dizer. Não. Não é isso. Lembro-me muitas vezes do Chris Flanders, personagem de Tennessee Williams, acusado de ser «um escritor que não escreve», «a writer who doesn’t write», frase vergonhosamente plagiada pelo criador de californication, que às tantas punha uma agente a acusar o sempre cool Hank Moody de ser exactamente isso, uma negação de si mesmo, um paradoxo insustentável: um escritor que não escreve. Podemos sempre falar sobre isso, escrever sobre não se conseguir escrever, já o fiz no passado, mas hoje não, hoje apetece-me dizer que a noite vem e nós vamos, vamos para algum lado. Eu vim para o Estoril, deixei uma casa maior que este prédio e vim para aqui, perto de onde trabalho mas exilado da minha vida. Fui feliz ali, aqui sou apenas um locatário anónimo, ouço o autoclismo dos vizinhos e demoro oito passos da sala para o quarto. É ridículo. Nem tudo é mau. Às vezes saio das aulas quase de noite e pergunto-me como é que ainda tinha forças para 50 km até casa. É tudo uma questão de hábito. Estou aqui e estou bem. Posso ir aos ensaios e em dois minutos estou na escola. Mas tenho saudades dos meus cães, tenho saudades dos meus cães tenho saudades dos meus cães tenho saudades dos meus cães. Desculpem dizer isto, mas tenho saudades dos meus cães.
Desculpem.
A vida é uma merda. Não descobri isto hoje. Mas quando uma e outra vez a vida é uma merda, parece que a única coisa que vale a pena são mesmo os cães. E eu tenho saudades vossas: Blackie, Dingo e Zucco. E agora vou tentar dormir. Ontem sonhei convosco,mas a noite e vem e nós vamos, temos sempre de continuar. Temos sempre se continuar.

terça-feira, 4 de março de 2014

EM ENSAIOS (1)

Mas toda a gente, ou quase toda, ou se calhar apenas meia dúzia, me pergunta por que deixei de escrever, como se isto fosse escrever. As coisas são o que são e isto é o que é. Mas percebo que queiram ver um novo texto todos os dias, eu gostava, mas não consigo. Não consigo porque estou em ensaios, ou não consigo porque entretanto mudei de casa, ou não consigo porque o que tinha a escrever seria demasiado para que eu próprio o conseguisse verbalizar. Mas aqui estou eu, inteiro, com a promessa de o voltar a ser todos os dias, e o arrependimento de não o ter sido por cobardia ou inabilidade (na verdade estou feliz por ter estado calado: o silêncio é, a palavra não é – uma lição que os merdas que publicam tudo e mais alguma coisa deviam aprender, mas eles que se fodam).
Estou assim, sozinho e quieto, mantenho o ódio pelos outros sem saber quem eles são.
Outra coisa: começámos os ensaios de ICTUS no Teatro Experimental de Cascais, uma peça que escrevi no final de 2011 e que vai estrear no próximo dia 27 de Março. Quando se escreve um texto de teatro neste país, dá-se graças aos deuses por ele ser representado. Em princípio não haverá segundas leituras, e neste caso as coisas não vão ser diferentes. Está tudo a correr bem, o elenco é bom e as quase três semanas de ensaios de leitura serviram para esclarecer alguns pontos que ninguém compreendia, e que o público não irá compreender.
Faço um parêntesis. Sou bom a fazer parêntesis, faço-os sempre no sítio certo. Escrevi ICTUS  no final de 2011, a Lídia Muñoz e o Pedro Caeiro foram os primeiros leitores do texto, os primeiros a acreditar nele, a dizerem-me que ele valia a pena. Devo-lhes muita coisa. É uma merda as coisas não correrem como queríamos. Mas temos de viver com o que temos.
Falta menos de um mês para a estreia e há muita gente que deseja que isto corra mal, há muita gente a querer ver-nos cair. Isso não vai acontecer. Não vai mesmo acontecer.

De 27 de Março a 27 de Abril: ICTUS, no Teatro Municipal Mirita Casimiro.