sábado, 22 de março de 2014

DIFFERENT TRAINS (1)

Acontece-me às vezes andar de comboio. Agora mais. Vou dizer que é agradável: é agradável. Ninguém olha para lado nenhum. Na era dos super-telefones olha-se para um ecrã minúsculo ou fecha-se os olhos porque a música dos headphones embala mais que a carruagem.
Acontece-me agora andar de comboio. Nos ensaios não devem sentir a minha ausência e eu gosto de olhar para as pessoas sem que elas olhem para mim. Há um grupo de quatro amigos que fala muito alto. Quando chegarmos hão-de dizer que a viagem pareceu curta, terá sido da conversa, tão sonora e interessante. Mas por essa altura não estarei a olhar para eles, estarei atento ao casal que está do outro lado da janela. Foi a mala de viagem enorme que me chamou a atenção. São novos. Estão tristes. Ele vai para qualquer lado, nenhuma mulher poria as roupas num malão daqueles. Ela tem a cabeça encostada ao ombro dele. Eu estou a olhar para ela. Não trocaram uma palavra desde que entraram. Sentaram-se. Ele deixou o malão no meio do corredor, ao lado dele. O comboio avançou. Não falaram, não disseram nada. Estou a imaginar que ele é um soldado e que vai numa missão militar para o Afeganistão. Tem o cabelo rapado debaixo do boné e é encorpado. Mas o exército não ia mandar um magala em turística para o médio oriente. Penso em aviões. Londres ou Berlim. Um casal sem dinheiro, ela tem a mãe doente e não pode ir com ele. Talvez tenha um primo distante que lhe disse que lá fora é melhor, que este pais não tem nada para nos dar.Têm os dois os olhos fechados, ela com a cabeça encostada ao ombro dele. 
Acontece-me gostar de andar de comboio. Ela abre os olhos e encara-me. Não estamos muito longe um do outro. Ela olha para mim. Um corredor e uma, duas, três filas de cadeiras duplas separam-nos. 
Não tenho escrito nada. Não consigo escrever nada. Pensei que todos os dias iria descrever os ensaios e afinal estou num comboio a olhar para eles.
Tão estranho. Quero ver para onde ele vai. Quero vê-los a despedirem-se. Aposto que depois apanham o metro até ao aeroporto, aposto que ele vai para Berlim, que ela vai chorar, que ele vai apaixonar-se por uma alemã duas semanas depois, que ela vai chorar outra vez, e amaldiçoar a mãe que continua doente e lembrar-se de mim, de mim que olhei para ela quando ela tinha a cabeça encostada ao ombro dele.
Mas estou no mesmo sítio, já regressei. Gosto de regressar.

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