quinta-feira, 6 de março de 2014

UM RÁDIO POR PESSOA

Muita coisa pode sair de uma noite de insónia. A Wilde saiu-lhe a Salomé, a Pessoa os heterónimos e O Guardador de Rebanhos «de um jacto», dizia ele. Eu nunca tive essa sorte, as minhas noites de insónia nunca foram assim, talvez porque nunca sofri de insónias, simplesmente não consigo dormir, ou talvez apenas não goste de dormir quando os outros dormem.
Quando eu era novo (talvez seja a primeira vez que estou a usar esta expressão), nos tempos da Universidade, achava que havia um certo glamour em amar a poesia. Pouca gente sequer gostava dela, e eu até estava num curso de literatura, por isso aproveitava todas as oportunidades para marcar a diferença. Andava sempre com livros debaixo do braço que nada tinham a ver com as cadeiras leccionadas, coisas complicadas, o Cantos do Pound, o Celan, o Cummings: eram ao mesmo tempo, achava eu, uma espécie de escudo e arma de arremesso contra os imbecis. Para além disso, lembro-me de duas t-shirts que ostentava com orgulho debaixo de um casaco de cabedal negro, uma tinha a assinatura de Rimbaud e dizia o célebre «je est un autre», comprei-a num espectáculo no Coliseu (acho) que se chamava os Filhos de Rimbaud e que juntava o Sérgio Godinho, o Rui Reininho, o Al Berto, o João Peste e o Jorge Palma (acho). O tempo passa e a memória esvai-se, e o que fomos é quase um heterónimo. A outra pedi à minha mãe que a fizesse, ela na altura fazia umas t-shirts, esta tinha o desenho do Pessoa pelo Almada e por baixo lia-se: «há metafísica bastante em não pensar em nada». Por que razão escolhi este e não outro qualquer verso é um mistério para mim, provavelmente porque ele hoje faz sentido mesmo que não fizesse na altura, ou talvez porque eu um dia não escreveria este texto se essa t-shirt não tivesse existido.
Quando eu era muito novo (outro heterónimo), não tinha direito a insónias porque me levantava às seis da manhã. Ia para o colégio de carro no banco de trás e para além do trânsito eu e a minha mãe tínhamos também o rádio por companhia. A estação era a TSF (acho) e durante um tempo que não sei quantificar – a mim parecem-me anos, mas devem ter sido dias – um pouco antes do noticiário das oito, o locutor anunciava uma música brasileira que eu ouvia todos os dias com mais atenção do qua alguma vez prestei a qualquer aula. O que me fascinava era a história que a música contava, a sequência dos versos que desembocavam num imediato, num aqui e agora que, não sei como, na altura consegui decifrar. Depois a música mudou e eu esqueci-me dela.
Já era o jovem universitário que achava um certo glamour em amar a poesia quando descobri no meio das muitas dezenas de vinyl do meu tio o Meu Caro Amigo do Chico Buarque. Lembro-me desse dia como um primeiro encontro com o passado, como a primeira vez em que percebi o valor real da distância, que as coisas nunca desaparecem. E foi só há uns meses que a Fernanda Lapa me contou que ela estava em casa do Augusto Boal quando ele recebeu pelo correio a primeira demo da música – que era para ele – que o «meu caro amigo» era o Boal, que «um beijo na família/ na Cecília e nas crianças», era para a Cecília Boal e para os filhos deles.
Não sei porquê, mas quando me convidaram para escrever este texto, pensei em tudo isto. Nestes pontos distantes que tento unir. Talvez haja uma ligação entre as coisas, qualquer coisa que eu não compreendo, qualquer metafísica que me escapa. Mas talvez não haja nada. Talvez as noites de insónia sejam só noites sem dormir, talvez não sejamos outros. Talvez o que ouvi seja mentira e a mentira esteja em mim.

*UM RÁDIO POR PESSOA estará em cena no próximo sábado, dia 8, no Teatro Municipal São Luiz, às 22h30. A entrada é livre e têm mais informações aqui: http://www.teatrosaoluiz.pt/catalogo/detalhes_produto.php?id=404

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