terça-feira, 10 de maio de 2016

DAYDREAMING

Vou começar muito bem, entre o melancólico e o divertido. Depois vai ser muito desconfortável. Mesmo sem querer, vão voltar atrás, para lerem outra vez, para tentarem perceber. E, plagiando a minha actriz preferida: um, dois, três,
Tem sido estranho acordar. Demoro cada vez mais tempo a perceber em que realidade estou. Pensei que ia conhecer contigo o novo álbum dos Radiohead, mas afinal tenho-o ouvido sozinho. Ponho-o a tocar e é isso, vai tocando. Quando acaba volta ao princípio e eu vou andando pela casa enquanto não faço o almoço e não faço o jantar.  Acho que estou a começar a perceber que o vou ouvir sempre sozinho.
Tem sido estranho acordar. Hoje acordei com a Maribel ajoelhada ao meu lado a rezar uma Avé Maria ao meu ouvido. Eu a abrir os olhos e a Maribel,
– Nossa, professor, quer me matar do coração?
eu a levantar-me e a perguntar à Maribel o que é que ela está a fazer ajoelhada ao meu lado a rezar uma Avé Maria,
– pensei que cê tava morto, professor, aí deitado no chão, o que é que é isso?, gente, e depois se levanta como Lázaro, Virgem Maria, quer me matar?, o que é que cê tava fazendo aí deitado, professor?
Eu acendo um cigarro. Olho para o relógio na parede.
– Ainda é cedo,
penso,
– tenho de me aguentar pelo menos até às onze.
– Sim... eu... tropecei... e depois... achei que estava qualquer coisa debaixo do sofá... e como estou muito cansado... sim... como estou muito cansado devo ter adormecido... foi isso.
A Maribel olha para mim e diz que eu não estou bem e que tenho de me tratar, que ela acha que Jesus me abandonou e que eu tenho de ir ter com a Idaly, uma Mãe de Santo Camdomblé que dá consultas em Cascais.
– Eu nem sei o que isso quer dizer, Maribel.
– A Idaly é minha prima, é gente séria, e tem muita pessoa famosa que vai lá na Idaly e resolve seus problemas, professor, cê devia ir também.
A Maribel dá-me um cartão que diz,
– Idaly, Mãe de Santo Camdomblé. Através da consulta com jogo de búzios, é possível identificar os seus problemas e ajudá-lo, seja na parte espiritual, amorosa, saúde, problemas financeiros... etc.
Eu não estou com vontade de suportar a Maribel e por isso quando olho para o cartão penso que na pior das hipóteses escrevo uma crónica sobre o assunto e perco 70 euros, que é o mesmo que o chulo do meu psicólogo me leva por não me resolver os problemas. E, por isso, depois de não almoçar vou até Cascais e subo até um segundo andar manhoso depois de a Maribel ter telefonado à prima a dizer que,
– é aquele professor que eu falei para você, cê acha que pode hoje?
e um silêncio,
– ah, tá bom, eu vou dizer para ele.
E ela disse que às duas da tarde a Idaly ia estar à minha espera. Tomei banho. Fiz a barba. Olhei para mim na casa-de-banho enquanto estava com uma toalha enrolada à cintura. Comecei a achar que me estão a nascer cabelos brancos, que me nasceram centenas de cabelos brancos esta semana. E era isso que estava a acontecer. Eu de toalha enrolada à cintura, ainda com alguma espuma da barba na cara, a olhar para mim ao espelho, a contar os cabelos brancos. E foi isso. Foi apenas isso.
E ao mesmo tempo, um dia depois, por causa do Romeo Castellucci, olhei para trás, para a sanita. Pensei,
– que vida de merda,
e depois voltei a olhar para mim e a pensar na merda. A pensar mesmo na merda. Que isto tudo é uma merda.  Que não há nada que aconteça que não seja uma merda. Que a merda não é apenas merda, é aquilo que acontece, é aquilo que tem acontecido. Que a merda não é a merda, a merda é muito mais do que a merda, que a merda nem sequer é acordar no chão com uma brasileira analfabeta a rezar Avé Marias porque acha que eu estou morto, ou eu a escrever para ti e tu não me leres, ou eu a tentar falar contigo e tu não me responderes, ou eu A GRITAR PELA CASA PORQUE NÃO PERCEBO O QUE ACONTECEU.
Não.
Não é nada disso.
A merda somos nós. Eu sou a merda. Tu és a merda.

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