terça-feira, 17 de maio de 2016

A CRÓNICA NÚMERO 100

A angústia da morte de Deus nunca me afectou porque nunca considerei a hipótese de que Ele pudesse existir. E, ainda assim, nos últimos dias, enquanto penso mais em Deus do que em mim, ajoelhado no chão da sala, de olhos fechados e cabeça baixa, com o braço direito erguido, a mão aberta, como um suplicante, tenho pedido ajuda.
Pensei que tinha acabado. Mas não. Talvez seja impossível não parar, parar de tentar. Para depois ainda ser pior.
Tenho um amigo, não vou dizer o nome dele, que não se deixa afectar por nada. Ele diz,
– não é essa merda de que podia ser pior, claro que podia ser pior, podia estar a morrer de fome em África  ou podia ter um cancro terminal, ainda no outro dia, no IPO, vi um miúdo com uns 20 anos, deitado numa cama, o cabelo rapado, todo ele a tremer, parecia um cadáver a tremer, mais magro que um esqueleto, só se viam olhos e unhas, claro que podia ser pior, mas não é isso, não é mesmo isso,
a meio do almoço. Acabei de lhe dizer como me sinto, como me estou a sentir, que parece que estou num sítio tão escuro que não me consigo mexer, que só me apetece deitar no chão e ficar assim, de olhos fechados, para não ver a escuridão à minha volta.  Eu digo-lhe que acho que vou morrer. Que desta vez não estou a aguentar. Que me sinto como uma criança pequena de quem sou obrigado a tomar conta. E assim levanto-me e tomo banho e visto-me e vou para a rua como se tivesse alguém a fazer isso por mim, a obrigar-me a fazer isso por mim. E ao almoço não quero comer e é como se pegasse no meu braço e me obrigasse a comer mais,
– só duas garfadas, se não depois não fumas um cigarro,
e eu a abrir a boca e a engolir as ervilhas com vontade de vomitar. Eu com vontade de começar a chorar e a obrigar-me a sorrir, a sorrir para toda a gente.
– Estás com bom aspecto,
dizem-me,
– estás um jovem,
e eu a sorrir, eu a olhar para as pessoas a sorrir e a dizer uma piada e a morrer por dentro. Eu morto por dentro enquanto digo uma piada e toda a gente se ri.
Não acho que seja uma questão de me ir abaixo com facilidade. Não é isso. É apenas muita coisa ao mesmo tempo, muitas coisas, umas a seguir às outras, e todas mais ou menos iguais, e todas igualmente dolorosas, e todas a contribuírem para que eu esteja assim. A minha irmã diz,
– o que é que se passa?,
e eu,
– nada,
e ela,
– não, só escreves assim quando se está a passar alguma coisa,  
e eu,
– estou óptimo,
e ela,
– Mike, o que é que se passa?,
e eu,
– nada.
E agora há um silêncio porque podia acabar assim. Mas continua.
Tenho um amigo, não vou dizer o nome dele, que não se deixa afectar por nada. Fui almoçar com ele hoje num restaurante sobre a praia. Comemos peixe e bebemos duas garrafas de vinho branco. Eu quase não comi e ele quase não bebeu, mas no final dividimos a conta a meias na mesma. Estávamos a falar da minha última peça, que vai estrear daqui a menos de um mês. Eu mandei-lhe o texto por mail e combinámos almoçar, para falarmos sobre isso. E ele estava a falar da peça, do que ele tinha achado. Depois falámos sobre nós, sobre como estamos, o que tem acontecido. E como ele é realmente meu amigo não me obrigo a comer o peixe que não quero comer nem me obrigo a sorrir o que não quero sorrir Estou mais vezes a olhar para o mar do que para ele enquanto falo.
– Tu sabes como eu sou,
diz ele enquanto eu olho para o mar com a cabeça encostada à palma da mão e o cotovelo apoiado na mesa,
– no dia em que tudo correr mal, mato-me. E por tudo correr mal não quero dizer ficar sem pernas por causa de uma mina esquecida no Ruanda ou descobrir que a minha mulher me trai com três gajos, mas não é só com três gajos, é com três gajos ao mesmo tempo, sou eu a entrar no meu quarto e a ver na minha cama a minha mulher com três gajos ao mesmo tempo, com um a dar-lhe na cona, outro no cu e outro na boca.
– O quê?
– Era uma metáfora,
diz ele.
– O que eu estou a dizer é que no dia em que tudo correr mal, dou cabo de mim. Atiro-me da Boca do Inferno ou corto os pulsos na banheira ou meto a cabeça no formo. Mas até esse dia chegar, nada me afecta. E só tens de pensar nisso, será que esse dia chegou, será que é hoje?
– Estás a ajudar imenso,
digo eu.
Ele ri-se. Encolhe os ombros,
– o que queres que te diga?, tudo isto é uma anedota, pelo menos ri-te.
Depois volto a olhar para o mar.  Estou a pensar em Deus. No abandono de Deus. Estou a pensar na possibilidade de haver um Deus que criou isto tudo e que depois nos deixou sozinhos. 
Estou a pensar em ti, no teu abandono. 
Ultimamente têm-me falado de cães, de como há cães que morrem de tristeza porque os donos morreram. E enquanto olho para o mar e para o peixe que não comi lembro-me de Gregor Samsa, ou de como Deus, no momento antes de nos abandonar, provavelmente disse,
– rebola e finge de morto.
E acaba assim, com o abandono de Deus e com o teu abandono e comigo ajoelhado a pedir ajuda, não sei se a ti se a Ele.

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