A angústia da morte de Deus nunca me afectou porque nunca
considerei a hipótese de que Ele pudesse existir. E, ainda assim, nos últimos
dias, enquanto penso mais em Deus do que em mim, ajoelhado no chão da sala, de
olhos fechados e cabeça baixa, com o braço direito erguido, a mão aberta, como
um suplicante, tenho pedido ajuda.
Pensei que tinha acabado. Mas não. Talvez seja impossível
não parar, parar de tentar. Para depois ainda ser pior.
Tenho um amigo, não vou dizer o nome dele, que não se deixa
afectar por nada. Ele diz,
– não é essa merda de que podia ser pior, claro que podia
ser pior, podia estar a morrer de fome em África ou podia ter um cancro terminal, ainda no
outro dia, no IPO, vi um miúdo com uns 20 anos, deitado numa cama, o cabelo rapado, todo ele a
tremer, parecia um cadáver a tremer, mais magro que um esqueleto, só se viam olhos e unhas, claro que podia ser pior, mas não é isso,
não é mesmo isso,
a meio do almoço. Acabei de lhe dizer como me sinto, como me
estou a sentir, que parece que estou num sítio tão escuro que não me consigo
mexer, que só me apetece deitar no chão e ficar assim, de olhos fechados, para
não ver a escuridão à minha volta. Eu
digo-lhe que acho que vou morrer. Que desta vez não estou a aguentar. Que me
sinto como uma criança pequena de quem sou obrigado a tomar conta. E assim
levanto-me e tomo banho e visto-me e vou para a rua como se tivesse alguém a
fazer isso por mim, a obrigar-me a fazer isso por mim. E ao almoço não quero comer e é como se pegasse no meu
braço e me obrigasse a comer mais,
– só duas garfadas, se não depois não fumas um cigarro,
e eu a abrir a boca e a engolir as ervilhas com vontade de
vomitar. Eu com vontade de começar a chorar e a obrigar-me a sorrir, a sorrir
para toda a gente.
– Estás com bom aspecto,
dizem-me,
– estás um jovem,
e eu a sorrir, eu a olhar para as pessoas a sorrir e a dizer
uma piada e a morrer por dentro. Eu morto por dentro enquanto digo uma piada e toda
a gente se ri.
Não acho que seja uma questão de me ir abaixo com facilidade.
Não é isso. É apenas muita coisa ao mesmo tempo, muitas coisas, umas a seguir
às outras, e todas mais ou menos iguais, e todas igualmente dolorosas, e todas
a contribuírem para que eu esteja assim. A minha irmã diz,
– o que é que se passa?,
e eu,
– nada,
e ela,
– não, só escreves assim quando se está a passar alguma
coisa,
e eu,
– estou óptimo,
e ela,
– Mike, o que é que se passa?,
e eu,
– nada.
E agora há um silêncio porque podia acabar assim. Mas
continua.
Tenho um amigo, não vou dizer o nome dele, que não se deixa
afectar por nada. Fui almoçar com ele hoje num restaurante sobre a praia.
Comemos peixe e bebemos duas garrafas de vinho branco. Eu quase não comi e ele
quase não bebeu, mas no final dividimos a conta a meias na mesma. Estávamos a
falar da minha última peça, que vai estrear daqui a menos de um mês. Eu
mandei-lhe o texto por mail e combinámos almoçar, para falarmos sobre isso. E
ele estava a falar da peça, do que ele tinha achado. Depois falámos sobre nós,
sobre como estamos, o que tem acontecido. E como ele é realmente meu amigo não
me obrigo a comer o peixe que não quero comer nem me obrigo a sorrir o que não
quero sorrir Estou mais vezes a olhar para o mar do que para ele enquanto falo.
– Tu sabes como eu sou,
diz ele enquanto eu olho para o mar com a cabeça encostada à palma da mão e o cotovelo apoiado na mesa,
– no dia em que tudo correr mal, mato-me. E por tudo correr
mal não quero dizer ficar sem pernas por causa de uma mina esquecida no Ruanda ou
descobrir que a minha mulher me trai com três gajos, mas não é só com três
gajos, é com três gajos ao mesmo tempo, sou eu a entrar no meu quarto e a ver
na minha cama a minha mulher com três gajos ao mesmo tempo, com um a dar-lhe na
cona, outro no cu e outro na boca.
– O quê?
– Era uma metáfora,
diz ele.
– O que eu estou a dizer é que no dia em que tudo correr
mal, dou cabo de mim. Atiro-me da Boca do Inferno ou corto os pulsos na banheira
ou meto a cabeça no formo. Mas até esse dia chegar, nada me afecta. E só tens
de pensar nisso, será que esse dia chegou, será que é hoje?
– Estás a ajudar imenso,
digo eu.
Ele ri-se. Encolhe os ombros,
– o que queres que te diga?, tudo isto é uma anedota, pelo
menos ri-te.
Depois volto a olhar para o mar. Estou a pensar em Deus. No abandono de Deus.
Estou a pensar na possibilidade de haver um Deus que criou isto tudo e que
depois nos deixou sozinhos.
Estou a pensar em ti, no teu abandono.
Ultimamente
têm-me falado de cães, de como há cães que morrem de tristeza porque os donos
morreram. E enquanto olho para o mar e para o peixe que não comi lembro-me de
Gregor Samsa, ou de como Deus, no momento antes de nos abandonar, provavelmente disse,
– rebola e finge de morto.
E acaba assim, com o abandono de Deus e com o teu abandono e comigo ajoelhado a pedir ajuda, não sei se a ti se a Ele.
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