quarta-feira, 8 de junho de 2016

MINOTAURO (1)

Isto vai ser difícil. E por isso corremos, corremos porque temos de correr, porque se não corrermos o comboio há-de partir sem nós e nós havemos de ficar onde estamos e nós não queremos ficar onde estamos, parados ao lado uns dos outros, com as malas nas mãos e o comboio a partir sem nós e nós com aquela sensação de que tudo está a correr mal, que há sempre um semáforo vermelho ou uma velhinha que atravessa com dificuldade a passadeira, e que ambos são responsáveis por estarmos parados a olhar uns para os outros enquanto o comboio partiu sem nós. Mas isso não aconteceu. Quase aconteceu, mas não aconteceu. E mesmo tendo o David adormecido, mesmo tendo a Jani furado um pneu e mesmo tendo eu achado que era boa ideia procurar em todas as bombas de gasolina a única marca de tabaco que ainda consigo fumar, a verdade é que conseguimos encontrar-nos os três à entrada de Santa Apolónia quando faltava um minuto para o meio-dia. E por isso corremos. Corremos porque não queremos ficar aqui, queremos ir para o Porto porque mesmo sendo aqui ao lado, o Porto é muito longe, e nós queremos ir para muito longe.
Durante a viagem a Jani tira-me uma fotografia. Não falamos muito. Estamos cansados. Ontem foi uma noite complicada, parece que todas as noites, de uma maneira ou de outra, na rua ou em casa, são complicadas. Eu publico no facebook a fotografia que a Jani me tirou, escrevo,
- fuck happiness,
e espero que percebas o que quero dizer, espero que percebas que o que quis dizer foi,
- que se foda a merda da felicidade porque parece que não tenho direito a ela,
espero que tenhas percebido isso, que foi isso que quis dizer.
Durante a viagem levamos com um casal com uma criança aos berros. O David adormece e acorda de trinta em trinta segundos. A Jani diz-me que cheira mal, que cheira muito mal, está de costas e não percebe que os pais estão a mudar a fralda da criança mesmo ali atrás dela, e eu dou por mim sem saber se quero matar os pais, a criança ou a mim mesmo.
Chegamos ao Porto e o Daniel Worm está à nossa espera. Vamos até à Mala Voadora, onde vamos ficar até Domingo, e como se fôssemos parolos que chegam ao Porto, assim que pousamos as malas, vamos comer uma francesinha.
Estamos cansados mas ainda fazemos um ensaio. Estamos com problemas com a primeira cena, parece que não está a resultar, parece que todos sabemos o que tem de acontecer para que resulte mas que ninguém consegue dizer o que falta ou o que está a mais. Repetimos a primeira cena. Corrigimos e marcamos. Eles estão exaustos e só ensaiamos a primeira cena.
Vamos às compras e jantamos em casa. Estamos na varanda a falar sobre a primeira cena. A discutir a primeira cena. Depois vamos ao Maus Hábitos. Eu tiro uma fotografia e a Jani pergunta-me,
- porque é que estás a tirar uma fotografia?
O Daniel Worm já não está connosco, estamos só os três, Ele vem ter connosco amanhã ao almoço. A Jani pergunta,
- o que é que estás a fazer?,
eu digo,
- nada,
digo que não é nada mas não é verdade, e a Jani,
- o que é que estás a fazer?,
enquanto eu olho para ela e para o telemóvel e digo,
- nada.
O David levantou-se, está todo fodido. Olho para ele e percebo que tudo nele está mal, que tudo está ao contrário, que ele já quase não sabe quem é, parece que a vida dele é apenas o que eu escrevi, que ele é apenas uma personagem a quem eu fodi a vida. Eu digo-lhe que tudo vai correr bem. Digo-lhe,
- David, vai tudo correr bem.
 Ele diz-me,
- vai-te foder,
sem sequer hesitar, diz-me,
- vai-te foder,
enquanto a Jani se levanta e lhe pega na mão e o leva para longe e lhe diz,
- não vale a pena.
Depois voltamos para casa, que não é a nossa casa porque não estamos em casa, estamos no Porto, na Mala Voadora, eles num quarto e eu noutro. Não falamos. Eles vão dormir e eu fico acordado. O tempo passa e eu continuo aqui até o Sol nascer e ser de manhã.

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