quinta-feira, 9 de junho de 2016

MINOTAURO (2)

O segundo dia correu melhor. Acho que correu melhor. Levantámo-nos às dez da manhã, o que foi óptimo porque já não dormia três horas seguidas numa cama há mais de uma semana. O David bateu à porta, abriu a porta e disse,
– são dez da manhã, são horas de acordar, li a tua crónica e sei que te deitaste tarde, mas são horas de acordar, estás acordado?, quero dizer-te uma coisa, acho que ontem exagerei, desculpa ter exagerado,  não queria ter exagerado, mas ontem estava mal e precisava de te dizer aquilo, precisava de te mandar foder, acho que me fez bem.
Eu estava ainda de olhos fechados, estava a sonhar contigo, estava a sonhar que tu me batias à porta e dizias,
– vou atirar-me da janela,
e eu dizia,
– não te preocupes, eu apanho-te.
Saímos os três e achamos que vai ser bom tomar o pequeno-almoço numa esplanada. Sentamo-nos. Vem a empregada. Eu quero um croissant misto e uma meia de leite, o David acende um cigarro e diz que não quer nada e a Jani diz,
– quero uma francesinha e uma bifana,
eu olho para ela e ela diz,
– o que é que foi?, tenho fome.
Eu digo que não disse nada e a empregada diz-me,
– vocês parece que me andam a perseguir,
– hã?,
digo eu.
– Viemos ontem juntos no comboio, eu reparei neles por causa da novela, e agora estão aqui a tomar o pequeno-almoço,
ela diz isto e não pára de olhar para mim, eu digo-lhe que isso deve ser um sinal e o David desata-se a rir. A Jani diz,
– a sério?,
e eu digo-lhe que estamos a ensaiar uma peça, que eu sou escritor, que eu escrevi uma peça para eles e que estamos no Porto a ensaiar, que estreamos para a semana em Lisboa.
– Eu adoro escritores,
diz ela,
– são misteriosos,
diz ela. Depois a Jani olha para ela e diz que está cheia de fome e ela pede desculpa e vai-se embora. É uma gorda quem traz a seguir o croissant e o resto das coisas.
Os ensaios estão a correr bem. Eles perguntam-me muitas vezes,
– o que é que isto quer dizer?
ou,
– quando é que acabas esta cena?,
e eu olho para a peça e digo,
– não sei,
ou então apenas não digo nada. Acho que está a correr bem.
À noite jantamos todos juntos, eu, a Jani, o David e o Daniel Worm, que assistiu ao ensaio da tarde e que me disse,
– já tens pouco tempo para acabar o texto, estreias para a semana.
E eu sei que tenho pouco tempo. E acho – não sei – que estou preocupado. Estou preocupado comigo e com o texto. Acho que não é uma questão de as pessoas perceberem, acho que é uma questão de eles perceberem. Acho que se eles perceberem o que eu quero dizer, tudo vai correr bem.
Acho que tenho de me concentrar. Acho que tenho de me focar. Não ando bem.
À noite vamos a um bar que tem um balcão que parece o do Ray’s,
– ficamos aqui,
digo eu. Eles estão preocupados porque o texto não está completo e porque faltam as músicas. Eu digo para eles não se preocuparem, eu digo que o melhor é fazermos um brinde, que tudo vai correr bem. Mais tarde, ao nosso lado, no Candelabro (que é outro bar) ouvimos um tipo dizer a outro tipo que ele continua com vontade de descarregar tudo em cima de alguém, ele diz que precisa de descarregar o que sente em cima de alguém, que hoje vai engatar uma gaja e descarregar tudo em cima dela,
– apetece-me foder uma gaja até a partir aos bocados, apetece-me foder uma gaja com tudo o que sinto, com tanta raiva que a mande para o hospital, vou fodê-la tanto que a vou deixar toda partida nas urgências, acho que é isso que quero fazer, rebentar com ela até não poder mais,
nós ouvimos o que ele está a dizer, e mesmo ele estando bêbado dá vontade de rir e por isso começamos a rir. Se calhar não devíamos rir. A Jani não se ri. A Jani olha para nós e diz que vai para casa, que está farta de estar ali. O David vai também. São duas da manhã,
– estou cansado,
diz ele, e vai com ela. Eu estou à espera que a rapariga que adora escritores misteriosos apareça à minha frente para eu meter conversa. Mas ela não aparece. Não tenho sono. Não quero ir para casa, até porque estou muito longe de casa. Eles voltam-se para trás ao fundo da rua, olham para mim e acenam um adeus. Eu não reajo. Apenas fico ali, sozinho, à espera que alguém me salve de mim próprio.

1 comentário:

  1. E saber que isto tudo deu origem a uma peça inesquecível, que nos deixa, no final, um pouco perdidos, perdendo certezas de quem somos.

    ResponderEliminar