sábado, 23 de abril de 2016

ROCK AND ROLL (9)

Acho que tenho falado demasiado sobre o Neil e pouco sobre mim. Não é que tenha medo que as pessoas não saibam quem eu sou, mas, não sei, se calhar um dia alguém pega nestes textos e faz disto uma espécie de peça, de peça de teatro, uma espécie de concerto, uma peça-concerto, com dez músicas ou um monólogo dividido em dez partes, e depois penso nas pessoas que estão presentes a assistir, nas poucas pessoas que estão presentes a assistir e no pouco que elas sabem sobre mim, e não é que isso me preocupe, porque não me preocupa, mas acho que tenho falado demasiado sobre o Neil e pouco sobre mim.
Há dois dias era já de madrugada e tu estavas a lavar os dentes com a porta aberta. Íamos dormir umas três horas porque ficámos a conversar até muito tarde. Estamos nessa fase, em que conversamos até ser muito tarde. Eu estava a olhar para ti sentado à mesa enquanto fumava um cigarro e tu estavas de cuecas e com uma t-shirt minha. Eu estava a olhar para ti a pensar,
– como é que isto aconteceu?,
e depois saíste da casa-de-banho e sentaste-te ao meu colo e abraçaste-me, e eu a pensar,
– como é que de repente isto aconteceu?
As pessoas não nos vêem juntos, não é metafórico, é mesmo verdade, raramente saímos à rua os dois, e quando damos a mão ninguém nos está a ver. E por isso as pessoas olham para mim e dizem,
– tens a certeza que isso não é só na tua cabeça?,
ou,
–  ponho as minhas mãos no fogo em como isso não é verdade,
e dizem isso com tanta convicção
(não gosto desta palavra)
e dizem isso com tanta certeza que começo a duvidar que seja mesmo verdade que estejas agora sentada ao meu colo, de cuecas e t-shirt, a abraçar-me enquanto perguntas,
– estás a pensar em quê?
Vou fazer um silêncio.  E agora vou continuar. Vou falar sobre mim. Não tenho muitos amigos, mas sou capaz de dar por mim a abraçar uma pessoa a meio da noite enquanto ela me diz,
– senti tanto a tua falta,
e acho que isso é bom, acho que isso diz qualquer coisa sobre mim, acho que isso é importante porque se algumas pessoas sentem a minha falta isso quer dizer que eu sou importante para elas, mesmo que haja outras que mal eu me aproxime digam,
– bem, tenho de me ir embora.
O Neil nunca disse isso, e ontem, às quatro da manhã, estamos os dois abraçados no centro de Cascais,
– april is the cruelest month, breeding
grita o Neil,
– liquor out of the dead land.
O Neil está bêbado, o Neil está sempre bêbado, mas às sextas-feiras bebe demais e é capaz de se pôr a fazer variações sobre T.S. Eliot, aos berros no centro de Cascais, enquanto um polícia se aproxima e nos diz para termos calma,
– o que é que se passa aqui?, é melhor terem calma,
e eu, sem saber como, mesmo estando menos bêbado que o Neil também estou a cair, peço desculpa pelos dois e digo que o vou levar a casa, que saímos de uma despedida de solteiro e que ele é o noivo,
– mas há aqui algum problema?,
insiste o polícia,
– sim,
digo eu,
– temos um problema filosófico,
digo eu,
– quando Schopenhauer deu um cacho de uvas brancas a uma rapariga de dezassete anos num passeio de barco, e ele tinha na altura quarenta e três/
ia perguntar-lhe se  o amor não será uma simbiose de contrários, o belo com o feio, o novo com o velho, o júbilo com a melancolia,
mas ele volta-nos as costas enquanto diz,
 – cambada de bêbados,
e o Neil se encosta ao meu ombro e volta a gritar,
– maybe I should go home, I don’t want problems with the law, I just want to fuck the law,
e o polícia a olhar para trás e eu a rir-me e o Neil ainda mais alto,
– fuck the law, fuck you mister policeman,
e o polícia,
– bem, bem...
E lá vamos os dois, rua acima, eu a levar o Neil às costas enquanto penso em ti, talvez nua, talvez vestida, deitada na tua cama, longe de mim porque estou a carregar com o Neil às costas, e o Neil a recitar William Blake e eu a dizer,
– não és o Corto Maltese, pára de dizer poemas,
e depois paramos porque o Neil acha que vai vomitar e não quer vomitar para cima de mim e eu não quero que ele vomite para cima de mim.  Mas o Neil não é gajo para vomitar e depois de uns segundos a olhar para o céu, senta-se no chão encostado a uma parede. Eu sento-me ao lado dele. Estamos os dois sentados no chão encostados a uma parede.
– Estás todo fodido,
digo. Ele acena com a cabeça. Ele concorda,
– I’m all fucked up.
O Neil diz que não é justo, que ele não tem de sofrer por minha causa, que ele me ensinou os acordes, as bases, os truques,
– it’s not fair,
diz o Neil. O Neil diz que com o tempo até podemos tocar juntos à noite, ele diz que eu se calhar estou farto do teatro, que estou farto de escrever, que estou farto de whisky. O Neil diz que eu estou a mudar a minha vida mas que ele não tem de pagar por isso, que ele não quer ser infeliz por mim.
– The woman who is a goddess,
diz o Neil,  
– she changed everything,
diz o Neil.
Mas os meus amigos dizem que tenho de ter cuidado, que eu tenho de ter calma. Os meus amigos não querem que eu sofra. Os meus amigos estão preocupados, os meus amigos dizem,
– aquela miúda do Schopenhauer escreveu no diário, hoje o velho deu-me um cacho de uvas brancas e eu senti vontade de vomitar porque ele tinha tocado nelas,
– se calhar estás a imaginar coisas,
dizem os meus amigos.
– I’m a friend,
diz o Neil,
– and I never said that,
diz o Neil.

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