domingo, 17 de abril de 2016

ROCK AND ROLL (8)

Estamos no estúdio do Neil, eu e o Neil. Ele diz,
– we’re almost there,
 e eu olho para a guitarra e olho para os meus dedos. É estranho como às vezes as coisas acontecem sem darmos conta que elas estão a acontecer, é estranho como às vezes as coisas acontecem sem percebermos como elas estão acontecer. Ou então é estranho, apenas. Viver é estranho. Acordar todos os dias e abrir os olhos sem saber bem em que mundo se está, abrir os olhos e pensar,
– onde é que eu estou?,
para depois resolvermos um problema maior,
– quem é que eu sou?,
mesmo que não estivéssemos a sonhar que éramos outra pessoa com outra vida noutro lado noutra altura noutra pele, mesmo que sejam apenas os olhos abertos a identificar onde estamos, e sabemos onde estamos, e se sabemos onde estamos sabemos quem somos. É isso? É isso, não é?
– Get ready,
diz o Neil,
– this is it,
diz o Neil,
– you’re ready,
diz o Neil.
Estou a escrever outra vez. Estou a escrever outra vez e tu estás deitada na cama. Não te disse para ires para casa, não te disse que precisava de estar sozinho, não te disse,
– desculpa,
depois de te mandar embora porque estou a escrever outra vez. Apenas fiquei a olhar para ti enquanto te despias. Tinhas tirado as lentes e eu estava sentado à mesa , longe de ti,
– vou pôr os óculos para saber se estás a olhar para mim,
disseste.
– Não é preciso,
disse eu,
– vou estar sempre a olhar para ti.
Tu sorris para mim. Estás sentada na cama. Eu digo que vou voltar a escrever, que demoro uma hora até deitar-me ao teu lado, que talvez nem sequer consiga escrever nada, mas que demoro uma hora até me deitar ao teu lado. Tu voltas a perguntar,
– tens a certeza?, eu posso ir-me embora,
e eu digo que tenho a certeza, eu digo-te,
– tenho a certeza.
Eu sento-me e começo. O Neil diz que já não tem nada a ensinar-me, diz que a partir daqui vou ter de ser eu a continuar sozinho, ele diz que está na altura de eu começar a perceber que não há nada a ensinar, que é tudo uma questão de confiança, que eu tenho de confiar em mim e confiar nela,
– nela?,
pergunto eu,
– na guitarra,
diz o Neil. Ficamos em silêncio. O Neil faz um charro, eu faço um cigarro. O Neil olha para mim e pergunta-me se eu o vou matar,
– are you going to kill me?
O Neil, de Springfield, Illinois, pergunta-me se eu o vou matar ou se o vou deixar a viver na merda, a tocar nos bares de Cascais à espera que ela apareça enquanto ele engata uma quarentona porque ela não apareceu. O Neil diz que não quer isso, que não quer ficar a tocar nos bares de Cascais para sempre, à espera que ela entre pela porta. Ele diz que prefere voltar para casa, que prefere ir à procura da filha, que prefere isso a ficar à espera para sempre que ela entre pela porta do bar e lhe diga,
– acho que cometi o maior erro da minha vida.
Eu olho para o Neil. Ele acende o charro, eu acendo o cigarro.
– How about that girl, the one that got away, did you find her?,
e eu penso em ti deitada na cama, de olhos fechados, à espera que eu regresse, à espera que eu te abrace enquanto eu voltei a escrever.
– You know, the woman who was a goddess, what happened to her?,
pergunta o Neil, enquanto eu me levanto para ir ter contigo e digo,
– estás fodido, Neil, não vais voltar para casa.

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