Estamos no estúdio do Neil, eu e o Neil. Ele diz,
– we’re almost there,
e eu olho para a
guitarra e olho para os meus dedos. É estranho como às vezes as coisas
acontecem sem darmos conta que elas estão a acontecer, é estranho como às vezes
as coisas acontecem sem percebermos como elas estão acontecer. Ou então é estranho,
apenas. Viver é estranho. Acordar todos os dias e abrir os olhos sem saber bem
em que mundo se está, abrir os olhos e pensar,
– onde é que eu estou?,
para depois resolvermos um problema maior,
– quem é que eu sou?,
mesmo que não estivéssemos a sonhar que éramos outra pessoa
com outra vida noutro lado noutra altura noutra pele, mesmo que sejam apenas os
olhos abertos a identificar onde estamos, e sabemos onde estamos, e se sabemos
onde estamos sabemos quem somos. É isso? É isso, não é?
– Get
ready,
diz o Neil,
– this is
it,
diz o Neil,
– you’re ready,
diz o Neil.
Estou a escrever outra vez. Estou a escrever outra vez e tu
estás deitada na cama. Não te disse para ires para casa, não te disse que
precisava de estar sozinho, não te disse,
– desculpa,
depois de te mandar embora porque estou a escrever outra
vez. Apenas fiquei a olhar para ti enquanto te despias. Tinhas tirado as lentes
e eu estava sentado à mesa , longe de ti,
– vou pôr os óculos para saber se estás a olhar para mim,
disseste.
– Não é preciso,
disse eu,
– vou estar sempre a olhar para ti.
Tu sorris para mim. Estás sentada na cama. Eu digo que vou
voltar a escrever, que demoro uma hora até deitar-me ao teu lado, que talvez
nem sequer consiga escrever nada, mas que demoro uma hora até me deitar ao teu
lado. Tu voltas a perguntar,
– tens a certeza?, eu posso ir-me embora,
e eu digo que tenho a certeza, eu digo-te,
– tenho a certeza.
Eu sento-me e começo. O Neil diz que já não tem nada a
ensinar-me, diz que a partir daqui vou ter de ser eu a continuar sozinho, ele
diz que está na altura de eu começar a perceber que não há nada a ensinar, que
é tudo uma questão de confiança, que eu tenho de confiar em mim e confiar nela,
– nela?,
pergunto eu,
– na guitarra,
diz o Neil. Ficamos em silêncio. O Neil faz um charro, eu
faço um cigarro. O Neil olha para mim e pergunta-me se eu o vou matar,
– are you
going to kill me?
O Neil, de Springfield, Illinois, pergunta-me se eu o vou
matar ou se o vou deixar a viver na merda, a tocar nos bares de Cascais à
espera que ela apareça enquanto ele engata uma quarentona porque ela não
apareceu. O Neil diz que não quer isso, que não quer ficar a tocar nos bares de
Cascais para sempre, à espera que ela entre pela porta. Ele diz que prefere
voltar para casa, que prefere ir à procura da filha, que prefere isso a ficar à
espera para sempre que ela entre pela porta do bar e lhe diga,
– acho que cometi o maior erro da minha vida.
Eu olho para o Neil. Ele acende o charro, eu acendo o
cigarro.
– How about
that girl, the one that got away, did you find her?,
e eu penso em ti deitada na cama, de olhos fechados, à
espera que eu regresse, à espera que eu te abrace enquanto eu voltei a escrever.
– You know,
the woman who was a goddess, what happened to her?,
pergunta o Neil, enquanto eu me levanto para ir ter contigo e
digo,
– estás fodido, Neil, não vais voltar para casa.
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