sábado, 12 de março de 2016

ROCK AND ROLL (2)

Há dias que correm mal, e depois há vidas que correm mal. Lembro-me da minha prima Francisca que não via há muitos anos (e que nem sequer é minha prima) estar um dia sentada no sofá, toda ela curvada, quase com a cabeça no tapete,  e eu,
– o que é que tens, estás a vomitar?
A Francisca devia ter uns 16 anos, eu era miúdo, não sei, talvez 10 ou 12 anos, mas lembro-me que gostava de olhar para a prima Francisca (que nem sequer era minha prima) quando ela saía da piscina a ajeitar o biquíni que parecia estar sempre a querer sair do sítio, que parecia sempre demasiado pequeno para o volume da Francisca.
– Esta rapariga é muito peitriota,
dizia um tio meu enquanto se ria para mim, eu não percebia, e depois ele dizia,
– Mike, isto é que é uma miúda para ti, vai ter com ela e espeta-lhe um beijo na boca ou um apalpão no cu. Elas adoram essas coisas. Ficam malucas.
E eu todo contente fui ter com a Francisca que devia ter mais meio metro que eu, a achar que não lhe conseguia dar um beijo se ela não se baixasse. Ela enrolada na toalha a olhar para mim,
– queres alguma coisa?,
ela a virar-se de costas e a dizer para a deixar em paz. Eu a olhar para a Francisca de costas para mim e a ver o meu tio a fazer sinais, a dizer-me por sinais que era agora. Eu a olhar para o rabo da Francisca. Eu a levar um estalo da Francisca,
– estás parvo?
enquanto o meu tio se ria muito alto e entornava o whisky para o chão porque todo o corpo se ria também,
– é isso, miúdo, é isso,
e eu a fugir da Francisca que balançava pela relva atrás de mim, com o biquíni aos saltos a dizer que me ia matar.
– I’m lost,
disse o Neil,
– where are you going with that?
Agora passo muito tempo com o Neil. Às vezes vou a um concerto dele em Cascais, outras vezes vamos jantar. O Neil está tão tão triste que ao lado dele pareço uma gargalhada. À tarde mostrou-me uma música nova em que está a trabalhar,
– it’s just the beggining.
O ritmo é lento e ele parece que vai desfazer-se em água. Não. Ele parece que vai desfazer-se em merda.
                You destroyed my life, life
                You destroyed my life, life
                You destroyed my life, life
                You destroyed my life, life
                I’m gonna kill myself
                today today today
    I’m gonna kill myself
    today
– what do you think?
Eu abano a cabeça e digo que talvez seja um bom princípio enquanto me lembro da minha prima Francisca (que nem sequer é minha prima), sentada no sofá, com a cabeça quase no tapete, a gemer, com as mãos enfiadas na cabeça,
– o que é que tens, estás a vomitar?,
e ela a gritar, ela a gritar e a levantar-se e a dizer,
– sai daqui deixa-me em paz deixa-me em paz por favor sai daqui deixa-me em paz não quero ver ninguém não quero ver ninguém SAI DAQUI
E eu saí. Eu corri cá para fora e só muitos anos depois descobri que a prima Francisca (que nem sequer é minha prima), naquele início de Verão, tinha descoberto no mesmo dia que estava grávida, que tinha chumbado no nono ano pela terceira vez e que o namorado quando ouviu falar da gravidez lhe disse que estava a pensar em alistar-se no exército e que a andava a trair com a melhor amiga e com outra amiga que não sendo tão amiga quanto a outra também era muito amiga. A Francisca não aguentou e foi contar tudo aos pais cheia de lágrimas. Agarrou-se à mãe a soluçar. Ainda nem tínhamos almoçado. O pai deu-lhe duas bofetadas e passou a tarde a gritar,
– puta puta puta tenho uma filha que é uma puta,
enquanto se virava para a mulher e dizia,
– vê-se logo a quem ela sai.
O meu tio ria-se enquanto entornava mais whisky e dizia,
– a peitriota vai ficar uma vaca leiteira.
E neste dia tudo correu mal para a Francisca, tudo correu mal. Foi um dia em que tudo correu mal. Mas a Francisca teve a criança, os pais ajudaram-na, o namorado que passou a ex-namorado morreu de overdose dois anos depois e nem sequer conheceu o filho, e ela casou mais tarde com um urologista que lhe comprou um Jaguar e uma vivenda em Cascais, mesmo ao lado da casa da portuguesa por quem o Neil se apaixonou. Isso descobri agora quando vejo a Francisca a sair de um Jaguar para abrir o portão da vivenda. Está gorda. Está mesmo gorda.
Estamos os dois no meu carro, o Neil quis saber se ela ainda tinha a luz acesa, se estaria em casa. Está tão destruído que vive destas pequenas coisas. Eu faço-lhe a vontade. Ainda não me disse como ela se chama e eu ainda não perguntei. Estamos os dois muito bêbados. O Neil acende mais um charro e eu acendo mais um cigarro. É nessa altura que aparece a Francisca.
– It’s a small world,
digo eu.
– It’s a shit world,
diz o Neil enquanto olha para o charro,
– it’s a shit shit world, man. All I see is shit all around. Shit and shit and more shit. But it’s the shit we live in, it’s all there is, just shit and shit and more shit. 

2 comentários:

  1. Uau! Adorei as always... Como estudante fe literatura e ao mesmo tempo de música clássica no conservatório tenho a dizer que este é talvez o meu texto favorito do seu blog e faz-me lembrar imenso as cronicas do António Lobo Antunes.

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    1. Olá, Alana. Obrigado pelo seu comentário, fico contente que goste das minhas crónicas e com a comparação com António Lobo Antunes, um dos autores que mais me influenciou na juventude.

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