quinta-feira, 10 de março de 2016

ROCK AND ROLL (1)

As pessoas dizem,
– é engraçado como as coisas acontecem,
mas não tem piada. Não tem piada nenhuma. Não me estou a rir. As pessoas olham para trás e depois olham em volta e dizem,
– é engraçado como as coisas acontecem,
e encolhem os ombros e riem-se e encolhem os ombros outra vez e olham em volta e depois esquecem-se, esquecem-se de tudo e vão dormir. A cabeça na almofada. Os olhos fechados. As pessoas a tentarem adormecer com a cabeça na almofada e os olhos fechados. As pessoas a tentarem lembrar-se da última vez que rezaram. As pessoas a pensarem no escuro à volta delas e que não querem sonhar, que não querem sonhar, que não têm vontade de sonhar para não dizerem a meio do sonho,
– é engraçado como as coisas acontecem.
Eu com medo dos sonhos enquanto me viro para o outro lado e me tento lembrar da última vez que rezei.
Doem-me os dedos. Os dedos da mão esquerda. O meu professor diz,
– your left hand is the text, your right hand are the actors, your heart’s the director, your head is the building and the guitar is all the rest. You just have to focus. It’s just like a play. Don’t forget you’re an artist.
– Não me chames isso, já te disse para não me chamares isso,
digo eu em português. Ele percebe o que eu digo. Ele pede desculpa,
– sorry, man, I keep forgetting. I’ll never understand why the fuck you hate that word so much.
Ele chama-se Neil, nasceu em Springfield, no Illinois, é mais novo do que eu. Apaixonou-se há uns anos por uma portuguesa que conheceu em Nova Iorque. Ela estava lá a estudar, ele estava lá porque sim, porque achou que ia ser um músico de blues em Nova Iorque. De certa forma somos todos iguais. Viveram juntos um ano e meio numa casa tão pequena que não cabiam lá os dois. Isso é que o Neil diz. E ri-se. E depois diz que foram felizes, que foram mesmo felizes,
– we were really happy, man. And that’s a fact. That’s a solid fact.
Depois ela achou que aquilo não era para ela, que o apartamento era demasiado pequeno e que a cidade era demasiado grande, que tinha saudades dos pais, que queria voltar para casa, que isto e aquilo e outra coisa. Conversa de merda, penso eu, mas ele achou que era verdade. Ela regressou para  casa, para Cascais e ele veio atrás dela. O Neil é porreiro. De dia dá aulas de guitarra e à noite toca em bares. Quando acabamos a aula ele fuma um charro e eu fumo um cigarro. Sentamo-nos no chão do estúdio com as costas encostadas a um sofá. Ele fuma um charro e eu fumo um cigarro. Ele diz,
– you know, I have some bourbon if you want.
– No, Neil. I’m done with that.
– Good for you, my friend, good for you,
diz ele. E depois olha em frente, para a janela à nossa frente. E eu também olho em frente, para a janela à nossa frente, de onde não se vê o mar.
Ela deixou-o há seis anos, quatro meses depois de terem aterrado em Lisboa, ela com duas malas e quinze caixotes, o Neil com duas guitarras e uma mochila. Trocou-o por um professor de educação física com uma deficiência na fala. Conhece-o num bar, enquanto o Neil cantava. O Neil diz que há uma certa ironia nisso e ri-se. Ele diz que eles só estão juntos por causa dele, porque ele deu aquele concerto naquele bar. O Neil diz que lhe apertou a mão e não percebeu nada, não percebeu o que se estava a passar. Ele diz que se na altura tivesse percebido o tinha matado, e eu acredito nele. Ele olha para a janela à nossa frente.
– Didn’t see a god damn thing.
Eu olho para as minhas mãos.
  – Estou a sangrar,
digo eu,
– tenho os dedos a sangrar. Isto é normal? É normal isto acontecer? É normal ter os dedos a sangrar? Esta merda dói-me. Esta merda dói-me mesmo. O que é que eu faço? Achas que devo parar? Estou com os dedos a sangrar e nem consigo passar de um acorde para outro como deve ser. Achas que devo parar? Estou cansado, Neil. Quero ir dormir. Achas que devo desistir? Se calhar não sou feito para isto.
Ele não me está a ouvir.
– Vai para casa, Neil. Não é para a tua casa em Cascais, é para a tua casa nos Estados Unidos. O que é que estás aqui a fazer? Tenho os dedos a sangrar por tua culpa. Não me devias ter dito que eu ia ser capaz. Não me devias ter dito que era possível. Devias ficar com os teus alunos de dez anos, eu não vou ser capaz de fazer isto. Achas que vou ser capaz de fazer isto?

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