O meu computador está cheio de cinza
e tabaco. Não, não é isso. Quero dizer que as teclas estão cheias de cinza e tabaco.
Devia estar a trabalhar, mas não estou. Devia estar a dormir, mas não estou.
Devia estar a fazer tantas coisas, mas não estou. Quero dizer qualquer coisa
que não seja óbvia para não ser óbvio.
Vou mudar de assunto.
O ICTUS acabou e acabei o CASSIOPEIA.
No outro dia fui a um ensaio. Gostei tanto. Estava nervoso. Os actores no fim
disseram que estavam nervosos por eu lá estar, mas eu devia estar mais, não por
duvidar deles, mas por duvidar de mim. Duvidamos sempre do que fizemos, se deixarmos
passar algum tempo. Acho que não me vou meter mais nos ensaios, eles estão bem
sem mim.
Dei aulas de manhã e dei aulas de
tarde. Estranha expressão: «dar aulas». Afinal, damos o quê? À tarde falei
sobre Ibsen. Não simpatizo com ele, demasiado certinho. Sou do clube do
Strindberg, dos que fazem primeiro e pensam depois, ou dos que não pensam
sequer, ou dos que pensam fazer uma coisa e depois fazem outra. É indiferente,
corre sempre mal.
Agora estou às voltas com o
Valle-Inclán e com as DIVINAS PALAVRAS. Ainda não gosto do texto, mas é porque
ainda não me enterrei nele. Espero que seja por isso. Demora tempo até me
enterrar num texto, e não o tenho.
Não gosto de espanhóis. Mas isso não é
verdade. Afinal gosto de espanhóis porque me lembrei de Cervantes, de Unamuno,
de Goya, de Buñuel, de Calderón. Estou só a continuar a escrever, a dizer
qualquer coisa. Isto não quer dizer nada.
À noite fiz o jantar. Antes, dormi no
sofá porque estava cansado. Depois jantei e fui trabalhar, mas falta-me tempo.
Falta-nos sempre tempo. Falta-nos tempo para tudo, apenas nos resta fugir do óbvio.
Vou voltar atrás.
O ICTUS acabou e nem tive tempo de
sentir o vazio dessa ausência. Todas as pessoas gostaram: umas muito, outras
pouco, outras nada. Mas é assim mesmo. Nós gostámos, é o que me interessa. Entretanto
estava a escrever o CASSIOPEIA. Quase morri a escrever esse texto, uma frase
que é uma péssima estratégia de marketing
porque agora toda a gente acha que eu estou a insinuar que é brilhante e genial,
ou que não é nem brilhante nem genial, uma vez que eu não morri. E depois,
quando forem ver, vai ser o mesmo, umas hão-de gostar muito, outras pouco e
outras nada.
Vou regressar ao princípio.
Volto a dizer, desta vez em voz alta,
– tenho as teclas cheias de cinza e
tabaco.
É uma maneira de não dizer o que
quero, de fugir do assunto. Podia ir trabalhar, podia ir dormir, podia fazer
tantas coisas. Mas não, parece que o mundo é apenas estas teclas cheias de
cinza e tabaco e todas as coisas que eu não disse porque não as quis dizer.
Percebes?
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