terça-feira, 6 de maio de 2014

OS LOUCOS DANÇAM, NÓS CAMINHAMOS

Há uma palavra para eles: loucos. Mas no Domingo, no TEC, não me pareciam loucos e quis trocar de pele com eles, com alguns deles, com os mais perturbados. Pareciam ser os mais perturbados.
O espectáculo chama-se NOTURNOS* (infelizmente sem o “c”) e à minha frente e de mais uns trinta pares de olhos, os loucos diziam as suas palavras. Os loucos que não pareciam loucos. Alguns não pareciam. Havia seis mulheres e dois homens. O que tanto pode querer dizer que as mulheres enlouquecem mais do que os homens, ou que as mulheres recuperam melhor do que os homens.
Um homem e uma mulher diziam coisas que eu nunca conseguirei escrever. Eram os mais perturbados, pareciam os mais perturbados. Moviam-se lentos. Diziam as palavras como (se eu fosse um deles poderia dizer como). Bataille, Genet e Artaud, curiosamente todos franceses, talvez a França seja a terra da loucura, ainda seja a terra da loucura, foi neles que pensei. Hei-de ir a Paris este Verão, e sentar-me em bancos de jardim onde talvez eles se tenham sentado. Não me lembrei de mais ninguém, Bataille, Genet e Artaud, talvez eles compreendessem o significado daquelas palavras.
Dizia que um homem e uma mulher diziam coisas que eu nunca conseguirei escrever. Ambos lentos. Ambos quietos. Ele, um negro imponente, em cada gesto parecia impedir um ataque ao espectador. Ela era mais complexa. Todas as palavras que lhe saíam da boca pareciam (se eu fosse um deles poderia dizer o que pareciam). Cito de cor, mas não são as palavras certas. As deles eram as palavras certas. Ele levantou-se e caminhou até ao extremo do cenário, lento, disse: «num beco, à noite, olhei para os ratos. E os ratos olharam de volta para mim». Ela, que ainda não se tinha erguido do banco, levantou-se e disse: «o homem feliz estava em casa com a família feliz. Depois levantou-se (foi aqui que ela se levantou) e começaram a crescer-lhe as unhas das mãos e dos pés». Levantou as mãos para nós e continuou. Os loucos foram dançar. Todos juntos. Os loucos a dançar e nós a ver.
Na Grécia Antiga os escravos também eram obrigados ao teatro. E a nós, obrigam-nos a quê? No final, na conversa, um espectador desatento pergunta como chegaram a personagens tão irreais, e uma louca responde que as personagens são eles, que é a realidade deles.
Ser como os loucos. Dizer tudo o que não se consegue dizer. Os únicos escritores de que tenho inveja à minha frente, lentos, anónimos, presos, a dançar. E eu aqui, a fingir que sei as palavras. Não as sei.

*NOTURNOS de João Silva é um espectáculo do Grupo de Teatro Terapêutico do Hospital Júlio de Matos.

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