O
espectáculo chama-se NOTURNOS* (infelizmente sem o “c”) e à minha frente e de
mais uns trinta pares de olhos, os loucos diziam as suas palavras. Os loucos
que não pareciam loucos. Alguns não pareciam. Havia seis mulheres e dois
homens. O que tanto pode querer dizer que as mulheres enlouquecem mais do que
os homens, ou que as mulheres recuperam melhor do que os homens.
Um homem e
uma mulher diziam coisas que eu nunca conseguirei escrever. Eram os mais
perturbados, pareciam os mais perturbados. Moviam-se lentos. Diziam as palavras
como (se eu fosse um deles poderia dizer como). Bataille, Genet e Artaud,
curiosamente todos franceses, talvez a França seja a terra da loucura, ainda
seja a terra da loucura, foi neles que pensei. Hei-de ir a Paris este Verão, e
sentar-me em bancos de jardim onde talvez eles se tenham sentado. Não me
lembrei de mais ninguém, Bataille, Genet e Artaud, talvez eles compreendessem o
significado daquelas palavras.
Dizia que um
homem e uma mulher diziam coisas que eu nunca conseguirei escrever. Ambos
lentos. Ambos quietos. Ele, um negro imponente, em cada gesto parecia impedir
um ataque ao espectador. Ela era mais complexa. Todas as palavras que lhe saíam
da boca pareciam (se eu fosse um deles poderia dizer o que pareciam). Cito de
cor, mas não são as palavras certas. As deles eram as palavras certas. Ele
levantou-se e caminhou até ao extremo do cenário, lento, disse: «num beco, à
noite, olhei para os ratos. E os ratos olharam de volta para mim». Ela, que
ainda não se tinha erguido do banco, levantou-se e disse: «o homem feliz estava
em casa com a família feliz. Depois levantou-se (foi aqui que ela se levantou)
e começaram a crescer-lhe as unhas das mãos e dos pés». Levantou as mãos para
nós e continuou. Os loucos foram dançar. Todos juntos. Os loucos a dançar e nós
a ver.
Na Grécia Antiga
os escravos também eram obrigados ao teatro. E a nós, obrigam-nos a quê? No final, na conversa, um espectador desatento pergunta como chegaram a personagens tão irreais, e uma louca responde que as personagens são eles, que é a realidade deles.
Ser como os
loucos. Dizer tudo o que não se consegue dizer. Os únicos escritores de que
tenho inveja à minha frente, lentos, anónimos, presos, a dançar. E eu aqui, a
fingir que sei as palavras. Não as sei.
*NOTURNOS de
João Silva é um espectáculo do Grupo de Teatro Terapêutico do Hospital Júlio de
Matos.
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