Quando Descartes, que não era
estúpido, escreveu: «o bom senso é a coisa que no mundo está mais
bem distribuída, porque cada um pensa estar tão bem dotado dele,
que até mesmo aqueles que dificilmente se contentam com qualquer
coisa não costumam desejar mais do que aquele que possuem», não
estava, de certeza, a pensar em mim (nem na economia das palavras).
Cedo substitui o «conhece-te a ti
mesmo» pelo «desconfia de ti mesmo», prática que me leva sempre a
fazer exactamente o contrário daquilo que o meu bom senso determina.
Creio que tudo começou ainda na
primária, na altura em que os problemas matemáticos envolvem regularmente uma história absurda, do género: «o João bebe dois litros de
whisky por dia e só tem em casa copos de 20 centilitros», etc. A
perda de fé na minha capacidade de julgamento começou com uma coisa
parecida: a professora anunciou à turma que o problema era complexo
e que por isso cada aluno deveria escrever a resposta num papel,
ir até ela e mostrar-lha, o que logo me fez sorrir e
pensar na eminente vitória que me aguardava.
Desta vez uma mãe tinha feito um bolo
e cortado três fatias para os seus três filhos: ao João (que
acabou mais tarde a beber dois litros de whisky por dia) coube uma
fatia de 100 gramas, ao Jorge uma de 1000 decagramas e ao José uma
de 10000 centigramas, e a pergunta era a única possível: qual
deles tinha ficado com a maior fatia? Não havia dúvidas, não só a
senhora tinha uma obsessão com nomes começados por J como,
obviamente, tinha calhado ao jovem José uma fatia de bolo enorme. Escrevi
o nome no papel, levantei-me e mostrei-lhe orgulhoso a minha
resposta,
- Errado.
Os meus colegas levantavam-se e iam até
ela. Todos regressavam com o peso desse
- errado
para a carteira.
«Deve ser uma rasteira», pensei.
Escrevi «João», num papel e voltei a levantar-me,
- errado.
À minha volta havia olhares tão
confusos como o meu.Mas como só sobrava uma resposta adiantei-me a
toda a gente e não quis saber de lógica e pensamentos racionais, o
que só me enfureceu mais quando a ouvi dizer,
- errado
depois de ter lido o nome «Jorge» no
papel.
Tudo aquilo me baralhava. Três
respostas possíveis e todas erradas. É nessas alturas em que nos
afastamos do instinto e percebemos que só pela análise absoluta das coisas podemos chegar à verdade. O João, o Jorge e o
José, três fatias de bolo e nenhuma é maior do que a outra, qual
poderia ser a resposta? E foi então que percebi o óbvio, a resposta
mais simples de todas e ninguém a tinha compreendido. Levantei-me
orgulhoso, encaminhei-me para a professora e entreguei-lhe o papel
com a minha última resposta. Quem tinha ficado com a fatia de bolo
maior? A mãe, obviamente
Não sei quantos anos se passaram,
demasiados, se pensar no assunto. Mas não me esqueço daquele olhar,
aquele abanar da cabeça dela como se dissesse: «não há nada a fazer, este é um caso perdido».
E é fácil perceber por que razão faço desde esse dia o contrário
daquilo que o meu bom senso me diz para fazer. E desde esse dia que
mantenho uma luta permanente dentro de mim. E desde esse dia que... Ainda agora, por exemplo,
disse para mim mesmo:
- Miguel, está frio, estás
cansado, tens de trabalhar, vamos ficar em casa.
Adivinhem o que vou fazer.
Sem comentários:
Enviar um comentário