Confesso que esta história das praxes,
com debates, artigos e polémicas, me enfada mais do que uma colecção
de faiança portuguesa – independentemente do século.
A telenovela foi montada pela
comunicação social e nós fomos atrás. Com um típico enredo
lento, está cheia de protagonistas rombos e de figurantes coloridos.
Nós observamos sentados no sofá e vamos abanando a cabeça para a
frente ou para os lados consoante o novo capítulo nos agrada mais ou
menos. Volto a perguntar-me se estamos a chegar ao fundo da questão
ou se apenas alimentamos o monstro.
Começo por situar o meu percurso
enquanto “caloiro”. Vivi essa situação em duas Faculdades muito
distintas, na primeira fui sujeito durante um dia àquelas coisas
habituais: pinturas, passeios e aulas-fantasma. Chamam-lhe
“brincadeiras inofensivas”, eu não gostei e na restante semana
não pus lá os pés. No ano seguinte mudei de curso e de Faculdade e, já
avisado, mesmo num sítio onde não conhecia ninguém, declarei-me
“anti-praxe”. Não me senti nem mais nem menos inadaptado por
causa disso, nem houve represálias por não aderir ao que me diziam
ser o “espírito académico”, mas nestas coisas, como se costuma
dizer, mais vale cair em graça do que ser engraçado, e sei do caso
de um colega que, tomando a mesma posição que eu, foi rotulado por
uns quantos “veteranos” como uma espécie de proscrito, sendo
durante um ano alvo de frequentes insultos e, pelo menos uma vez,
agressões. Por isso, quando me dão o argumento de que é tudo uma
questão de bom senso, remeto-os para Descartes e para uma verdade
que bem podia ser de la Palice: o bom-senso não costuma andar de
mãos dadas com uma pipa de vinho.
Poderia terminar por aqui, mas talvez
haja quem ainda não tenha percebido: nem o que eu disse, nem o fundo
da questão, como lhe chamei.
Cito a agonia do
cristianismo de Unamuno: «não foi o tirano que fez o
escravo, mas ao contrário. Foi um que se ofereceu para levar aos
ombros o seu irmão, e não este quem obrigou a que aquele o
levasse». Não será esta uma definição absoluta de um ritual que
muitos vêem não como uma humilhação consentida mas como uma forma
simples e directa de integração? Integração em quê, pergunto? Na
fraternidade da grade de cervejas? No clube da cábula? Na ideia –
porque é mesmo só uma ideia – de que pertencem a qualquer coisa,
de que fazem parte de um todo e com isso se sentem mais seguros, mais
capazes de disfarçar a solidão? Convém talvez perguntar a todos
esses jovens o que os motiva realmente, para ver se eles ao menos
sabem a resposta, e convém também perguntar aos pais que educação
lhes deram para afirmarem comovidos na televisão que os filhos
morreram felizes porque morreram trajados. E o outro lado? Dizia o
meu amigo Carlos Carranca que em Coimbra cerca de 90% das Repúblicas
são hoje “anti-praxe”, não por uma qualquer epifania, mas
porque militam na juventude de um partido de extrema esquerda que é
contra toda e qualquer tradição. Andamos à procura de uma
identidade colectiva, parece-me. E não gosto disso.
Volto a Unamuno: «os Homens procuram a
paz em tempos de guerra e a guerra em tempo de paz; procuram a
liberdade sob a tirania e procuram a tirania sob a liberdade». Não
será também isso que aqui se passa: a procura da estupidez num
sítio de saber, a procura do colectivo num sítio que deveria ser de
pensamento individual? Já no discurso sobre o filho-da-puta
Alberto Pimenta lançava o aviso sobre as nossas Universidades como
sítios de excelência para não pensar, com muros altos e
“seguidismos” por toda a parte. Afinal, transformámos a Academia
e os jovens que a frequentam em quê?
Num
excelente ensaio de 1963 (a agressão – uma história
natural do mal), Konrad Lorenz
concluía que o maior problema do Homem era não possuir uma
mentalidade de carnívoro. Os carnívoros têm uma espécie de
“válvula de segurança” que – em circunstâncias normais – os
impede de matar os elementos da mesma espécie. Os meus cães vivem
assim: sempre que o Zucco quer ser o líder da matilha, o Dingo, que
é o macho Alfa, mostra violentamente a sua superioridade até que o
outro se deita de costas em posição submissa, com a garganta
descoberta e as patas no ar. E o Dingo, que é apenas um cão, nunca
o agrediu depois disso. Toda a nossa desgraça, diz Lorenz, vem do
facto de sermos, no fundo, criaturas inofensivas e omnívoras.
Incapazes de matar grandes presas, fomos também incapazes de nos
controlar quando aprendemos a fazê-lo.
Não há nada a discutir. Proibir as praxes e expulsar das Universidades quem teimasse em mantê-las seria um sinal de inteligência e civilização, mas, como se tem visto, essas são duas qualidades que rareiam neste mundo, quanto mais neste país.
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