quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

UM SEGUNDO ANTES

Estreou ontem as you like it, no São Luiz, uma daquelas peças de Shakespeare que pela simplicidade do título divide os tradutores de tal forma que mais vale referirmo-nos a ela no original. Fui no dia anterior ao ensaio geral e profetizo que conhecerá um merecido sucesso entre crítica e público. Luísa Cruz arrasa como Touchstone e o restante elenco corresponde de acordo com o talento individual de cada um. Quanto ao resto, tudo funciona.
Shakesepeare era um génio da palavra e do pensamento, mas também era um dramaturgo consciente dos gostos do público, não só do isabelino, mas do ser humano no geral. as you like it seria hoje muito provavelmente uma comédia romântica de Hollywood e um garantido sucesso de bilheteira; e é sempre agradável ver um Shakespeare “descomplicado”, em que o que importa são os actores e o texto, e não as cabriolas da encenação.
No mesmo dia, na escola, dois exercícios a partir de Brecht, o que diz sim e o que diz não. A história, baseada num texto do Teatro Noh, é muito curiosa: uma expedição de professor e alunos parte numa viagem pelas montanhas em busca de medicamentos para a peste que se instalou na cidade. Um dos alunos é demasiado jovem mas insiste em acompanhar o professor porque a sua mãe está doente. No topo da montanha começa a demonstrar sintomas de que também ele está doente e os outros deparam-se com um problema: sendo impossível fazê-lo transpor a montanha, deverão abandoná-lo ou voltar para trás, carregando-o de volta? A pergunta é feita directamente ao jovem, relembrando-o que a tradição dita que ele deve estar preparado para arcar com as consequências, ou seja, que deve aceitar ser abandonado. Em o que diz sim, o jovem é atirado para o abismo para não morrer sozinho, em o que diz não, ele recusa-se a ser sacrificado e convence os restantes a voltar para trás. Escusado será dizer que nos identificamos mais com o que diz não do que com o que diz sim. Somos contra a tradição quando ela é irracional, somos contra a regra quando ela é injusta.
Voltemos a as you like it porque também aí as personagens têm de fazer escolhas, e dizem que sim e dizem que não. Dizem que não à injustiça, à tirania e aos opressores e dizem que sim ao perdão, à amizade e ao amor (excepto Jaques – que mesmo aqueles que nunca leram/ viram a peça o conhecem do discurso: «all the world's a stage» – tem de haver sempre alguém à parte para que os outros estejam unidos). E é curioso ver como Shakespeare nos conhece tão bem, como continuamos iguais, como continuamos a insurgir-nos contra a tirania, a preferir o exílio à derrota (não será isso que os nosso jovens emigrantes estão a fazer?), ao mesmo tempo que seguimos a mais antiga de todas as tradições: em última análise estamos aqui para tentar alcançar a felicidade, e o amor parece continuar a ser o caminho mais curto para lá chegar.
Continuamos a dizer que sim e a dizer que não, as we like it (excepto Jaques).

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