«Toda a gente se queixa da sua
memória, mas ninguém se queixa da sua inteligência». Eu lembro-me
de cada vez menos coisas e estou progressivamente convencido de que
tenho razão em tudo, o que pela velha máxima de La Rochefoucauld
faz de mim um cretino igual a tantos outros.
Quando temos vinte anos a vida parece
um enorme caderno em branco a preencher com sucessos, amores e
algumas dificuldades, que por sermos obviamente especiais
transformaremos em vitórias. Depois os anos passam e todo o passado
se resume a uma vaga ideia do que aconteceu, uma recordação geral
de uma série de acontecimentos particulares que nunca conseguimos
controlar. Chama-se viver. Vamos andando em frente deixando muitas
coisas para trás, e nem sequer pensamos nisso.
As conversas sobre quem somos vão
desaparecendo porque a dada altura já não precisamos de ir jantar
fora ou ir beber um copo a um bar para ir para a cama com alguém.
Deixamos de nos apaixonar e deixamos de falar sobre o que nos
aconteceu porque todas as pessoas à nossa volta ou já conhecem as
histórias ou estavam lá presentes quando elas aconteceram. Ficamos
cada vez mais sozinhos e com isso já não falamos sobre nós, sobre
como chegámos até aqui. Conversamos sobre o presente, o dia-a-dia.
Actualizamos os que estão à nossa volta sobre o que nos acontece
com a regularidade de um jornal, diário ou semanário, e quando as
amizades nos afastam alguns meses, somos uma espécie de revista
trimestral, que deixa de lado a espuma dos dias e se concentra nos
grandes acontecimentos e mudanças que possam ter ocorrido, mesmo que
não tenha acontecido nada.
Mas há sempre um dia – que estranho
– em que encontramos um rosto familiar na rua, de um velho amigo ou
de uma mulher que amámos, e por uns instantes parece que o tempo não
é uma linha contínua mas uma fita de Moebius, que estamos no mesmo
sítio onde estávamos há não sei quanto tempo e que o passado
afinal estava mesmo ali ao nosso lado, tão nítido como no dia em
que o vivemos.
Mas é diferente, não é?
E depois de três sorrisos e quatro
gargalhadas vem o silêncio, um silêncio que diz que não sabemos
com quem estamos a falar, que a pessoa que conhecemos está
diferente, está velha, e que por isso também nós devemos estar
diferentes e velhos. E então perguntamos: «o que é que
aconteceu?».
Mas não é assim. Isto não é nada.
Isto sou eu a preparar-me para o que vou escrever a seguir.
Já era de madrugada e eu ia trabalhar numa peça que estou a escrever, apesar de te ter dito que estava a corrigir testes.
Depois ouvi a tua voz a dizer: «fala comigo». E eu falei como se
não houvesse silêncios entre nós.
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