segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

VOZES DO PASSADO

«Toda a gente se queixa da sua memória, mas ninguém se queixa da sua inteligência». Eu lembro-me de cada vez menos coisas e estou progressivamente convencido de que tenho razão em tudo, o que pela velha máxima de La Rochefoucauld faz de mim um cretino igual a tantos outros.
Quando temos vinte anos a vida parece um enorme caderno em branco a preencher com sucessos, amores e algumas dificuldades, que por sermos obviamente especiais transformaremos em vitórias. Depois os anos passam e todo o passado se resume a uma vaga ideia do que aconteceu, uma recordação geral de uma série de acontecimentos particulares que nunca conseguimos controlar. Chama-se viver. Vamos andando em frente deixando muitas coisas para trás, e nem sequer pensamos nisso.
As conversas sobre quem somos vão desaparecendo porque a dada altura já não precisamos de ir jantar fora ou ir beber um copo a um bar para ir para a cama com alguém. Deixamos de nos apaixonar e deixamos de falar sobre o que nos aconteceu porque todas as pessoas à nossa volta ou já conhecem as histórias ou estavam lá presentes quando elas aconteceram. Ficamos cada vez mais sozinhos e com isso já não falamos sobre nós, sobre como chegámos até aqui. Conversamos sobre o presente, o dia-a-dia. Actualizamos os que estão à nossa volta sobre o que nos acontece com a regularidade de um jornal, diário ou semanário, e quando as amizades nos afastam alguns meses, somos uma espécie de revista trimestral, que deixa de lado a espuma dos dias e se concentra nos grandes acontecimentos e mudanças que possam ter ocorrido, mesmo que não tenha acontecido nada.
Mas há sempre um dia – que estranho – em que encontramos um rosto familiar na rua, de um velho amigo ou de uma mulher que amámos, e por uns instantes parece que o tempo não é uma linha contínua mas uma fita de Moebius, que estamos no mesmo sítio onde estávamos há não sei quanto tempo e que o passado afinal estava mesmo ali ao nosso lado, tão nítido como no dia em que o vivemos.
Mas é diferente, não é?
E depois de três sorrisos e quatro gargalhadas vem o silêncio, um silêncio que diz que não sabemos com quem estamos a falar, que a pessoa que conhecemos está diferente, está velha, e que por isso também nós devemos estar diferentes e velhos. E então perguntamos: «o que é que aconteceu?».
Mas não é assim. Isto não é nada. Isto sou eu a preparar-me para o que vou escrever a seguir.
Já era de madrugada e eu ia trabalhar numa peça que estou a escrever, apesar de te ter dito que estava a corrigir testes. Depois ouvi a tua voz a dizer: «fala comigo». E eu falei como se não houvesse silêncios entre nós.

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