quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

UM SEGUNDO DEPOIS

A escrita é uma droga que sei evitar. Sou como aqueles yuppies dos anos 80 e 90 que tanta matéria deram a Brett Easton Ellis e derivados: uso e abuso, mas nunca vou parar à sarjeta; um belíssimo adágio, se rimasse.
Gosto pouco dos que dizem em entrevistas que se não escrevessem morreriam, e menos ainda dos líderes do campeonato-do-número-de-páginas-publicadas-por-ano. Escrevem tanto que namoram as esferográficas, e com certeza encontram nelas tudo o que necessitam para descobrirem o prazer auto-erótico. Desprezo-os, a eles, aos livros deles e aos leitores dos livros deles.
A escrita prosaica, cronista, em muito autobiográfica, é a pior das drogas. Um dia sem escrever não é uma necessidade insatisfeita nem o desespero do papel em branco, um dia sem escrever é um dia que não aconteceu, uma ausência de significado, uma perda de tempo.
Felizmente nunca conheci dias desses. Há sempre alguma coisa a acontecer na minha vida, sou vítima do inesperado. Hoje, por exemplo, numa espécie de tribunal de pequeníssima instância, tentava que finalmente alguém me pagasse o arranjo do carro depois de mo terem espatifado há quase um ano. Havia muito por onde escolher: o juiz, um ancião janota, o meirinho, uma espécie de comentador desportivo sofisticado, e os dois advogados (eu representava-me a mim próprio), ela, que parecia ambicionar ter sido um dia acessora de Coco Channel, e ele, que apesar da postura à Perry Mason, dava mais ares de ter vindo de uma banca de frangos da feira de São Mateus. Mas o vencedor foi a testemunha chave, o condutor do veículo A: hirto, suado, nervoso do queixo às unhas, que mal se senta se dirige ao juiz,
- eu quero dizer neste... 
Hesita, ia dizer "tribunal", mas estamos numa sala vulgar, mesas, cadeiras e uns carrinhos de brincar em cima de estradas coloridas feitas de polyester. Continua,
- eu quero dizer nesta cerimónia...
Interrompe-se porque todos riem muito, eu também.
Mas não foi bem assim que aconteceu, nem foi isto que me aconteceu hoje. As banalidades parecem sempre interessantes  quando narradas com sarcasmo. 
Então o que é que realmente me aconteceu hoje? O que é que eu vivi? O que é que aprendi? 
E ontem, que nem escrevi nada? 
Ontem foi muito diferente. mas só amanhã falarei sobre isso. 

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