Este é o último texto que vou escrever
durante muito tempo. Não é o último texto que vou escrever durante muito tempo,
é o último texto que vou escrever aqui durante muito tempo. Vou continuar a
escrever, vou obrigar-me a escrever mesmo que tudo o que escrevo me pareça mau.
Escrevo e deito tudo para o lixo. Tenho o cesto cheio de papéis. Tenho sacos
cheios de papéis à espera que eu os leve para o contentor. Tenho o chão cheio
de papéis. Tenho a casa cheia de papéis que atiro para o chão. Quando me irrito
apanho-os e atiro-os para dentro de um saco plástico. Tudo se amontoa pela
casa. Parece que vou morrer sufocado num monte de papéis. Já nem desligo a música
nem os candeeiros. Apenas ando pela casa, aos pontapés aos papéis que se
amontoam pelo chão, a acender cigarros para encontrar outros encostados aos
cinzeiros. Desliguei o telefone. Desliguei-me das pessoas. Às vezes durmo no chão.
Acordo no chão sem saber onde estou.
– As coisas não estão fáceis, Miguel,
digo em voz alta enquanto olho para o
tecto. Estou deitado no tapete. Afastei a mesa e deitei-me no tapete, debaixo
da mesa não há papéis. Lembro-me da minha médica hoje,
– o Lexapron não funcionou, o Prozac não
funcionou, o Zoloft não funcionou, o Proximax não funcionou e o Seroxat não
funcionou.
São nove e meia da manhã. Dormi duas
horas. Ontem dormi três. Não sei como consegui acordar.
– Sabes que Descartes morreu porque a
rainha Christina da Suécia o obrigava a dar-lhe aulas às cinco da manhã?,
digo eu.
– Cala-te, Miguel. Isto é sério.
Ela está de mau humor. Deve estar com o
período.
– Sabes uma coisa, é normal que as
pessoas te chamem misógino.
– Eu disse aquilo em voz alta? Pensava
que estava a pensar.
– Miguel, acorda, isto não é uma daquelas
coisas em que tudo acaba por acabar bem por muito mal que as coisas corram.
Estamos a falar da tua vida.
Depois começa a estalar os dedos à minha
frente.
– Estás a ouvir-me?
Olho em volta enquanto ela olha para mim.
– Estou aqui,
diz ela.
– E Descartes morreu de pneumonia. Pára
de achar que toda a gente é estúpida,
diz ela.
Depois pergunta-me o que é que tenho
feito. E depois eu digo-lhe que tenho tentado escrever, que tenho deitado papéis
para o chão e que talvez uma vez ou outra tenha passado à porta de tua casa
para fumar uns 20 ou 30 cigarros.
– Uma vez ou outra?
Eu olho para a janela atrás dela. Não
vejo o Sol. Só vejo o céu encoberto e as nuvens. Tento encontrar uma forma
qualquer nas nuvens, uma qualquer, mas é tudo tão uniforme que só consigo ver
uma massa cinzenta que não acaba.
– Não, não é uma vez ou outra. São todos
os dias. E acho que ela nem sequer lá está.
A minha médica olha para mim. Eu estou a
olhar para o tecto deitado no tapete. Vim para casa.
– Pára com isso. Segue em frente,
disse ela.
– Para onde?,
disse eu.
Estou deitado no tapete. Estou a olhar
para o tecto. Estou a pensar que a vida é um sítio cheio de papéis que se
amontoam pelo chão. Estou a pensar que tenho de parar de escrever para começar
a escrever. Estou a pensar que sinto a tua falta. Estou a pensar que não posso
morrer assim, deitado num tapete a pensar em ti. Estou a pensar que tenho de me
levantar daqui, que tenho de me levantar daqui antes que morra.
– Levanta-te
antes que morras, Mike,
ouço-me dizer,
– acredita no que todos te dizem, ela não te merece.
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