quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

JANUS

O que é que se faz depois? Não sei. Não é recomeçar porque afinal nunca se começou, é só agarrar nas coisas e colocá-las noutro lado, num armário, num caixote, na arrecadação. É só colocar as coisas num armário, num caixote, na arrecadação? Sim, é só colocar as coisas num armário, num caixote, na arrecadação e esperar que daqui a muitos anos quando olhar para elas consiga dizer,
– ah, que estranho, já não me lembrava disto.
Estás a falar de quê? Estou a falar de coisas que se põem em armários, caixotes, na arrecadação. Coisas, que coisas? Coisas. Como o quê? Como um puzzle com a imagem da Torre Eiffel ou um livro sobre antropologia. Pensava que estavas a falar sobre outra coisa. Não, não estava a falar sobre outra coisa. Pensei que sim. Não. Lembrei-me de ti no outro dia. Foi? Uma peça de Beckett. Obrigado. Não é um elogio.  Pensei que era. Não te estou a comparar com Beckett. Claro. Achas que te estava a comparar com o Beckett? Lembraste-te de mim? Sim. Porquê? O actor estava a ler, disse,
– adeus ao
depois virou a página do livro que estava a ler, ouviu-se um silêncio, e depois,
– amor.
Adeus ao amor? Sim. Porque estás a falar disso? Lembrei-me de ti. Tu sabes que eu não quero falar sobre isso. Apenas me lembrei de ti. Isso nem sequer está em cena. Conheces? Sim. Talvez apenas tenha imaginado enquanto lia. Eu não quero falar de amor, quero falar sobre puzzles com a imagem da Torre Eiffel e de livros sobre antropologia. Desculpa. Não te rias. O que é que tens feito? Tenho escrito. O que é que estás a escrever? Pergunta estúpida. Estás a escrever uma peça. Sim. Uma peça nova? Sim. Que tal está a correr? Bem. Quando vai estar pronta? Para a semana. Tens a certeza? Sim. Ouvi dizer que não tens escrito nada, que tens passado os dias quieto, que não falas com ninguém, que não atendes o telefone, que não dormes de noite, que foges das pessoas, que apenas sais de casa para comer uma refeição ou comprar tabaco e que às vezes nem sequer sais de casa. Isso é mentira, quem é que te disse isso? Ouvi dizer que não deixas que as pessoas se aproximem, que não queres falar com ninguém, que queres ficar fechado em casa, a dizer às pessoas que estás a escrever,
– estou a escrever,
mas que não escreves nada, nem vês televisão, nem lês, nem bebes, nem tentas, nem abres a janela, nem mudas de roupa, apenas te deixas estar sentado a olhar para a parede. Farto-me de sair de casa e de estar com as pessoas, até passei os últimos dias em centros comerciais a comprar prendas de Natal. A sério? Sim. Isso é bom. Muito bom. E que tal? O quê? Como é que estás? Óptimo. Como é que te sentes? Óptimo. Onde é que vais passar o Natal? Em casa. Com quem? Sozinho. Porquê? Estou a escrever uma peça, preciso de me concentrar. Estou a ver. Estás? O que é que fizeste hoje? Nada. E ontem? Nada. E anteontem? Nada. Pensei que estavas a escrever uma peça. E estou. Pensei que tinhas passado os últimos dias em centros comerciais a comprar prendas de Natal. E passei. Está frio. Vou ligar o aquecedor. Estás a falar de quê? Estou a falar do frio, do aquecedor. Pensei que estavas a falar de outra coisa. Não, não estava a falar de outra coisa. Desculpa. Cala-te. O que é que vais fazer? Agora? Sim, o que é que vais fazer agora? Não sei, talvez comprar prendas de Natal. Acho que a esta hora está tudo fechado. Então vou dormir. Tens sono? Não. Vais conseguir dormir? Não. Então vais fazer o quê? Nada.

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