segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

FANTASMAS

O Ling tem 9 anos e tanta inconsciência do mundo como qualquer outra criança da idade dele. Tudo o que se afasta mais do que uns centímetros do umbigo lhe é indiferente, e assim, apesar de quase todas as semanas falarmos um com o outro, nunca me perguntou o nome, nem se estava bem, nem se precisava de alguma coisa, apenas me abre a porta com um sorriso de quem tem 9 anos e diz,
– boa noite.
Os pais do Ling vieram para Portugal há quase 20 anos e na zona da Av. de Roma foram dos poucos ou talvez os únicos que se mantiveram por cá. Acho que teve a ver com aquela história de um velho chinês que encontraram cortado ao meio dentro de uma arca frigorífica com a boca aberta e os braços para cima como se pedisse socorro. Depressa surgiram os boatos que não havia chineses nos cemitérios portugueses porque iam todos parar ao chop suey, e daí até à recessão foi um curto passo.
Os pais do Ling, mais duas tias, uma delas casada, conseguiram sobreviver e sempre que é a minha vez de comprar o jantar de família vou ao Bom Garfo encomendar a comida e é assim que vou vendo o Ling a abrir-me a porta, e a dizer,
– boa noite,
orgulhoso da competência com que executa a tarefa depois das aulas, com um sorriso de 9 anos tão grande como sincero.
É sempre bom ser reconhecido. Eles são genuinamente simpáticos e ao contrário do que acontece noutros sítios nunca achei que me insultavam enquanto falam em mandarim entre eles. Peço sempre o mesmo. Pago. E depois digo que vou beber uma cerveja ali sentado na mesa. Peço uma imperial e dão-me uma cerveja de garrafa, dizem que é o mesmo preço e que tem mais. Eu agradeço. Eles agradecem e dizem que não vai demorar muito. Eu sento-me. Afasto-me um pouco da mesa, cruzo a perna e digo a mesma piada,
– ainda não se pode fumar, pois não?
– o senhol é que devia deixal de fumal.
Eu rio-me. Eles riem.
– Talvez em breve. Quem sabe?
Depois o Ling aproxima-se.
– Olá.
Temos sempre a mesma conversa, ou pelo menos sobre os mesmos assuntos. Eu pergunto-lhe como vai a escola. O Ling diz que é o melhor da turma. Eu digo-lhe que estudar é importante. Depois pergunto-lhe pelas namoradas (o número de namoradas do Ling é variável, mas é sempre mais do que uma), e há sempre uma história estranha que me faz rir, ou foi uma delas que bateu no Ling, ou foi o Ling que chamou feia a uma delas e a pôs a chorar.
– Mas gostas dela?
– Sim,
diz o Ling com o sorriso de 9 anos.
– E já lhes disseste que são namorados?
(acaba sempre assim, a conversa)  
– Não,
diz o Ling sem o sorriso de 9 anos,
– para quê?
– Tens de dizer-lhe, Ling. Tens de dizer-lhe que gostas dela. Se lhe disseres que gostas dela
(depois calei-me)
Não sei por que razão me calei. Isto foi na sexta-feira. O Ling ficou a olhar para mim e eu fiquei a olhar para o Ling, os dois em silêncio, os dois perdidos, sem saber o que dizer.
– Quem é que morreu?,
perguntou ele.
– Estás tão triste. Quem é que morreu?
E acho que só não comecei a chorar porque não ia começar a chorar à frente de uma criança de 9 anos, porque pessoas como eu não choram à frente de uma criança de 9 anos, pessoas como eu não choram à frente de ninguém. Por isso, sorri.
– Fui eu, Ling. Fui eu que morri.
Ele nem sequer pareceu surpreendido.
– És um fantasma?
– Sim, Ling. É isso mesmo. Sou um fantasma.
– É por isso que estás sempre sozinho?
A comida estava pronta. A mãe do Ling disse para o Ling me deixar em paz. E eu ao contrário do que é costume não disse que ele não incomoda nada. À saída lá estava o Ling com a porta aberta à minha espera. Ergueu a palma da mão no ar e eu depois de hesitar, disse,
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e bati com a minha na dele.
– És um fantasma bom,
disse ele,
– diz-lhe que gostas dela,
disse ele.
E eu disse.

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