O Ling tem 9 anos e tanta
inconsciência do mundo como qualquer outra criança da idade dele. Tudo o que se
afasta mais do que uns centímetros do umbigo lhe é indiferente, e assim, apesar
de quase todas as semanas falarmos um com o outro, nunca me perguntou o nome,
nem se estava bem, nem se precisava de alguma coisa, apenas me abre a porta com
um sorriso de quem tem 9 anos e diz,
– boa noite.
Os pais do Ling vieram para
Portugal há quase 20 anos e na zona da Av. de Roma foram dos poucos ou talvez
os únicos que se mantiveram por cá. Acho que teve a ver com aquela história de
um velho chinês que encontraram cortado ao meio dentro de uma arca frigorífica
com a boca aberta e os braços para cima como se pedisse socorro. Depressa
surgiram os boatos que não havia chineses nos cemitérios portugueses porque iam
todos parar ao chop suey, e daí até à recessão foi um curto passo.
Os pais do Ling, mais duas
tias, uma delas casada, conseguiram sobreviver e sempre que é a minha vez de
comprar o jantar de família vou ao Bom Garfo encomendar a comida e é assim que vou
vendo o Ling a abrir-me a porta, e a dizer,
– boa noite,
orgulhoso da competência
com que executa a tarefa depois das aulas, com um sorriso de 9 anos tão grande
como sincero.
É sempre bom ser
reconhecido. Eles são genuinamente simpáticos e ao contrário do que acontece
noutros sítios nunca achei que me insultavam enquanto falam em mandarim entre
eles. Peço sempre o mesmo. Pago. E depois digo que vou beber uma cerveja ali sentado
na mesa. Peço uma imperial e dão-me uma cerveja de garrafa, dizem que é o mesmo
preço e que tem mais. Eu agradeço. Eles agradecem e dizem que não vai demorar
muito. Eu sento-me. Afasto-me um pouco da mesa, cruzo a perna e digo a mesma
piada,
– ainda não se pode fumar,
pois não?
– o senhol é que devia
deixal de fumal.
Eu rio-me. Eles riem.
– Talvez em breve. Quem
sabe?
Depois o Ling aproxima-se.
– Olá.
Temos sempre a mesma
conversa, ou pelo menos sobre os mesmos assuntos. Eu pergunto-lhe como vai a
escola. O Ling diz que é o melhor da turma. Eu digo-lhe que estudar é importante.
Depois pergunto-lhe pelas namoradas (o número de namoradas do Ling é variável,
mas é sempre mais do que uma), e há sempre uma história estranha que me faz
rir, ou foi uma delas que bateu no Ling, ou foi o Ling que chamou feia a uma
delas e a pôs a chorar.
– Mas gostas dela?
– Sim,
diz o Ling com o sorriso de
9 anos.
– E já lhes disseste que são
namorados?
(acaba sempre assim, a
conversa)
– Não,
diz o Ling sem o sorriso de
9 anos,
– para quê?
– Tens de dizer-lhe, Ling. Tens
de dizer-lhe que gostas dela. Se lhe disseres que gostas dela
(depois calei-me)
Não sei por que razão me
calei. Isto foi na sexta-feira. O Ling ficou a olhar para mim e eu fiquei a
olhar para o Ling, os dois em silêncio, os dois perdidos, sem saber o que
dizer.
– Quem é que morreu?,
perguntou ele.
– Estás tão triste. Quem é
que morreu?
E acho que só não comecei a
chorar porque não ia começar a chorar à frente de uma criança de 9 anos, porque
pessoas como eu não choram à frente de uma criança de 9 anos, pessoas como eu não
choram à frente de ninguém. Por isso, sorri.
– Fui eu, Ling. Fui eu que
morri.
Ele nem sequer pareceu
surpreendido.
– És um fantasma?
– Sim, Ling. É isso mesmo. Sou
um fantasma.
– É por isso que estás
sempre sozinho?
A comida estava pronta. A mãe
do Ling disse para o Ling me deixar em paz. E eu ao contrário do que é costume
não disse que ele não incomoda nada. À saída lá estava o Ling com a porta
aberta à minha espera. Ergueu a palma da mão no ar e eu depois de hesitar, disse,
– hi-5
e bati com a minha na dele.
– És um fantasma bom,
disse ele,
– diz-lhe
que gostas dela,
disse ele.
E eu disse.
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