terça-feira, 24 de novembro de 2015

A SOLIDÃO DA TUA PORTA

Olho para mim. É o fim da noite e olho para mim ao espelho. Cada vez me pareço mais com uma personagem. A minha vida é tão exagerada que não parece ser real, mas é a minha vida. É a minha vida que me está a acontecer. Está frio.  À porta de tua casa está frio.
Vou começar assim:
tenho passado os últimos dias, aliás, as últimas noites, à porta de tua casa. Deves ter reparado na quantidade de cigarros que estão à tua porta. Não sei como começou, apenas sei que começou. Às vezes imagino-te a saíres de casa e a reparares na quantidade de cigarros no chão que estão à tua porta. Imagino-te a dizer de manhã,
– Ah, que estranha quantidade de cigarros que estão no chão à minha porta.
Sou eu. Sou eu que passo ali a noite sem saber o que fazer. Porque não há nada que eu queira fazer, nem nada que eu ache que deva fazer, apenas estou ali, a olhar para a tua porta. Eu de cigarro na mão. Eu a olhar para a tua porta. Eu com frio. Eu a apagar o cigarro no chão. E eu a olhar para a tua porta sem saber o que quero que aconteça ou se algo diferente poderia acontecer. Eu a acender outro cigarro. Eu a ir para casa porque já é quase de manhã e não quero que me encontres à tua porta. Eu a chegar a casa e a sentar-me no sofá e a adormecer.
Eu às voltas na minha cabeça.
Estou a ver o Pedro a telefonar-me amanhã para irmos não sei onde e eu a dizer que não, que não me apetece, que estou sem vontade, quando na verdade estou apenas à tua porta a fumar cigarros sem saber o que quero que aconteça porque eu não sei o que quero que aconteça quando sei o que não vai acontecer.
O meu psicólogo disse-me,
– vamos parar com as sessões.
– Estou curado?.
perguntei.
E ele riu-se. Riu-se muito. Riu-se mesmo muito.
– Não, não, não. Não. Não, não.
E continuava a rir-se.
– Não, não. Nada disso. Vou de férias. Vamos ter de parar com as sessões, mas é só durante três semanas.
– Não estou curado?
– Não, não, não. Não. Não, não.
E continuava a rir-se.
Entretanto o meu gestor de conta desapareceu, tal como o meu dinheiro. E a minha médica diz que não posso ter mais de uma consulta por semana,
– pare de beber whisky e café, pare de fumar e coma mais vegetais.
– Isso era o que o meu pediatra dizia,
respondi eu. Ela não se riu. Acho que percebeu a piada.
Sinto falta das estrelas. Há dois anos vivia numa casa maior que este prédio. A esta hora havia sempre ruídos que invadiam a casa. Quando os cães ladravam a esta hora eu carregava a pistola (era uma seis trinta e cinco) e saía cá para fora com uma lanterna e com a arma na mão. Dava a volta à casa. Nunca encontrei ninguém. Saí sempre preparado para disparar. Mas nunca encontrei ninguém. Depois parava. Depois olhava para cima, com a arma na mão, destravada, e sabia que os cães olhavam para mim. Estava frio. Na altura olhava para as estrelas enquanto os cães olhavam para mim. Agora olho para a tua porta sem que alguém olhe para mim. Parece que já não sei onde estão as estrelas.
Hoje. Quero falar sobre hoje. Tudo isto é metafórico e tu sabes disso. Por isso falei de ontem e por isso falei de amanhã.
(não quero acabar já)
Entretanto um actor ligou-me. Quer saber como está o monólogo que ele me encomendou. Eu digo-lhe para ele não se preocupar. Digo-lhe que estou a tentar chegar a um determinado limite. Mas olho para trás e já nem o vejo, a esse limite, já nem o consigo ver. Olho para trás e só te vejo a dizer,
– Mike
(gosto quando me chamas Mike).
Estou em frente ao espelho. Estou à frente da tua porta. São 5:46, se saíres agora, se saíres agora e abrires a porta, vais encontrar-me com frio, cá fora, à frente da tua porta. Não há cães, nem estrelas, nem armas carregadas. Apenas eu, a apagar cigarros no chão da tua porta.

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