quarta-feira, 11 de novembro de 2015

CALÍOPE

Apropriadamente, encontrei na antologia da lírica de Camões que uso nas aulas um bilhete que suponho que seja para mim. Dizia,
– AMO-TE
escrito a letras garrafais por cima de um contido,
– adoro-te
e com um coração preenchido a vermelho desenhado no canto inferior direito.
Suponho que a rapariga (estou a partir do princípio que é uma rapariga) se arrependeu a meio da mensagem e decidiu amar-me em vez de adorar-me. Fiquei contente com a escolha, o amor é um sentimento muito mais interessante do que a idolatria, e é sempre preferível uma iconoclasta a uma freira devota.
O meu psicólogo perguntou-me hoje se eu estava bem. Eu disse que sim e ele transformou a pergunta numa afirmação.
– Estás bem.
Depois disse que eu não tinha razões para estar mal e eu concordei com ele.
– Não tenho razões para estar mal.
À noite vejo as notícias. Estão imensas coisas acontecer no país e eu não fazia ideia.
– Eu não voto,
disse eu no outro dia a uma senhora que me telefonou a meio da tarde a perguntar se eu me importava de participar numa sondagem.
– Nesse caso, posso pôr: «não sabe/ não responde»?
– Não,
disse eu,
– não pode.
E tudo isto porque não consigo escrever. Claro que consigo escrever, consigo estar em casa e depois sair de casa e depois voltar para casa e escrever. Consigo sentar-me e escrever,
apropriadamente, encontrei na antologia da lírica de Camões que uso nas aulas um bilhete que suponho que seja para mim. Dizia,
– AMO-TE
escrito por cima de um,
– adoro-te
e com um coração preenchido a vermelho desenhado no canto inferior direito,
mas não consigo escrever. Fico a olhar para a parede, sentado a olhar para a parede, sem conseguir. Às vezes penso que a vida é complicada de perceber. Às vezes penso que a vida é como um bilhete de amor que deixamos à porta de alguém ou numa antologia de Camões, nunca sabemos o que vai acontecer.

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