sexta-feira, 20 de novembro de 2015

QUANTO MAIS AS COISAS MUDAM, MAIS ELAS FICAM NA MESMA

Tenho a vida cheia de ilusões. Às vezes parece que se esticar o braço em direcção a qualquer coisa ela vai desaparecer. Como se tudo fosse intangível, como se tudo fosse uma ideia fabricada e nada existisse realmente. Já não sei se preciso de férias ou se preciso de não parar de trabalhar, e por isso mantenho-me entre uma e outra escolha, deitado no sofá a pensar no que vou dizer nas aulas, ou em pé nas aulas a imaginar-me deitado no sofá.
A minha vida é óptima. Almoço com as pessoas, passo a tarde com as pessoas, janto com as pessoas, bebo com as pessoas, durmo com as pessoas. Às vezes acho que sou um rato preso numa gaiola, sempre a correr numa roda giratória, sempre a correr sem sair do mesmo sítio. Às vezes acho que era melhor ter ficado em casa e não ter saído para a rua. Se eu tivesse ficado em casa e não tivesse saído para a rua ela não me tinha abraçado, nem me tinha dito que queria ter um filho comigo, que um dia queria ter um filho comigo. Eu disse-lhe que se ela engravidasse eu a empurrava para a frente de um comboio. Ela foi-se embora. Bateu com a porta e foi-se embora. Antes de bater com a porta e ir-se embora disse que eu era um merdas,
– ÉS UM MERDAS
e depois bateu com a porta e foi-se embora. Bateu com a porta com força. Com muita força. E acho que estava a chorar. Estava a gritar e a chorar. Eu sentei-me no sofá e fiquei a pensar que eu nem sequer ando de comboio. Como é que eu a ia atirar para a frente de um comboio se eu só ando de carro? Amanhã vai dizer que é a vida dela,
– é a minha vida
e que eu não tenho o direito de expor a vida dela neste texto perante toda a gente, mas como estou a escrever este texto e estou a expor a vida  dela perante toda a gente, amanhã não me vai falar, nem depois, nem depois, e a conversa da gravidez futura vai ser só uma conversa passada.
Acho que não consigo falar com as pessoas. Acho que há um momento em que quero dizer uma coisa e me sai outra. Acho que isso me acontece sempre. Como naquele dia em que te ia comprar flores para te entregarem em casa e a senhora disse,
– vai pagar em dinheiro ou com cartão?,
e eu olhei para ela como se ela tivesse insultado a minha mãe.
Acho que esse dia nunca aconteceu. Acho que nunca estive ali, em pé, à frente de uma senhora que me perguntou,
– vai pagar em dinheiro ou com cartão?,
acho que nunca tive coragem para esse dia. Acho que me fiquei sempre pela ideia de fazer isso, ou então houve um momento em que eu disse à senhora,
– não há flores que comprem o amor.
Tenho a vida cheia de ilusões. À noite deito-me na cama e não durmo. Apago a luz e olho para o tecto e imagino as estrelas por cima dele. Conheço todas as constelações, e por isso quase consigo vê-las à minha frente. Estendo a mão e quase toco nelas. Estendo a mão e quase que as abraço. À noite olho-me ao espelho, isto é antes de me ir deitar. Comprei um creme nocturno que promete o rejuvenescimento. E eu olho para o espelho e olho para mim. E ponho o creme na cara. Eu ponho o creme na cara. Não sei se quero ser jovem ou se não quero envelhecer.
Onde estás? A sério, onde é que estás?

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