Ontem, depois do almoço fomos os três ver pessoas mortas. A
princípio elas não acreditaram que eram de facto cadáveres, mas depois de
alguma insistência perceberam que os ossos eram ossos, que a pele era pele, que
os músculos eram músculos e que os órgãos eram órgãos, mas mesmo assim
mantivemos quase sempre uma distância de segurança em relação aos corpos. Só às
vezes, quando um de nós dizia,
– não quero acabar assim,
ou
– será que ela era
bailarina?,
ou
– malta, isto era uma pessoa,
é que ganhávamos consciência de que aquilo à nossa frente teve
uma vida, um trabalho, amou, sonhou, sofreu e depois morreu e transformou-se no
que estava à nossa frente, apenas um corpo despido, realmente nu.
O que mais nos impressionou foram os fetos. Quatro semanas,
cinco semanas, seis semanas, sete semanas, oito semanas. Não é fácil perceber que
começámos assim e que conseguimos chegar até aqui, que estamos a fazer qualquer
coisa, nem que seja pensar que não é fácil perceber que começámos assim.
À noite sonhei que estava a conduzir um carro. O sonho
começava assim, eu dentro de um carro a acelerar, a acelerar sempre numa
estrada mal iluminada. Nada acontecia a não ser isso. Eu acelerava e o carro ia
mais depressa, sempre assim durante muito tempo, cada vez mais depressa, como
se o acelerador não tivesse fim, como se por muito que eu esticasse o pé
houvesse ainda um espaço por preencher que me fazia ir mais depressa. Depois
bati contra uma parede. Não morri. Não acordei. Continuei a acelerar e o carro
continuou a bater na parede. E assim estive até o despertador tocar. Foi uma
noite longa.
Acordei e li um artigo sobre o tempo. Parece que há novas
teorias sobre o tempo. Alguém levantou a hipótese de que o tempo vai parar
daqui a uns milhões de anos, que se vai transformar em espaço e que vai parar. Não sei como é que o tempo se vai transformar em espaço, mas parece que é possível que isso aconteça. E quando isso acontecer o tempo vai parar de existir. Vai deixar de existir uma distância entre o dia de hoje e o
de amanhã, como se apenas saíssemos de um sítio e chegássemos a outro sem
termos percorrido um caminho, como se tudo se passasse ao mesmo tempo porque o
tempo morreu e se transformou em espaço.
Depois fui dar aulas. À tarde falei do Livro de Job a propósito do Rei
Lear. Os miúdos começam a perceber quando é que eu vou dizer uma coisa que
os vais destruir. Não os destrói, claro que não os destrói (só um bocadinho) mas ficam com o olhar de quem diz,
– isto vai dar cabo de mim,
ou
– não digas o que vais dizer.
Enquanto estava a falar de Job lembrei-me dos cadáveres à
nossa frente, da maneira como nenhum deles sorria, de como nós caminhávamos no meio deles e de como parámos, como o tempo.
Sem comentários:
Enviar um comentário