quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

3 MINUTOS

Tal como J. Alfred Prufrock, vou começar a medir a minha vida em colheres de café e não em dias meses anos. Os dias meses anos são demasiado longos para mim, que sou muito mais pequeno.
O jantar estava bom, obrigado. Cozinhei para seis pessoas, entradas, prato principal e café, mas só pus um prato na mesa. Acho que seis pessoas é o número ideal de amigos para se ter numa festa de fim de ano. Esqueci-me de comprar as passas, mas ninguém vai reparar porque eu não como passas.  Bebi um gin tónico antes do jantar. Bebi um copo de vinho ao jantar. Acabei de abrir o champagne. Não vou esperar pela contagem decrescente.
Acho que a certa altura deixamos de pensar se o ano que passou foi bom ou mau. Gosto quando ouço dizer,
– parece que foi ontem,
porque a mim não me parece que tenha sido ontem, nem há um ano, às vezes olho para trás e parece que foi outra vida e por isso começo a pensar que devíamos medir o tempo tal como J. Alfred Prufrock, em colheres de café, e pensar se em cada um desses pequenos pedaços de existência estamos a aprender alguma coisa. Eu acho que continuo a aprender. Neste ano aprendi mais do que queria, o que por alguma razão me fez lembrar daquela velha máxima,
– cuidado com o que desejas.
Lavei a louça e arrumei a casa. O jantar estava bom, obrigado. Ponho uma música dos anos 50, gosto desta música.
Estava à espera que alguma coisa diferente acontecesse. Estava à espera de poder conseguir contrariar-me porque tudo o que pode acontecer pode eventualmente acontecer. Mas não. Aconteceu tudo como disse que ia acontecer. Escrevo demasiado bem a minha vida, sem me enganar.
E agora é só ir até à varanda e esperar pelo fogo-de-artifício. Aposto que vai estar um vento frio quando olhar para a direita, para Cascais.

quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

SEASON 2 - FINALE

A cena começa comigo à varanda. É de noite. Está vento. Estou a olhar para a direita, para Cascais. Tenho um copo de champagne no parapeito e estou a acender um cigarro. Guardo o isqueiro no bolso e pego no copo de champagne. Olho para a direita, para Cascais. Estou em casa, é um oitavo andar. Consigo ver o céu, o mar, os prédios, a rua. O vento frio incomoda-me mas vou ficar aqui parado. Parado como alguém que não se consegue mexer. Não é como alguém que não se quer mexer, é como alguém que não se consegue mexer. Estou a olhar para direita com um copo de champagne na mão e um cigarro na outra. Estou de costas e se houvesse uma câmara ela começaria a afastar-se de mim, devagar. Primeiro sai da varanda, o plano não muda, sou apenas eu sozinho ao fundo, cada vez mais distante, mostra o quarto vazio sem se desviar de mim e depois a sala, a mesa com um prato apenas e demasiada comida para uma pessoa, demasiadas coisas para uma pessoa. Estou sozinho a olhar para a direita, para Cascais. Sou uma figura ao fundo, na varanda, com um quarto e uma sala entre nós, quase não se percebe que sou eu. Parece que a cena vai acabar porque é assim que as cenas acabam, com a câmara a afastar-se e a deixar a personagem sozinha, pequena, como se não tivesse saída, como se ela fosse ficar ali presa para sempre, a olhar para a direita, a olhar para Cascais. Mas afinal, não. Em vez de acabar assim, primeiro, as cores no céu, depois, o barulho do fogo-de-artifício. É meia-noite. As pessoas abraçam-se nas varandas, as pessoas beijam-se nas varandas. As pessoas estão felizes. As pessoas estão muito felizes. Eu olho para elas. Estou a olhar para elas e não se consegue perceber no que estou a pensar. Sou uma personagem misteriosa. Ou então sou apenas uma pessoa com um copo de champagne numa mão e um cigarro noutra. Olho para o fogo-de-artifício, para as cores no céu. As cores do fogo-de-artifício reflectem-se na minha cara. É tudo muito cinematográfico. Nem sequer uma palavra. Não há uma palavra. Podia dizer qualquer coisa, mas nada há a dizer porque tudo o que era preciso dizer já foi dito. A imagem basta para explicar a situação.
É a noite de fim de ano e eu estou sozinho em casa. Ouve-se uma música dos anos 50. As pessoas calam-se porque se houvesse uma câmara estava fixa na minha cara com a música dos anos 50 em fundo. Olho para o fogo-de-artifício com as cores a reflectirem na minha cara. Fumo o cigarro. Bebo o champagne. Olho para dentro de casa e há um blackout enquanto a música dos anos 50 continua.

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

JANUS

O que é que se faz depois? Não sei. Não é recomeçar porque afinal nunca se começou, é só agarrar nas coisas e colocá-las noutro lado, num armário, num caixote, na arrecadação. É só colocar as coisas num armário, num caixote, na arrecadação? Sim, é só colocar as coisas num armário, num caixote, na arrecadação e esperar que daqui a muitos anos quando olhar para elas consiga dizer,
– ah, que estranho, já não me lembrava disto.
Estás a falar de quê? Estou a falar de coisas que se põem em armários, caixotes, na arrecadação. Coisas, que coisas? Coisas. Como o quê? Como um puzzle com a imagem da Torre Eiffel ou um livro sobre antropologia. Pensava que estavas a falar sobre outra coisa. Não, não estava a falar sobre outra coisa. Pensei que sim. Não. Lembrei-me de ti no outro dia. Foi? Uma peça de Beckett. Obrigado. Não é um elogio.  Pensei que era. Não te estou a comparar com Beckett. Claro. Achas que te estava a comparar com o Beckett? Lembraste-te de mim? Sim. Porquê? O actor estava a ler, disse,
– adeus ao
depois virou a página do livro que estava a ler, ouviu-se um silêncio, e depois,
– amor.
Adeus ao amor? Sim. Porque estás a falar disso? Lembrei-me de ti. Tu sabes que eu não quero falar sobre isso. Apenas me lembrei de ti. Isso nem sequer está em cena. Conheces? Sim. Talvez apenas tenha imaginado enquanto lia. Eu não quero falar de amor, quero falar sobre puzzles com a imagem da Torre Eiffel e de livros sobre antropologia. Desculpa. Não te rias. O que é que tens feito? Tenho escrito. O que é que estás a escrever? Pergunta estúpida. Estás a escrever uma peça. Sim. Uma peça nova? Sim. Que tal está a correr? Bem. Quando vai estar pronta? Para a semana. Tens a certeza? Sim. Ouvi dizer que não tens escrito nada, que tens passado os dias quieto, que não falas com ninguém, que não atendes o telefone, que não dormes de noite, que foges das pessoas, que apenas sais de casa para comer uma refeição ou comprar tabaco e que às vezes nem sequer sais de casa. Isso é mentira, quem é que te disse isso? Ouvi dizer que não deixas que as pessoas se aproximem, que não queres falar com ninguém, que queres ficar fechado em casa, a dizer às pessoas que estás a escrever,
– estou a escrever,
mas que não escreves nada, nem vês televisão, nem lês, nem bebes, nem tentas, nem abres a janela, nem mudas de roupa, apenas te deixas estar sentado a olhar para a parede. Farto-me de sair de casa e de estar com as pessoas, até passei os últimos dias em centros comerciais a comprar prendas de Natal. A sério? Sim. Isso é bom. Muito bom. E que tal? O quê? Como é que estás? Óptimo. Como é que te sentes? Óptimo. Onde é que vais passar o Natal? Em casa. Com quem? Sozinho. Porquê? Estou a escrever uma peça, preciso de me concentrar. Estou a ver. Estás? O que é que fizeste hoje? Nada. E ontem? Nada. E anteontem? Nada. Pensei que estavas a escrever uma peça. E estou. Pensei que tinhas passado os últimos dias em centros comerciais a comprar prendas de Natal. E passei. Está frio. Vou ligar o aquecedor. Estás a falar de quê? Estou a falar do frio, do aquecedor. Pensei que estavas a falar de outra coisa. Não, não estava a falar de outra coisa. Desculpa. Cala-te. O que é que vais fazer? Agora? Sim, o que é que vais fazer agora? Não sei, talvez comprar prendas de Natal. Acho que a esta hora está tudo fechado. Então vou dormir. Tens sono? Não. Vais conseguir dormir? Não. Então vais fazer o quê? Nada.

terça-feira, 15 de dezembro de 2015

CRAZY HEART

Ando há três dias para te matar. Três dias são muitos dias. Não está a ser fácil. Não te matei ontem, não te matei no sábado, não te matei na sexta-feira. Não és fácil de matar.
Sexta à noite tinha a casa cheia de amigos. Disse-lhes,
– vou matá-la.
E ao contrário do que estava à espera todos acenaram com a cabeça uns para os outros e depois para mim,
– isso é uma boa ideia,
– até que enfim,
– faz isso.
Um dia depois, o meu agente veio visitar-me. Mais uma surpresa agradável na minha vida. À tarde tínhamos visto o Crazy Heart e todos concordaram que era muito Miguel Graça. Depois foram-se embora e chegou o meu agente que se sentou no mesmo sítio onde estava o David, que disse,
– este filme está a matar-me,
com o mesmo tom de voz com que o meu agente disse,
– sinceramente, já nem sei o que te hei-de dizer.
– Então não digas nada,
disse eu.
Hoje fui comprar uma árvore de Natal. Saí das aulas e fui para casa. Sentei-me no sofá. Devo ter ficado uma hora ou mais assim, ainda de casaco e gorro na cabeça. Depois levantei-me e fui comprar uma árvore de Natal. Quando regressei a casa percebi que me tinha esquecido dos enfeites e que uma árvore despida num canto da sala ainda ia ser pior. Volto outra vez para trás e acho que vou ter um ataque de pânico no meio de tanta gente, que vou começar a bater nas pessoas ou a bater em mim mesmo. Quero sair dali mas consigo comprar luzes, bolas vermelhas e uma estrela para pôr lá em cima. Volto para casa. Acabo de montar a árvore de Natal e penso que estou finalmente onde eu sempre quis estar quando era novo. Mas afinal não é nada de especial. Afinal é uma merda. Se ao menos não tivesse descoberto isso antes podia viver este momento de outra maneira, podia viver este momento como uma espécie de epifania, mas não, a redenção não é para mim, para mim apenas sobra uma árvore de Natal iluminada encostada a um canto, a fingir
(esta é a parte mais difícil)
a fingir que
(esta é a parte mais difícil de admitir)
a fingir que não estou sozinho.
Levanto-me e acendo um cigarro. Passeio pela casa. Vou à varanda. Não há luzes acesas e está frio. Volto a sentar-me, escrevo,
– vou matar-te,
e vai ser fácil. Podia trocar-te por outra, o meu horóscopo até diz,
– talvez esta semana conheça alguém que talvez mude a sua vida,
mas são demasiados talvez, ou podia esquecer-te ou apenas deixar que te fosses embora. Mas prefiro matar-te, é mais definitivo e não tenho alma de Petrarca.
Por isso, desculpa, meu amor, estás pronta? 
(isto sim, é o mais difícil)
Estás morta.
Assim.
E agora que morreste tudo é mais fácil. Nem sequer estou a chorar. Claro que vou chorar a tua morte, mas é mais fácil o luto que a esperança.
Acabou.
Estás morta. Estou curado. Tudo se resolveu. A minha persona está curada e eu posso voltar a escrever sobre outras coisas que não tu. Tudo acabou em bem e ninguém se magoou.
Estás morta. Foste só um capítulo. Vou continuar. Vou falar sobre outras coisas  que me acontecem, como árvores de Natal, filmes que vemos nas tardes chuvosas de sábado e visitas do meu agente enquanto se queixa que eu não vendo nada. Vou falar sobre muita coisa, mas não volto a falar de ti porque morreste e os mortos devem ficar quietos, sem que alguém os queira renascer.
Sinto-me bem. Se as coisas fossem tão fáceis na vida como na ficção já te tinha matado há mais tempo.

terça-feira, 8 de dezembro de 2015

HONEYBEAR

Os feriados são dias complicados. Não é que todos os dias não sejam complicados, mas os feriados são diferentes, como um permanente desconforto de quem não sabe onde está, como um estrangeiro no próprio país.
Acordei às 10h30 e comecei por me insultar por me ter esquecido de pôr o despertador e agradecer-me por ter conseguido acordar sem ajuda sonora. Tomei banho, fiz a barba, vesti-me. Às 11h00, à porta de casa, lembrei-me que é feriado e que à terça-feira nem sequer tenho aulas às 11h00. Voltei para a cama e adormeci.
Às 13h00 telefonaram-me com boas notícias. Acordei. Passei as mãos pela cara. Fui ao facebook e fiz uma piada. Não gostaste da piada. Descobri que estás chateada comigo. Fui para a sala. Pensei,
– não tenho fome, não tenho mesmo fome, hoje não vou comer.
Liguei a televisão. Estou a rever o Anjos na América, passou na Fox Mulher no meu dia de anos. Estou no segundo capítulo. Estava à procura de um filme qualquer que tivesse passado durante a semana e encontrei sem querer os seis episódios. Tinha-te acabado de dizer que esperava que não ficasses chateada comigo muito tempo, que apenas pensar nisso dava cabo de mim, quando ouvi o Roy Cohn a dizer ao Joe Pitt,
– o amor é uma armadilha,
enquanto olhava para o telemóvel à espera da tua resposta que sabia que não havia de chegar.
Pensei pôr o cobertor por cima de mim e deixar-me ficar deitado no sofá até ter fome. Lembrei-me de um artigo que li ontem sobre seis formas de detectar a depressão e lembrei-me que nenhuma delas referia cobertores e sofás. Depois olhei para o Al Pacino e pensei no que a Eunice me disse há uns anos,
– não te transformes num cínico.
Levantei-me e fui almoçar. Fui a pé. Por estes dias ando com o Father John Misty nos ouvidos. Não ouço mais nada e pareço a personagem da Madalena, sempre assim, com os phones nos ouvidos. Gosto dele. Gosto de como transforma a felicidade em melancolia, gosto de como parece haver sempre um passo em falso que vai destruir tudo, e de como, apesar disso, ele parece tão feliz. Levei o Alain de Botton debaixo do braço que o Victor me deu no sábado. Sentei-me e pensei,
– pede um bife, Miguel,
e pedi um bife.
Comi contrariado, mas comi tudo. Não quis sobremesa. Pedi um café
(cheio)
e peguei no Botton. Veio o café. Não sei se os empregados me dizem alguma coisa porque tenho o Father John a gritar aos meus ouvidos 
– maybe love is just an economy based on resource scarcity,
o wiko merda, o meu telefone, agora nem me deixa baixar o som, acho sempre que estou a incomodar as pessoas com o barulho dos phones mas até é uma analogia interessante com a minha vida, sempre no máximo  mas eu digo sempre,
– obrigado,
quando me trazem o café ou o bife.
Estou a ler o primeiro capítulo.
– «Em conversas, a minha prioridade era que gostassem de mim, muito mais do que dizer a verdade».
Quis fumar um cigarro e tinha o tabaco na cadeira em frente, dentro do casaco. Ergui-me para ir buscar o casaco. Quando regresso, o Father John Misty fica preso à chávena de café e o café vai para cima da mesa, do Botton, do wiko merda das calças.
– É uma bela metáfora para a minha vida.
– Diga?,
diz o empregado.
– Outro café
(cheio).
Levanto os olhos e vejo-te parada, ao longe, à espera do autocarro. O que é que estás a fazer aí parada à espera do autocarro? Que raio estás tu a fazer à espera do autocarro? A não ser que não sejas tu, ultimamente vejo-te em todo o lado, na rua, na mercearia, no outro dia até te vi em minha casa. Estavas sentada à minha frente e estávamos a conversar. Sei que não és tu, mas continuei a conversar porque talvez fosses tu. Talvez fosses mesmo tu e talvez seja por isso que estejas chateada comigo. Sei que não és tu mas peço a conta e vou ter contigo à paragem do autocarro. Desta vez não és mesmo tu e por isso ela que não és tu diz,
– estás a olhar para onde?
Eu peço desculpa e continuo a andar até casa. Está a escurecer

segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

FANTASMAS

O Ling tem 9 anos e tanta inconsciência do mundo como qualquer outra criança da idade dele. Tudo o que se afasta mais do que uns centímetros do umbigo lhe é indiferente, e assim, apesar de quase todas as semanas falarmos um com o outro, nunca me perguntou o nome, nem se estava bem, nem se precisava de alguma coisa, apenas me abre a porta com um sorriso de quem tem 9 anos e diz,
– boa noite.
Os pais do Ling vieram para Portugal há quase 20 anos e na zona da Av. de Roma foram dos poucos ou talvez os únicos que se mantiveram por cá. Acho que teve a ver com aquela história de um velho chinês que encontraram cortado ao meio dentro de uma arca frigorífica com a boca aberta e os braços para cima como se pedisse socorro. Depressa surgiram os boatos que não havia chineses nos cemitérios portugueses porque iam todos parar ao chop suey, e daí até à recessão foi um curto passo.
Os pais do Ling, mais duas tias, uma delas casada, conseguiram sobreviver e sempre que é a minha vez de comprar o jantar de família vou ao Bom Garfo encomendar a comida e é assim que vou vendo o Ling a abrir-me a porta, e a dizer,
– boa noite,
orgulhoso da competência com que executa a tarefa depois das aulas, com um sorriso de 9 anos tão grande como sincero.
É sempre bom ser reconhecido. Eles são genuinamente simpáticos e ao contrário do que acontece noutros sítios nunca achei que me insultavam enquanto falam em mandarim entre eles. Peço sempre o mesmo. Pago. E depois digo que vou beber uma cerveja ali sentado na mesa. Peço uma imperial e dão-me uma cerveja de garrafa, dizem que é o mesmo preço e que tem mais. Eu agradeço. Eles agradecem e dizem que não vai demorar muito. Eu sento-me. Afasto-me um pouco da mesa, cruzo a perna e digo a mesma piada,
– ainda não se pode fumar, pois não?
– o senhol é que devia deixal de fumal.
Eu rio-me. Eles riem.
– Talvez em breve. Quem sabe?
Depois o Ling aproxima-se.
– Olá.
Temos sempre a mesma conversa, ou pelo menos sobre os mesmos assuntos. Eu pergunto-lhe como vai a escola. O Ling diz que é o melhor da turma. Eu digo-lhe que estudar é importante. Depois pergunto-lhe pelas namoradas (o número de namoradas do Ling é variável, mas é sempre mais do que uma), e há sempre uma história estranha que me faz rir, ou foi uma delas que bateu no Ling, ou foi o Ling que chamou feia a uma delas e a pôs a chorar.
– Mas gostas dela?
– Sim,
diz o Ling com o sorriso de 9 anos.
– E já lhes disseste que são namorados?
(acaba sempre assim, a conversa)  
– Não,
diz o Ling sem o sorriso de 9 anos,
– para quê?
– Tens de dizer-lhe, Ling. Tens de dizer-lhe que gostas dela. Se lhe disseres que gostas dela
(depois calei-me)
Não sei por que razão me calei. Isto foi na sexta-feira. O Ling ficou a olhar para mim e eu fiquei a olhar para o Ling, os dois em silêncio, os dois perdidos, sem saber o que dizer.
– Quem é que morreu?,
perguntou ele.
– Estás tão triste. Quem é que morreu?
E acho que só não comecei a chorar porque não ia começar a chorar à frente de uma criança de 9 anos, porque pessoas como eu não choram à frente de uma criança de 9 anos, pessoas como eu não choram à frente de ninguém. Por isso, sorri.
– Fui eu, Ling. Fui eu que morri.
Ele nem sequer pareceu surpreendido.
– És um fantasma?
– Sim, Ling. É isso mesmo. Sou um fantasma.
– É por isso que estás sempre sozinho?
A comida estava pronta. A mãe do Ling disse para o Ling me deixar em paz. E eu ao contrário do que é costume não disse que ele não incomoda nada. À saída lá estava o Ling com a porta aberta à minha espera. Ergueu a palma da mão no ar e eu depois de hesitar, disse,
hi-5
e bati com a minha na dele.
– És um fantasma bom,
disse ele,
– diz-lhe que gostas dela,
disse ele.
E eu disse.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

LABIRINTO

Estou a entrar naquela fase da vida em que se começa a perder tudo. Perdi o meu instinto, perdi a minha alma, perdi os meus amigos, perdi o meu amor, perdi o meu sorriso, perdi o meu humor e agora começo a perder a vontade de fazer as tarefas mais básicas como comer, dormir ou fazer a barba.
Parti a guitarra do Bruno. Ele ainda não sabe. Foi há bocado. Mas tinha-lhe dito que isso talvez acontecesse. Ele disse-me que desde que me fizesse sentir melhor, que ele não se importava. Só partiu à terceira. Está ali feita em bocados no meio do chão. Nem sequer tenho vontade de ir buscar a vassoura e a pá. Era a guitarra preferida dele. Deu-ma no final do se eu não fechar os olhos, esteve encostada à parede desde aí, mesmo ao meu lado, onde me costumo sentar. Não me estou a sentir melhor. Estou na mesma. Tocaram à porta uns dois minutos depois. Era a minha vizinha de baixo a perguntar se estava tudo bem. Eu pedi desculpa, disse que tinha deixado cair uma chávena de café. Ela olhou para mim.
– E o cinzeiro, também deixei cair o cinzeiro.
Ela voltou a perguntar se estava tudo bem e eu disse que sim, que estava tudo bem. Fechei a porta e voltei a sentar-me.
Estou com vontade de viajar. Não sei para onde. Ainda há dois dias disse que não ia escrever aqui durante uns tempos e afinal continuo a escrever aqui. Talvez para um sítio quente, ou então talvez apenas pegue no carro e ande por aí às voltas umas centenas de quilómetros até encontrar um local isolado com ar acolhedor. Talvez haja um salão com uma lareira e eu me sente à lareira e pense no quão longe estou de casa.
Continuo a encontrar bilhetes anónimos nos lugares mais diferentes, na carteira, na caixa do correio, nos bolsos do casaco, dentro do maço de tabaco. Hoje tinha espetado na janela do carro um,
– RI-TE MIGUEL
sem vírgula nem elegância, escrito nas costas de um daqueles anúncios que deixam nos limpa pára-brisas e que são sempre uma variante de,
– oportunidade única.
Mas vou rir-me de quê? Vou rir-me de mim próprio? Porque isso já fiz, já fiz durante muito tempo e já perdeu a piada. É como ouvir a mesma anedota várias vezes. Às tantas dizemos a quem a está a contar que já a ouvimos e que sabemos como acaba. E as anedotas acabam sempre mal para alguém. Como aquela em que um homem está à frente de um casino a chorar com uma caixa à frente dele. Passa outro homem que lhe pergunta se ele está a chorar porque perdeu no casino.
– Sim.
O outro homem vai perguntando quanto é que ele perdeu. Mil? Dez mil? Cem mil? Um milhão?
– Mais,
diz o homem que chora.
– Se eu perdesse mais de um milhão no casino, a minha mulher arrancava-me o coração.
E depois o homem que chora olha para o outro homem e diz,
– o que é que acha que está dentro da caixa?  
Não me estou a rir. Talvez não seja assim que acabe. Talvez apenas não tenha graça. Talvez não seja uma anedota.  

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

ESCREVER ATÉ MORRER

Este é o último texto que vou escrever durante muito tempo. Não é o último texto que vou escrever durante muito tempo, é o último texto que vou escrever aqui durante muito tempo. Vou continuar a escrever, vou obrigar-me a escrever mesmo que tudo o que escrevo me pareça mau. Escrevo e deito tudo para o lixo. Tenho o cesto cheio de papéis. Tenho sacos cheios de papéis à espera que eu os leve para o contentor. Tenho o chão cheio de papéis. Tenho a casa cheia de papéis que atiro para o chão. Quando me irrito apanho-os e atiro-os para dentro de um saco plástico. Tudo se amontoa pela casa. Parece que vou morrer sufocado num monte de papéis. Já nem desligo a música nem os candeeiros. Apenas ando pela casa, aos pontapés aos papéis que se amontoam pelo chão, a acender cigarros para encontrar outros encostados aos cinzeiros. Desliguei o telefone. Desliguei-me das pessoas. Às vezes durmo no chão. Acordo no chão sem saber onde estou.
– As coisas não estão fáceis, Miguel,
digo em voz alta enquanto olho para o tecto. Estou deitado no tapete. Afastei a mesa e deitei-me no tapete, debaixo da mesa não há papéis. Lembro-me da minha médica hoje,
– o Lexapron não funcionou, o Prozac não funcionou, o Zoloft não funcionou, o Proximax não funcionou e o Seroxat não funcionou.
São nove e meia da manhã. Dormi duas horas. Ontem dormi três. Não sei como consegui acordar.
– Sabes que Descartes morreu porque a rainha Christina da Suécia o obrigava a dar-lhe aulas às cinco da manhã?,
digo eu.
– Cala-te, Miguel. Isto é sério.
Ela está de mau humor. Deve estar com o período.
– Sabes uma coisa, é normal que as pessoas te chamem misógino.
– Eu disse aquilo em voz alta? Pensava que estava a pensar.
– Miguel, acorda, isto não é uma daquelas coisas em que tudo acaba por acabar bem por muito mal que as coisas corram. Estamos a falar da tua vida.
Depois começa a estalar os dedos à minha frente.
– Estás a ouvir-me?
 Olho em volta enquanto ela olha para mim.
– Estou aqui,
diz ela.
– E Descartes morreu de pneumonia. Pára de achar que toda a gente é estúpida,
diz ela.
Depois pergunta-me o que é que tenho feito. E depois eu digo-lhe que tenho tentado escrever, que tenho deitado papéis para o chão e que talvez uma vez ou outra tenha passado à porta de tua casa para fumar uns 20 ou 30 cigarros.
– Uma vez ou outra?
Eu olho para a janela atrás dela. Não vejo o Sol. Só vejo o céu encoberto e as nuvens. Tento encontrar uma forma qualquer nas nuvens, uma qualquer, mas é tudo tão uniforme que só consigo ver uma massa cinzenta que não acaba.
– Não, não é uma vez ou outra. São todos os dias. E acho que ela nem sequer lá está.
A minha médica olha para mim. Eu estou a olhar para o tecto deitado no tapete. Vim para casa.
– Pára com isso. Segue em frente,
disse ela.
– Para onde?,
disse eu.
Estou deitado no tapete. Estou a olhar para o tecto. Estou a pensar que a vida é um sítio cheio de papéis que se amontoam pelo chão. Estou a pensar que tenho de parar de escrever para começar a escrever. Estou a pensar que sinto a tua falta. Estou a pensar que não posso morrer assim, deitado num tapete a pensar em ti. Estou a pensar que tenho de me levantar daqui, que tenho de me levantar daqui antes que morra.
 – Levanta-te antes que morras, Mike,
ouço-me dizer,
– acredita no que todos te dizem, ela não te merece.