sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

LAIKA

Desde que te matei, meu amor, que a vida é mais fácil. Chego a casa e pareço uma personagem melancólica, como naqueles filmes em que há pouco diálogo porque uma imagem vale mais que etc. E é verdade, às vezes a imagem é mais forte. Eu a abrir a porta do prédio com um saco de compras na mão, eu, ridículo, com um saco de compras pendurado nos braços, demasiado pesado para o meu braço direito torto. Eu a carregar no botão do elevador que está no último andar porque o elevador nunca está à minha espera, eu a olhar para trás e a ver que já é noite, eu a olhar para a noite e a perguntar-me como pode ser noite se nem quase vi o dia, eu de frente para o espelho do elevador e a achar que estou a ficar velho, eu a contar os cabelos brancos no espelho do elevador e achar que são poucos, eu a dizer boa noite à vizinha que está sempre a fumar cá fora quando abro a porta do elevador, e a vizinha que nunca responde, eu a despir o casaco e a pendurá-lo atrás da porta e a ficar um minuto ou mais quieto, os ombros para baixo, os olhos para baixo, eu para baixo, eu a chegar a casa e a achar que esta ainda não é a minha casa e que uma pessoa deve ter um sítio a que chame casa, que quando não se tem um sítio a que se chama casa então é porque não se tem para onde voltar. Eu a ocupar o tempo até dormir. 
Desde que morreste, meu amor, que a vida é mais fácil. Às vezes leio, às vezes vejo um filme. A maior parte do tempo fico assim, a ler ou a ver um filme. Às vezes saio de casa, pego no carro e vou até Lisboa apenas para beber café. Gosto de conduzir. Gosto de pegar no carro, depois de jantar e ir a Lisboa apenas beber um café num sítio diferente, num sítio onde não costumo ir. Gosto de regressar. Gosto de regressar na auto-estrada, apenas eu e mais um ou dois carros que passam rápidos por mim, eu não tenho pressa. Digo sempre,
– boa noite,
às pessoas das portagens. Acho que sou uma pessoa boa. Tento escrever, não é isso, sento-me à secretária e tento escrever. Está a ser cada vez mais difícil, e encontro na tua morte a razão para o meu fracasso diário. Escrevo e escrevo e depois apago tudo, deito tudo fora. Olho em frente e nem releio o que escrevi, apenas respondo à mensagem,
– do you want to save changes you made to document 1?
com um, 
– don’t save,
enquanto esfrego os olhos e me aproximo do monitor. Acho que estou a começar a ver mal. Escrevo num post-it,
– ir ao oftalmologista,
e colo-o na parede e lembro-me que já tive a casa cheia post-its. Se os tirei foi porque me faziam lembrar de ti e porque como morreste não queria que a tua lembrança ficasse na parede, sempre na parede como se não tivesses morrido. Não me fazia bem. 
Desde que te matei, meu amor, que deixei de beber, nem me lembro sequer da última vez que comprei uma garrafa de whisky. Estou a fumar muito menos, respiro melhor, deito-me cedo, não sonho contigo, e é raro pensar em ti. Leio, vejo filmes ou vou a Lisboa beber café. A minha vida é assim, cheia de certezas diárias, no outro dia até dei por mim à noite a olhar para o horizonte e a pensar que já era tarde, que devia voltar para casa.
Desde que morreste que a vida é mais fácil. O tempo passa e quase que me esqueço de ti. 

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