Nada acontece mas parece que tudo está a acontecer. Não
consigo escrever. Estou a escrever mas não estou a conseguir escrever. Escrevo palavras
mas são todas erradas. Escrevo e não escrevo, olho para a parede e não vejo
nada, como por obrigação porque não tenho fome, vejo as notícias mas não faço
ideia do que estão a falar. Tenho a casa cheia de mosquitos, acho que me
esqueci de pôr o lixo desde que começou o ano, passo a noite a bater com
as mãos uma na outra a tentar matá-los quando eles me aparecem à frente, e bato com força porque
eles me irritam, a minha vizinha de baixo deve achar que eu tenho vontade de
bater palmas a meio da noite.
Noites longas, dias longos. De dia, arrasto-me com sono. À
noite não consigo dormir. Espero, espero, espero. Começo a contar o tempo ao
contrário, a ver as horas a passar ao contrário. Ainda posso dormir seis horas,
ainda posso dormir cinco horas, ainda posso dormir quatro horas. Isto foi anteontem,
às seis da manhã, ainda podia dormir quatro horas mas decidi levantar-me e ir
até à cozinha sentar-me e pegar numa caneta. Não tenho conseguido escrever.
Olho para o ecrã e para o teclado, encosto-me para trás e deixo-me estar a ver
o tempo ao contrário. Parece que é sempre demasiado tarde. Parece que estou a viver
uma vida em que já é tarde para tudo, já é tarde para adormecer, já é tarde
para chegar a horas, já é tarde para escrever, já é tarde para almoçar, para
jantar, é sempre tarde, já é tarde para começar a fazer qualquer coisa e já é
tarde para mudar o que aconteceu. Parece que a consciência das coisas aparece
fora de tempo, como naquela história em que duas miúdas de doze anos estão sentadas
num baloiço e uma diz,
– sabes que encontrei ontem um preservativo no quintal?
diz a outra,
– o que é isso, um quintal?
Estava rodeado pelo escuro do quarto e quando acendi a luz
não me senti mais acompanhado. Ainda podia dormir quatro horas, acabei por
dormir uma. Passei o resto do tempo com a caneta na mão, sentado na mesa da cozinha
a bater palmas e a pensar que ainda faltavam três horas, duas horas, uma hora. Lembrei-me
de um aluno que me tinha dito nessa tarde,
– sabe uma coisa, professor, as mulheres são todas umas
putas, andam para aí a ver se chove e depois: «ai, constipei-me!»
Fiquei a olhar para ele.
– Nem sequer sei o que é que isso quer dizer.
E ele,
– claro que sabe, eu leio as suas crónicas.
Hoje é a mesma coisa. Hoje, a mesma coisa. A contar o tempo ao
contrário. Ando há dois dias nisto. A contar o tempo ao contrário e a achar que
já é tarde para tudo. Acho que a infelicidade é isso, chegar a casa e não ter uma pessoa a quem dizer,
– o David Bowie morreu,
e poder chorar abraçado a ela.
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