sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

OUTER SPACE

Maribel. Ela chama-se Maribel. Deve ter uns 50 anos, mas talvez tenha 30, é difícil perceber a idade. À primeira vista parece um hipopótamo, cinzenta, cara enorme, pernas gordas, braços gordos, compacta como um combóio, não deve ter mais do que um metro e sessenta mas ao mesmo tempo parece ser capaz de arrastar atrás dela qualquer peça de mobília que vá do chão ao tecto. A Maribel é a minha empregada, nasceu no Nordeste brasileiro, em Maceió, e duas vezes por semana vem cá a casa arrumar as coisas que eu não sei arrumar e lavar as coisas que eu não sei lavar. 
Raras vezes vi uma mulher tão feia na minha vida.
Ontem decidi que estava farto dos mosquitos e de não pôr o lixo e de não fazer a cama e de não lavar a louça. Pensei,
– vou arranjar uma empregada na internet,
e pesquisei
– empregadas,
no google.
É estranho, mas apareceram uma série de empresas referenciadas na categoria,
– recrutamento de empregadas domésticas externas.
Chamou-me a atenção uma em particular,
– MAID sin. É um bom nome,
pensei. Peguei no telefone, marquei o número e fiquei à espera.
– MAIDS in, boa tarde em que posso ser útil?
Claro.
A conversa não foi fácil. Eu não sou bom nos diálogos. Já há muito que me dizem isso, que eu não sou bom nos diálogos,
– tu és bom nos monólogos,
dizem-me muitas vezes, e se eu sou bom nos monólogos é porque não devo ser bom nos diálogos.
Não começou bem. Primeiro eu disse que precisava de uma empregada. Do outro lado perguntaram-me quantas horas e quantas vezes por semana,
– todos os dias, de manhã à tarde,
mas depois lembrei-me que nunca ia conseguir estar sozinho com alguém em casa de manhã à tarde, que mesmo a dormir de manhã e nas aulas à tarde não ia gostar de acordar e encontrar uma estranha a estender a roupa ou de voltar para casa e encontrar uma estranha a limpar o chão.
– Não, a casa é pequena. Dois dias, dois dias é mais do que suficiente. E só à tarde. Só à tarde, quando eu não estou, das duas e meia às seis e meia. Isso chega perfeitamente.
– Muito bem, muito bem,
disseram do outro lado,
– e que tipo de empregada tem em mente?
A minha médica e o meu psicólogo não conseguem entender-se. Estou a ficar farto deles. Ela diz que eu sofro de uma espécie rara de autismo que se manifesta apenas em determinadas situações, quando estou sujeito a uma dose elevada de stress ou quando não durmo durante mais de quarenta horas,
– Tu não percebes nada, nada de nada,
diz o meu psicólogo que se ri muito enquanto continua a dizer,
– vocês médicos não percebem nada, não percebem nada de nada. São todos uns aldrabões. Miguel, isto é uma corja de aldrabões.
E continua a rir-se enquanto eu me me lembro de ontem, da voz do outro lado perguntar,
– e que tipo de empregada tem em mente?
e eu a responder,
– não sei. Talvez loura. Vinte anos. Russa. Bonita. Não tem de ser russa. Pode ser eslovena ou checa. As eslovenas são as mais bonitas. E pode ser mais velha, obviamente, mas não muito. Vinte e cinco, no máximo. Mas convém ser bonita. Sensual, mas inocente. Uma espécie de Salomé. Percebe o que quero dizer?
– Não,
ouvi dizer do outro lado.
– Senhor Graça, isto é uma agência de empregadas domésticas e não de prostitutas. O que eu queria dizer com a minha pergunta era que tipo de empregada pretende, uma cozinheira, uma pessoa para fazer a lide diária...
Fui beber um copo com o meu psicólogo. Tinha saudades dele. Perguntei-lhe pela tese, está quase a ser publicada. Ele perguntou por mim e eu disse que estava tudo na mesma,
– está tudo na mesma.
Ele disse-me que eu era o meu maior problema. Que devia ouvir músicas alegres e deixar que as coisas acontecessem, que as coisas que têm de acontecer acabam por acontecer,
– Sim, as coisas que têm de acontecer acabam por acontecer, eu, por exemplo, fiquei com a Maribel.
Ambos nos rimos. Pedimos mais um whisky. Amanhã vou chegar atrasado às aulas. Falamos sobre as coisas, falamos sobre nada. Brindamos e sorrimos. Quero ir para casa. Depois ele lembra-se de algo e diz,
– É verdade, quando eu estive de férias, nos teus anos, sempre foste ver o John Grant à Noruega? Tinhas essa ideia.
– Não,
digo eu,
– acabei por não ir. Fiquei aqui.
– Ele vem aí em Julho. O John Grant vem aí em Julho tocar no não sei quê alive.
– Eu sei,
digo eu.
– Estás a ver, às vezes as coisas têm de acontecer como acontecem: não foste ver o John Grant e agora o John Grant vem ver-te, é um sinal.
– Talvez,
digo eu,
– talvez.
E depois voltei para casa. O céu estava cinzento como a Maribel, coberto de nuvens.

1 comentário:

  1. Olá Miguel! Gosto do que escreve. Também eu durmo pouco e dou aulas, mas de manhã. São quase duas e meia e acordo às sete... Upsss
    Parabéns!

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