sexta-feira, 23 de outubro de 2015

O JOGADOR

É uma doença antiga. Entra-se no edifício e não há relógios nem janelas. Não se vê nada a não ser luzes e panos de veludo. Eu entro no edifício e lembro-me de Alexei Ivanovich. Entro no edifício e sei que vou perder, que não há maneira de ganhar, mas entro na mesma.
– Gabo-te a paciência, Miguel Graça,
disse o meu gestor de conta enquanto me apresentava uma lista de dívidas e credores.
É uma doença antiga. Ainda não encontraram a cura. Tal como Alexei Ivanovich a minha preferência vai para a roleta. Talvez seja a ideia de que o universo cabe em 36 números mais o zero, e de que podemos encontrar o rumo certo das coisas, o padrão original que desencadeia tudo o que há-de surgir, essa força ou essa ilusão de que somos capazes de controlar o destino, que somos capazes de prever o momento a seguir e o outro e o outro, mas não controlamos nada.
– Tens de sair daí, ir para outros lados, conhecer outras pessoas,
disse o meu gestor de conta enquanto me apresentava uma lista de dívidas e credores.
Mas eu não quero ir para outros lados nem conhecer outras pessoas. Estou bem aqui mesmo que não esteja bem. Estou bem aqui porque é onde estou e com o tempo acabamos por aceitar que estamos onde estamos porque foi aqui que viemos dar. E se foi aqui que viemos dar então há que aceitar que o fizemos e o que fomos são as razões que nos trouxeram até aqui.
Paro e penso que nem sempre é assim. Da última vez que entrei num casino não sei bem como lá fui parar. Estava descansado, acho que a ver uma peça de teatro, não me lembro qual, nem sei bem se seria uma peça de teatro, talvez fosse outra coisa, mas estava com mais gente à minha volta, e, de repente, sem saber como, estava diante de um pano verde com um monte de fichas à minha frente. Gosto de arriscar. E há 36 números mais o zero. 28. Apaixonei-me pelo 28. E por isso comecei a apostar no 28.
– Nada mais,
e eu apostava no 28.
– O “K” é uma letra no vosso alfabeto?,
– não,
respondi eu a uma alemã enrugada vestida de preto enquanto apostava. E depois o tempo começou a passar. E eu a apostar cada vez mais. E cada vez mais. Sempre a apostar no 28, como se os outros números fossem invisíveis. O tempo passou. E depois apostei tudo. Peguei em todas as fichas que me restavam e quando tive a certeza que era o momento certo apostei tudo no 28. E depois perdi.
– O que é que vais fazer agora?,
disse o meu gestor de conta enquanto me apresentava uma lista de dívidas e credores.
Quando perco tudo a primeira coisa que me vem à cabeça são aqueles versos do Kipling,
If you can make one heap of all your winnings
And risk it on one turn of pitch-and-toss,
And lose, and start again at your beginnings
And never breathe a word about your loss
mas é mais fácil recitá-los de cor do que cumpri-los. E por isso fiquei muito tempo a olhar para a mesa e para a roleta, os números a sair e eu à espera do 28, como se fosse um eléctrico ou um autocarro que apenas se tivesse atrasado. Até que as pessoas começaram a dizer,
– vai para casa,
ou
– o que é que estás a fazer?
E depois vou para casa. E em casa, sozinho, sento-me numa cadeira e acendo um cigarro. Talvez ponha música a tocar e me sirva uma bebida. Há pouca luz. E nessa altura, sentado a meia-luz com um cigarro nos lábios e um copo na mão, é impossível não pensar,
– o que é que eu fui fazer?
Mas não importa. O 28 não saiu, mas podia ter saído, e eu podia ter conseguido, eu quase podia ter conseguido. Pelo menos arrisquei, pelo menos tentei. Não fiquei de fora a ver os números a sair. Não fiquei a olhar para a roleta, olhei para um número, para o 28, apaixonei-me por esse número e apostei tudo nele. Não consegui, apostei na hora errada, no sítio errado, mas pelo menos tentei, pelo menos sei que tentei, que apostei tudo e que tentei.
– Então por que razão estás assim?,
perguntou-me o meu gestor de conta.
E eu olhei para ele e depois olhei para mim enquanto ouvia na minha cabeça uma voz mecânica que dizia,
– nada mais.
– Gastei as minhas fichas todas,
disse eu.
– Não tenho mais fichas para gastar.

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