O Mito da Imaturidade
Feminina é o título provisório da tese de doutoramento do meu psicólogo.
São 730 páginas mais ou menos aborrecidas, como ele lhes chama, e que podiam
reduzir-se a 34 segundo as contas que ele fez, mas há que pensar na seriedade
da coisa e na edição em livro (pela Dom Quixote em Abril de 2016),
– hoje em dia com menos de 500 páginas ninguém te leva a
sério,
dizia-me ele na sexta-feira ao jantar enquanto me entregava
uma cópia impressa,
– eu não vou ler isto, tenho muito que fazer, ainda ontem me
atrasei no supermercado porque uma velha me passou à frente, passou-me à frente
com um saco atafulhado de conservas e congelados e estive uns 15 minutos à
espera porque ela não conseguia pôr as compras no saco e eu só pensava, raio da
velha, quem me dera que ela caísse aqui redonda no chão, mas se ela caísse
redonda no chão chamavam o 112 e eu nunca mais saía dali, se calhar ainda tinha
de ajudar ou prestar declarações, e eu não quero ajudar nem prestar declarações,
por isso mais vale que a velha morra em casa a meter os congelados no
congelador ou as conservas no armário, mais vale isso do que vê-la a cair aqui
redonda no chão, com certeza que se ela caísse redonda no chão eu começava a assobiar e
sem que ninguém notasse deixava as compras numa prateleira qualquer e ia-me
embora à procura de outro supermercado que vendesse gelo e whisky. Não tenho
tempo para ler isto.
– Isso está cada vez pior,
disse ele enquanto apontava para o meu olho esquerdo.
Estávamos a comer hambúrgueres. Não sei porquê mas fomos parar
a uma casa de hambúrgueres. Não gosto da palavra hambúrgueres, não gosto de
escrevê-la, parece que tem letras a mais. Hambúrgueres.
– Há uma anedota antiga,
disse ele,
– o primeiro capítulo é sobre isso, sobre essa anedota, não
é o primeiro capítulo, é o prefácio, talvez lhe chame preâmbulo, mas seja como
for resume a minha tese.
E ele começou a contar a anedota e eu comecei a ouvir. Adão
estava sozinho no Éden, isto foi no princípio dos tempos, e Adão andava de um
lado para o outro com os olhos no chão. Deus perguntou-lhe,
– o que se passa, Adão?
– Sinto-me sozinho. Tenho dentro de mim uma dor tão grande
que não a consigo conter. Todos os segundos que passam parecem uma eternidade,
como se sentisse em todos os momentos apenas a espera de acontecer alguma
coisa, mas como nada acontece a dor aumenta e a solidão também. Estou sozinho a
arrastar-me pelo paraíso, e por isso o paraíso é o inferno. Estou sozinho.
– Tenho a solução para o teu problema, Adão,
disse Deus.
– Vou criar uma mulher a partir de ti. E ela não vai ser
apenas bela e inteligente, ela vai compreender-te e vai estar ao teu lado e ser
o apoio que precisas para a tua solidão. Ela vai amar-te e dar-te-á a felicidade porque terá tanto de terna quanto de racional, e mesmo
nos momentos de maior tristeza ela terá sempre um sorriso para ti.
– Vamos embora!,
disse Adão,
– que parte de mim precisas para criar a mulher?
– Um braço, uma perna, meio fígado, um pulmão e parte da
cabeça.
– Isso é muito,
disse Adão,
– o que é que se arranja com uma costela?
Ele fartou-se de rir. O meu psicólogo é daquelas pessoas que
se farta de rir com as próprias piadas.
– Essa é da salão,
disse eu enquanto pedia a conta. Mas não sei, talvez me
sinta um pouco como Adão, ou então, como me disse hoje a Madalena, talvez apenas me
sinta perdido.
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