O público, irónico, pede histórias engraçadas sobre a comédia
da vida e, portanto, eu, obediente, escrevo uma história engraçada sobre a
comédia da vida:
A COMÉDIA DA VIDA
Era uma vez um rapaz. Como todos os rapazes tinha borbulhas e
procurava uma alma gémea. No princípio era difícil porque tinha borbulhas e as
miúdas da idade dele gostavam de homens mais velhos.
O João não tinha borbulhas e era mais velho. Tinha uma mota.
O João ficava com todas. O rapaz achava que se as coisas corressem bem um dia
ia ser como o João, ia ter uma mota, ser mais velho e sem borbulhas.
O tempo passou e o rapaz cresceu, as borbulhas desapareceram
e, corolário da mediocridade, os pais compraram-lhe uma mota de baixa cilindrada
por acharem que era mais seguro. Mas mesmo assim o rapaz começou a ter sucesso. Até tirou a
virgindade a três raparigas mais novas, uma num acampamento de escuteiros
(apesar de ele não ser escuteiro) outra numa tarde em que faltaram às aulas e
foram para casa dela, e a última num canto escuro do colégio, numa festa de
finalistas (ela não queria, mas ele convenceu-a com a perspectiva de uma viagem
de mota até ao Guincho e de um namoro futuro - nenhum dos dois aconteceu).
O rapaz foi para Medicina, era bom aluno, e continuou a ter
sucesso com o sexo oposto, não tanto pelo facto de estar em Medicina, mas mais
por não ter borbulhas e ter uma mota. Não era rico, mas aparentava ser. Não era
belo, mas também não era feio e conseguia dizer quatro frases seguidas sem se
engasgar. À quinta era complicado, e, consciente dessa falha, tinha
desenvolvido um simples jogo de diálogo que consistia sempre em terminar as
ideias com uma pergunta:
– Estou a estudar Medicina. Vou ser médico. Não sei o que
quero seguir. Talvez psiquiatria. E tu, quem és?
Na verdade o rapaz queria seguir urologia, mas alguém lhe
tinha dito que isso era uma péssima ideia porque as miúdas se achariam
repelidas pela ideia de um homem a enfiar instrumentos medievais de tortura
pela uretra de outros homens adentro.
E se as raparigas lhe respondiam,
– Sei lá.
Logo ele dizia em quatro frases e uma pergunta,
– És muito bonita. Nunca vi uma mulher tão bonita como tu. Deviam
fazer um molde da tua beleza. Os meus olhos não conseguem olhar para outro lado.
Gostas de psiquiatria?
Na verdade acabou em Clínica Geral, o que não sendo uma vergonha, também não é um mérito.
O rapaz já é um homem.
Acaba o curso e está a trabalhar. Continua à procura de uma alma gémea. Está a ganhar bem e por
isso casa-se com uma enfermeira de olhar marinho. Ele julga navegar naquele
olhos de cada vez que a encara, está apaixonado. Nascem duas crianças, um rapaz
e uma rapariga. Tudo é perfeito mas discutem demasiadas vezes. Passam-se seis anos e o rapaz que é um homem um dia diz,
– Quero o divórcio.
ele nem sabe porquê, ela muito menos.
Bebeu demais,
ultimamente tem bebido demais. O rapaz que é um homem sente falta dos tempos da
mota e das raparigas virgens. A enfermeira diz,
– Seu merdas seu merdas seu merdas seu merdas. Vou ficar com tudo.
E ficou com tudo, com a casa, o carro, as crianças e metade do ordenado
dele.
O tempo passa.
O rapaz já não é um homem, é um velho que dá consultas. Os
doentes discutem com ele o diagnóstico
– O doutor é uma besta,
diz um,
– para isso tinha ido ao cangalheiro,
diz outro.
diz outro.
E o rapaz que já não é um homem, que é um velho, olha para
trás e lembra-se da mota e das três virgens.
Um dia, coincidência das coincidências, o João, velho e acabado, quase irreconhecível, entra no
consultório e sem reconhecer o outrora invejoso rival diz,
– Doutor, ajude-me. A minha neta diz que encontrou uma alma
gémea e que está grávida.
– Ah Ah Ah,
diz o rapaz que foi um homem e que agora é velho.
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