sábado, 18 de abril de 2015

MADRUGADA #1

Às seis e meia da manhã temos de ir dormir. Não há nada para fazer às seis e meia da manhã a não ser ir dormir. Amanhã é outro dia e essas coisas, mas os dias começam a parecer todos iguais. As noites também. Devia tirar umas férias. Ir para um país tropical no tempo de maior calor e ficar fechado no quarto do hotel com o ar condicionado no máximo, sentado na cama a olhar para a janela e a perguntar-me por que raio achei boa ideia ir passar férias num país tropical quando odeio o sol o calor e os trópicos. Esqueci-me das vírgulas. Ultimamente esqueço-me de muitas coisas. Anteontem, por exemplo, esqueci-me de pagar a conta no restaurante ao jantar. Levantei-me da mesa depois de beber o café e saí pela porta como quem quer voltar para casa incomodado por ter de lá saído. O empregado foi simpático, gritou um,
– Oh, amigo
enquanto eu descia as escadas. Respondi-lhe,
– Eu não sou teu amigo
e só nessa altura percebi o que se tinha passado. Voltei para trás. Pedi desculpa. Deixei cinco euros de gorjeta, envergonhado. Ele disse para eu não me preocupar, que era uma coisa normal, que acontecia muitas vezes, que as pessoas se levantavam da mesa depois de beber o café e iam para a rua esquecidas de pagar.
Eu ri-me. Ele também.
Ontem esqueci-me do aniversário de um amigo. Telefonou-me ao fim da tarde, estava a meio de uma aula, olhei para o telemóvel e perguntei-me,
– o que que este gajo quer?
mas atendi. Havia um jantar à noite em casa dele, com mais amigos e com os filhos dos amigos, porque todos casaram e todos tiveram filhos. Disse-lhe.
– Estou a traduzir uma peça. Não posso. Mas jantar de quê? Fazes anos?
e ele realmente fazia anos, quarenta, uma data importante, o tempo passa.
– Não posso. Parabéns, pá.
De maneira que me esqueço das coisas. Das coisas importantes. Esqueço-me da carteira. Esqueço-me de acordar. 
Não sei do que me esqueci hoje, mas devo ter-me esquecido de qualquer coisa. Estou a olhar-me ao espelho enquanto ajeito a gravata. É tarde. São seis e meia e tenho de ir dormir. Não sei por que raio estou a ajeitar a gravata. Às seis e meia isso não serve de nada. Onde é que me esqueci da minha alma?

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