quinta-feira, 23 de abril de 2015

ON THE ROAD (2)

Saí de Oslo pelas duas da tarde. Não havia lá nada para mim. A cidade pareceu-me sobretudo limpa e civilizada, mas é uma cidade, e duvido que encontrasse algum troll a passear pelos jardins públicos.
A Casa Ibsen está supostamente como ele a deixou quando morreu. E é tudo o que se espera do Ibsen, limpa e civilizada. Tudo no sítio certo, tudo perfeito e no sítio certo. Quando me aproximei do manuscrito do Peer Gynt pensei que ia ter uma epifania ao olhar para as palavras, para a caligrafia. Mas não aconteceu nada. Não senti nada. Paguei 100 coroas (uns 12 euros) por meia hora a passear por uma casa limpa e civilizada enquanto uma senhora também ela limpa e civilizada ia dizendo de sala em sala,
– Kor tor stor for
ou
– Par knar sar tar.
Depois da desilusão do museu fui almoçar. As pessoas são simpáticas em Oslo, e quase todas falam inglês. Ao almoço comi um Fårikål, que a empregada me disse ser um prato típico.
– Is it good?
perguntei.
– Delicious
disse ela num sorriso limpo e civilizado. Depois veio uma espécie de cozido de borrego e batatas com umas couves à mistura. Não recomendo. Comi o suficiente para me alimentar e disse,
– delicious, indeed
no final para não ferir susceptibilidades. Depois pedi um café. Não havia café. Pedi a conta. 300 coroas.
Voltei ao hotel. Peguei nas coisas e aluguei um carro. Vou para o Sul e duas horas depois estou em Skien, onde o Ibsen nasceu e viveu até aos quinze anos. A paisagem começa a ser deslumbrante. Uma mistura de montanhas cinzentas com vegetação verde e com o mar sempre ao fundo. Skien é uma cidade triste. A wikipédia diz que tem 50 000 habitantes, mas dá a sensação que só vivem cá 50. Arranjei um hotel barato e dei uma volta a pé, a puxar um fio de Ariadne imaginário atrás de mim, com medo de me perder. Encontrei um bar e entrei. Skien é muito diferente de Oslo, as pessoas não são tão limpas nem tão civilizadas e ninguém fala inglês. O norueguês é complicado. Há palavras que percebemos pela parecença fonética com línguas que conhecemos, como ja para sim, ou nei para não, mas a maior parte do tempo tudo é uma névoa de vocábulos incompreensíveis, a maior parte do tempo só ouvimos,
– Kor tor stor for
ou
– Par knar sar tar.
Entrei no bar e sentei-me ao balcão. Estão uns dez homens distribuídos pelas mesas, quase todos sozinhos. Todos têm barba e todos têm uma cerveja à frente deles. Fazem algum barulho. O homem atrás do balcão também tem barbas mas é mais velho, ainda assim é daqueles que imaginamos a dar uma chapada em alguém e a atirá-lo até ao fundo da sala.
– Good evening.
– Kor tor stor for?
Quando digo que em Skien ninguém fala inglês, não estou a exagerar. O bar é todo feito de madeira. Não há muita luz. Estamos numa espécie de penumbra castanha.
– A beer? Bière?
– Par knar sar tar?
Felizmente sou bom na mímica e o homem lá percebe o que eu pedi, aparentemente o que eu quero é uma ole, explica-me ele. Vem a cerveja e vem o homem, está curioso com a minha presença. Quer saber o que é que estou ali a fazer.
– Kor tor stor for?
Pelo que percebo quer saber se eu estou ali em trabalho ou de férias. Eu tento explicar-lhe numa mistura poliglota quem sou e o que estou ali a fazer. Faço gestos de que escrevo. Digo Henrik Ibsen e Peer Gynt. Translation. Theatre. Portugal. Acho que ele percebe. Mais uma vitória para a civilização. Estou à espera que ele me grite Cristiano Ronaldo ou José Mourinho, mas não. Deixa-se ficar calado a olhar para mim e começa a falar num tom muito baixo e grave,
– Par knar sar tar kor tor stor for.
Não percebo nada do que ele diz. Nada. Mas estupidamente vou abanando a cabeça como se percebesse. O homem fala e não pára de falar. Às tantas percebo que todos estão em silêncio a ouvi-lo e a olhar para mim. Não se ouve um único som a não ser a voz deste homem robusto de barbas brancas. Não sei o que que ele diz, mas é uma história triste e por isso ponho um ar sério. Todos estão em silêncio, ninguém se mexe. Ele pára e começa a cantar uma melodia muito triste, cheia de sentimento,
                                   par knar sar tar
                                   kor tor stor for.
Tenho medo que ele ou alguém comece a chorar. Mas nada acontece. Ele acaba a história e tudo volta à normalidade. Bebi a cerveja, paguei (50 coroas) e voltei para o hotel. Basta pormos o pé fora de casa para as coisas mais estranhas começarem a acontecer.

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