Muita coisa pode sair de uma noite de insónia. A Wilde
saiu-lhe a Salomé, a Pessoa os
heterónimos e O Guardador de Rebanhos
«de um jacto», dizia ele. Eu nunca
tive essa sorte, as minhas noites de insónia nunca foram assim, talvez porque
nunca sofri de insónias, simplesmente não consigo dormir, ou talvez apenas não
goste de dormir quando os outros dormem.
Quando eu era novo (talvez seja a primeira vez que estou a
usar esta expressão), nos tempos da Universidade, achava que havia um certo glamour em amar a poesia. Pouca gente sequer gostava dela, e eu até
estava num curso de literatura, por isso aproveitava todas as oportunidades
para marcar a diferença. Andava sempre com livros debaixo do braço que nada
tinham a ver com as cadeiras leccionadas, coisas complicadas, o Cantos do Pound, o Celan, o Cummings:
eram ao mesmo tempo, achava eu, uma espécie de escudo e arma de arremesso
contra os imbecis. Para além disso, lembro-me de duas t-shirts que ostentava com orgulho debaixo de um casaco de cabedal
negro, uma tinha a assinatura de Rimbaud e dizia o célebre «je est un autre»,
comprei-a num espectáculo no Coliseu (acho) que se chamava os Filhos de Rimbaud e que juntava o Sérgio Godinho, o Rui Reininho,
o Al Berto, o João Peste e o Jorge Palma (acho). O tempo passa e a memória
esvai-se, e o que fomos é quase um heterónimo. A outra pedi à minha mãe que a
fizesse, ela na altura fazia umas t-shirts,
esta tinha o desenho do Pessoa pelo Almada e por baixo lia-se: «há metafísica
bastante em não pensar em nada». Por que razão escolhi este e não outro
qualquer verso é um mistério para mim, provavelmente porque ele hoje faz sentido
mesmo que não fizesse na altura, ou talvez porque eu um dia não escreveria este
texto se essa t-shirt não tivesse
existido.
Quando eu era muito novo (outro heterónimo), não tinha
direito a insónias porque me levantava às seis da manhã. Ia para o colégio de
carro no banco de trás e para além do trânsito eu e a minha mãe tínhamos também
o rádio por companhia. A estação era a TSF (acho) e durante um tempo que não
sei quantificar – a mim parecem-me anos, mas devem ter sido dias – um pouco
antes do noticiário das oito, o locutor anunciava uma música brasileira que eu
ouvia todos os dias com mais atenção do qua alguma vez prestei a qualquer aula.
O que me fascinava era a história que a música contava, a sequência dos versos
que desembocavam num imediato, num aqui e agora que, não sei como, na altura
consegui decifrar. Depois a música mudou e eu esqueci-me dela.
Já era o jovem universitário que achava um certo glamour em amar a poesia quando descobri
no meio das muitas dezenas de vinyl
do meu tio o Meu Caro Amigo do Chico
Buarque. Lembro-me desse dia como um primeiro encontro com o passado, como a
primeira vez em que percebi o valor real da distância, que as coisas nunca
desaparecem. E foi só há uns meses que a Fernanda Lapa me contou que ela estava
em casa do Augusto Boal quando ele recebeu pelo correio a primeira demo da música – que era para ele – que
o «meu caro amigo» era o Boal, que «um beijo na família/ na Cecília e nas
crianças», era para a Cecília Boal e para os filhos deles.
Não sei porquê, mas quando me convidaram para escrever este
texto, pensei em tudo isto. Nestes pontos distantes que tento unir. Talvez haja
uma ligação entre as coisas, qualquer coisa que eu não compreendo, qualquer
metafísica que me escapa. Mas talvez não haja nada. Talvez as noites de insónia
sejam só noites sem dormir, talvez não sejamos outros. Talvez o que ouvi seja
mentira e a mentira esteja em mim.