Saí de Oslo pelas
duas da tarde. Não havia lá nada para mim. A cidade pareceu-me sobretudo limpa
e civilizada, mas é uma cidade, e duvido que encontrasse algum troll a passear pelos jardins públicos.
A Casa Ibsen
está supostamente como ele a deixou quando morreu. E é tudo o que se espera do
Ibsen, limpa e civilizada. Tudo no sítio certo, tudo perfeito e no sítio certo.
Quando me aproximei do manuscrito do Peer
Gynt pensei que ia ter uma epifania ao olhar para as palavras, para a
caligrafia. Mas não aconteceu nada. Não senti nada. Paguei 100 coroas (uns 12
euros) por meia hora a passear por uma casa limpa e civilizada enquanto uma
senhora também ela limpa e civilizada ia dizendo de sala em sala,
– Kor tor
stor for
ou
– Par knar
sar tar.
Depois da
desilusão do museu fui almoçar. As pessoas são simpáticas em Oslo, e quase
todas falam inglês. Ao almoço comi um Fårikål, que a
empregada me disse ser um prato típico.
–
Is it good?
perguntei.
–
Delicious
disse
ela num sorriso limpo e civilizado. Depois veio uma espécie de cozido de
borrego e batatas com umas couves à mistura. Não recomendo. Comi o suficiente
para me alimentar e disse,
–
delicious, indeed
no
final para não ferir susceptibilidades. Depois pedi um café. Não havia café.
Pedi a conta. 300 coroas.
Voltei
ao hotel. Peguei nas coisas e aluguei um carro. Vou para o Sul e duas horas
depois estou em Skien, onde o Ibsen nasceu e viveu até aos quinze anos. A
paisagem começa a ser deslumbrante. Uma mistura de montanhas cinzentas com vegetação
verde e com o mar sempre ao fundo. Skien é uma cidade triste. A wikipédia diz
que tem 50 000 habitantes, mas dá a sensação que só vivem cá 50. Arranjei um
hotel barato e dei uma volta a pé, a puxar um fio de Ariadne imaginário atrás
de mim, com medo de me perder. Encontrei um bar e entrei. Skien é muito
diferente de Oslo, as pessoas não são tão limpas nem tão civilizadas e ninguém
fala inglês. O norueguês é complicado. Há palavras que percebemos pela
parecença fonética com línguas que conhecemos, como ja para sim, ou nei para
não, mas a maior parte do tempo tudo é uma névoa de vocábulos incompreensíveis,
a maior parte do tempo só ouvimos,
– Kor tor
stor for
ou
– Par knar
sar tar.
Entrei no
bar e sentei-me ao balcão. Estão uns dez homens distribuídos pelas mesas, quase
todos sozinhos. Todos têm barba e todos têm uma cerveja à frente deles. Fazem
algum barulho. O homem atrás do balcão também tem barbas mas é mais velho,
ainda assim é daqueles que imaginamos a dar uma chapada em alguém e a atirá-lo
até ao fundo da sala.
– Good evening.
– Kor tor
stor for?
Quando digo
que em Skien ninguém fala inglês, não estou a exagerar. O bar é todo feito de madeira. Não há muita luz. Estamos numa espécie de penumbra castanha.
– A beer? Bière?
– Par knar
sar tar?
Felizmente
sou bom na mímica e o homem lá percebe o que eu pedi, aparentemente o que eu
quero é uma ole, explica-me ele. Vem
a cerveja e vem o homem, está curioso com a minha presença. Quer saber o que é
que estou ali a fazer.
– Kor tor
stor for?
Pelo que
percebo quer saber se eu estou ali em trabalho ou de férias. Eu tento
explicar-lhe numa mistura poliglota quem sou e o que estou ali a fazer. Faço
gestos de que escrevo. Digo Henrik Ibsen e Peer Gynt. Translation. Theatre. Portugal.
Acho que ele percebe. Mais uma vitória para a civilização. Estou à espera que
ele me grite Cristiano Ronaldo ou José Mourinho, mas não. Deixa-se ficar calado
a olhar para mim e começa a falar num tom muito baixo e grave,
– Par knar
sar tar kor tor stor for.
Não percebo
nada do que ele diz. Nada. Mas estupidamente vou abanando a cabeça como se
percebesse. O homem fala e não pára de falar. Às tantas percebo que todos estão
em silêncio a ouvi-lo e a olhar para mim. Não se ouve um único som a não ser a
voz deste homem robusto de barbas brancas. Não sei o que que ele diz, mas é uma
história triste e por isso ponho um ar sério. Todos estão em silêncio, ninguém
se mexe. Ele pára e começa a cantar uma melodia muito triste, cheia de sentimento,
par knar sar
tar
kor tor stor for.
Tenho medo que ele ou alguém comece a chorar. Mas nada acontece. Ele acaba a
história e tudo volta à normalidade. Bebi a cerveja, paguei (50 coroas) e
voltei para o hotel. Basta pormos o pé fora de casa para as coisas mais
estranhas começarem a acontecer.