sexta-feira, 24 de abril de 2015

ON THE ROAD (3)

Estou cansado como qualquer pessoa está cansada a meio da vida. Estou cansado por dentro e por fora, física e emocionalmente. Exausto. Estou exausto. É estranho. Pensei que depois de escrever isto ia sentir um alívio enorme. Mas, não. 
Também pensei que se viesse para a Noruega tudo se resolveria. Mas, não.
A senhora Grethe faz-me o almoço e o jantar. É a dona da pensão. Acho que sou o único hóspede. Skien não é uma cidade turística. A filha Ingid tem 20 anos. É bonita. As mulheres aqui são todas bonitas, elegantes. A Ingrid fala inglês melhor que eu e é o meu meio de comunicação com este mundo. Vai casar em Setembro com um rapaz simpático que tem um nome impronunciável, qualquer coisa parecida com Gjundenstorsen. Todos parecem surpreendidos com a minha presença. Mas ao mesmo tempo todos são muito simpáticos. Falam de Ibsen como se falassem de um velho amigo que se foi embora para outras paragens. Estava à espera de visitar a casa onde ele nasceu, mas já não existe. Há um parque Ibsen, uma rua Ibsen e uma escola Ibsen. Mas a casa onde nasceu já não existe e ninguém sabe onde terá sido.
Dou longos passeios por Skien. Começo a conhecer bastante bem a geografia da cidade, que não é bonita nem feia. Tenho a esperança de encontrar nesses passeios alguma velha que me sussurre ao ouvido qualquer coisa, uma coisa qualquer que eu não compreenda, apenas uma coisa qualquer que, quer eu compreenda ou não, faça sentido. Passeio por Skien mas a velha não aparece.
A Ingrid disse-me ao jantar um provérbio norueguês que traduzido daria qualquer coisa como,
– Seja qual for a medida não me serve o fato.
Estava à espera de ver renas a passear pela rua como nós vemos cães vadios. Mas, não. Não há renas a passear pela rua. Apenas cães vadios.

quinta-feira, 23 de abril de 2015

ON THE ROAD (2)

Saí de Oslo pelas duas da tarde. Não havia lá nada para mim. A cidade pareceu-me sobretudo limpa e civilizada, mas é uma cidade, e duvido que encontrasse algum troll a passear pelos jardins públicos.
A Casa Ibsen está supostamente como ele a deixou quando morreu. E é tudo o que se espera do Ibsen, limpa e civilizada. Tudo no sítio certo, tudo perfeito e no sítio certo. Quando me aproximei do manuscrito do Peer Gynt pensei que ia ter uma epifania ao olhar para as palavras, para a caligrafia. Mas não aconteceu nada. Não senti nada. Paguei 100 coroas (uns 12 euros) por meia hora a passear por uma casa limpa e civilizada enquanto uma senhora também ela limpa e civilizada ia dizendo de sala em sala,
– Kor tor stor for
ou
– Par knar sar tar.
Depois da desilusão do museu fui almoçar. As pessoas são simpáticas em Oslo, e quase todas falam inglês. Ao almoço comi um Fårikål, que a empregada me disse ser um prato típico.
– Is it good?
perguntei.
– Delicious
disse ela num sorriso limpo e civilizado. Depois veio uma espécie de cozido de borrego e batatas com umas couves à mistura. Não recomendo. Comi o suficiente para me alimentar e disse,
– delicious, indeed
no final para não ferir susceptibilidades. Depois pedi um café. Não havia café. Pedi a conta. 300 coroas.
Voltei ao hotel. Peguei nas coisas e aluguei um carro. Vou para o Sul e duas horas depois estou em Skien, onde o Ibsen nasceu e viveu até aos quinze anos. A paisagem começa a ser deslumbrante. Uma mistura de montanhas cinzentas com vegetação verde e com o mar sempre ao fundo. Skien é uma cidade triste. A wikipédia diz que tem 50 000 habitantes, mas dá a sensação que só vivem cá 50. Arranjei um hotel barato e dei uma volta a pé, a puxar um fio de Ariadne imaginário atrás de mim, com medo de me perder. Encontrei um bar e entrei. Skien é muito diferente de Oslo, as pessoas não são tão limpas nem tão civilizadas e ninguém fala inglês. O norueguês é complicado. Há palavras que percebemos pela parecença fonética com línguas que conhecemos, como ja para sim, ou nei para não, mas a maior parte do tempo tudo é uma névoa de vocábulos incompreensíveis, a maior parte do tempo só ouvimos,
– Kor tor stor for
ou
– Par knar sar tar.
Entrei no bar e sentei-me ao balcão. Estão uns dez homens distribuídos pelas mesas, quase todos sozinhos. Todos têm barba e todos têm uma cerveja à frente deles. Fazem algum barulho. O homem atrás do balcão também tem barbas mas é mais velho, ainda assim é daqueles que imaginamos a dar uma chapada em alguém e a atirá-lo até ao fundo da sala.
– Good evening.
– Kor tor stor for?
Quando digo que em Skien ninguém fala inglês, não estou a exagerar. O bar é todo feito de madeira. Não há muita luz. Estamos numa espécie de penumbra castanha.
– A beer? Bière?
– Par knar sar tar?
Felizmente sou bom na mímica e o homem lá percebe o que eu pedi, aparentemente o que eu quero é uma ole, explica-me ele. Vem a cerveja e vem o homem, está curioso com a minha presença. Quer saber o que é que estou ali a fazer.
– Kor tor stor for?
Pelo que percebo quer saber se eu estou ali em trabalho ou de férias. Eu tento explicar-lhe numa mistura poliglota quem sou e o que estou ali a fazer. Faço gestos de que escrevo. Digo Henrik Ibsen e Peer Gynt. Translation. Theatre. Portugal. Acho que ele percebe. Mais uma vitória para a civilização. Estou à espera que ele me grite Cristiano Ronaldo ou José Mourinho, mas não. Deixa-se ficar calado a olhar para mim e começa a falar num tom muito baixo e grave,
– Par knar sar tar kor tor stor for.
Não percebo nada do que ele diz. Nada. Mas estupidamente vou abanando a cabeça como se percebesse. O homem fala e não pára de falar. Às tantas percebo que todos estão em silêncio a ouvi-lo e a olhar para mim. Não se ouve um único som a não ser a voz deste homem robusto de barbas brancas. Não sei o que que ele diz, mas é uma história triste e por isso ponho um ar sério. Todos estão em silêncio, ninguém se mexe. Ele pára e começa a cantar uma melodia muito triste, cheia de sentimento,
                                   par knar sar tar
                                   kor tor stor for.
Tenho medo que ele ou alguém comece a chorar. Mas nada acontece. Ele acaba a história e tudo volta à normalidade. Bebi a cerveja, paguei (50 coroas) e voltei para o hotel. Basta pormos o pé fora de casa para as coisas mais estranhas começarem a acontecer.

quarta-feira, 22 de abril de 2015

ON THE ROAD (1)

Doem-me as costas e estou cansado. O hotel é agradável mas o bar já estava fechado. Felizmente antecipei essa possibilidade e comprei uma garrafa de Canadian Club no freeshop de Zurique onde estive duas horas a andar de um lado para o outro, à espera que o tempo passasse.
A viagem até Zurique não foi agradável. Vim ao lado de uma daquelas pessoas que acha que fazer conversa é o estado normal do ser humano e que se duas pessoas estão sentadas ao lado uma da outra têm obrigatoriamente de partilhar as suas experiências. De maneira que lá fui ouvindo sem interesse as histórias deste francês que se apelidou de mounsieur de Maistres, um conversador nato que não parou de falar das suas viagens pelo mundo. Tentei ser simpático no meu francês limitado, e devo ter conseguido porque o senhor não se calou.
Dei aulas até às seis e meia, o que foi estranho, e parece ainda mais estranho agora. Passei o dia todo com a sensação de ser uma espécie de Lucas Corso, preparado para me ir embora a qualquer altura, apenas com o que tinha comigo, passaporte e dinheiro. Se calhar não precisamos de mais nada, apenas de dinheiro e de um passaporte. O Lucas Corso era um caçador de livros, eu sou um caçador de palavras. Não estava a conseguir encontrá-las e num impulso que talvez me arrependa, anteontem decidi fazer as malas, reservar uma passagem e ir à procura delas sem dizer nada a ninguém.
Estou num quarto de hotel em Oslo, uma hora à frente de quem me lê agora, em Portugal. Às vezes temos de nos ir embora, de deixar tudo o que nos rodeia e apenas ir embora. Não sei se tenho medo de ter vindo assim, sozinho e sem destino, ou se tenho medo de não regressar.
Quando traduzo uma obra tenho de me transformar no autor, ou pelo menos tenho de ter essa ilusão. E o Ibsen não estava a aparecer, e o Peer Gynt não estava a aparecer. Vai para a Noruega, disse-me a minha cabeça. Talvez não resolva nada, mas talvez ajude. E anteontem pedi dez dias de férias e hoje estou aqui, em Oslo. Da janela do meu quarto vejo uma cidade tão calma que parece parada. Estava à espera de encontrar montanhas,  
Amanhã tenho de me levantar cedo. Vou visitar a Casa Ibsen antes do almoço e depois alugar um carro para ir até Skien onde vou ficar uns dias (espero), apesar de não ter reservado hotel.
Estou cansado. Está frio lá fora. Não posso fumar. Estou num país distante. Tantas coisas que podem acontecer.

terça-feira, 21 de abril de 2015

A SORTE

                                      A sorte é assim, a sorte vai e a sorte volta

diz o Peer Gynt à mãe logo no início da peça. Eu estou naquela fase em que a sorte se foi embora para qualquer lugar distante. A sorte é importante, farto-me de dizer isso aos alunos. E eles acreditam no que estou a dizer. E fazem bem em acreditar.
Conheci na vida pessoas com sorte e pessoas sem sorte. O meu tio Manel é o exemplo típico da pessoa sem sorte. Jogou durante anos nos mesmos números no totoloto e na única semana em que não jogou porque estava de férias em Cuba saiu a chave que ele sempre apostava. Claro que há quem diga que o meu tio Manel tem a sorte de poder ir passar férias a Cuba porque herdou a fortuna do sogro que morreu atropelado dois meses depois de ele se ter casado com a minha tia Madalena. Mas também é verdade que se vai a Cuba todos os anos não é propriamente pelas férias mas pela fisioterapia com um especialista cego, porque ao tentar salvar o sogro do atropelamento deslocou uma anca, e para além de coxo ficou com dores permanentes que o impedem sequer de subir uma escada. Além disso, no ano passado, o fisioterapeuta cubano cego enganou-se na anca e deslocou também a outra. Pelo que como consequência de toda esta história, o meu tio Manel é agora coxo das duas pernas e gastou a fortuna do sogro no fisioterapeuta cego, e tudo isto por uma manifesta falta de sorte.
Já o meu amigo Diogo é um caso raro de sorte. Nasceu no seio da aristocracia falida e continuou os muitos vícios genéticos que o pai lhe transmitiu. Até aqui, nada de bom, mas quando vai ao casino aposta no zero e ganha sempre, quando vai às putas não paga porque é bem-parecido e brasonado e quando na Faculdade faltava a uma frequência tinha a sorte do professor perder os testes e de lhe dar um catorze por não saber se o Diogo tinha ou não entregado. Um dia estávamos os dois nas bancadas do Campo Pequeno, ele levanta-se, acende um charuto e diz bem alto que este país é uma choldra, e logo um senhor robusto de bigode retorcido lhe diz que afinal a juventude não está perdida e que tem um cargo de administrador para lhe oferecer. O Diogo casou cinco anos depois com a Constança, ela é psicóloga. Têm dois filhos. A Constança é estúpida que dói. Perguntou-me há uns dias se era mesmo verdade aquela história de que não me tinham dado o Nobel porque eu me recusava a dar entrevistas. Quando saiu da sala, o Diogo disse-me,
– Já viste a sorte que tenho?
Vou voltar ao princípio porque quase me perdi. 2015  tem sido uma merda. Uma merda malcheirosa. Não que haja merda que cheire bem, mas há aquela que cheira tão mal que infesta o ar e nos causa um esgar de sofrimento, há aquele cheiro a merda que se entranha e que não sai, por muito que nos afastemos, por muito que tapemos o nariz. 2015 tem sido assim. Mas,

                                      A sorte é assim, a sorte vai e a sorte volta.

segunda-feira, 20 de abril de 2015

UMA PARÁBOLA

Um dia fui para os Açores e fiquei lá três anos. Se hoje parece outra vida é porque foi realmente outra vida. Como era rico, viajava três ou quatro vezes por ano para Lisboa. No Natal e no Verão, claro, mas também para ver um concerto dos Pearl Jam  (o dicionário devia acrescentar o termo estupidez para definir a juventude) ou  porque me apetecia comprar livros. Na altura a FNAC tinha acabado de abrir e qualquer diletante que se prezasse ia directo para a secção de literatura estrangeira e saía de lá com um misto de clássicos que não eram publicados e contemporâneos que não eram traduzidos. Se o Dâmaso Salcede entrasse na FNAC diria que era  «chic a valer».  Cheirava a modernidade, a cosmopolita, uma espécie de prova que Portugal começava a pertencer à Europa e a deixar de ser o «país mais selvagem de todas as Áfricas», como dizia o Almada. Isto foi na idade da pedra, o mundo era muito mais pequeno, não havia amazon e a internet andava a dois à hora. Eu gostava da FNAC, gostava tanto que até pagava sessenta contos de avião para vir comprar o último livro do Don DeLillo a Lisboa e exibi-los depois numa esplanada a meio do Atlântico.
Lembrei-me disto porque é Domingo e estupidamente decidi estender-me no sofá e ver televisão. Às tantas apareceu um anúncio. Como todos os anúncios quer vender-nos uma ideia através de uma história com a qual nos identifiquemos. A ideia é que temos de ir à FNAC comprar livros, a história é a de uma tal Joana que é leitora compulsiva apesar do aspecto algures entre o tonta-que-ri-por-tudo-e-por-nada e o jovem-que-leva-a-vida-com-a-inconsciência-de-um-caracol. A narradora (o público alvo é bem evidente) lá vai dizendo em voz jovial que a Joana lê tudo, lê policiais, lê romances, lê poesia, lê banda desenhada, até lê manuais de instrução. E a Joana quando tem vontade de ler o que é que faz? Vai à FNAC porque a FNAC é bestial. Na FNAC ela pode ler os policiais, os romances, as bandas desenhadas e a poesia que quiser porque a FNAC é tão amiga da Joana como a Joana é da FNAC. Felizmente que esta Joana não lê Teatro, nem Filosofia, nem História, porque senão estava tramada. Teria de se contentar com os filósofos de supermercado, com os historiadores de supermercado e com o Felizmente há Luar.
Aqui fica o meu apelo: não vão à FNAC, boicotem a FNAC, quanto muito, roubem na FNAC. Em tempos teve glamour, mas foi há muitos anos e durante muito pouco tempo. Até parece que estou a falar de outra coisa.

sábado, 18 de abril de 2015

MADRUGADA #1

Às seis e meia da manhã temos de ir dormir. Não há nada para fazer às seis e meia da manhã a não ser ir dormir. Amanhã é outro dia e essas coisas, mas os dias começam a parecer todos iguais. As noites também. Devia tirar umas férias. Ir para um país tropical no tempo de maior calor e ficar fechado no quarto do hotel com o ar condicionado no máximo, sentado na cama a olhar para a janela e a perguntar-me por que raio achei boa ideia ir passar férias num país tropical quando odeio o sol o calor e os trópicos. Esqueci-me das vírgulas. Ultimamente esqueço-me de muitas coisas. Anteontem, por exemplo, esqueci-me de pagar a conta no restaurante ao jantar. Levantei-me da mesa depois de beber o café e saí pela porta como quem quer voltar para casa incomodado por ter de lá saído. O empregado foi simpático, gritou um,
– Oh, amigo
enquanto eu descia as escadas. Respondi-lhe,
– Eu não sou teu amigo
e só nessa altura percebi o que se tinha passado. Voltei para trás. Pedi desculpa. Deixei cinco euros de gorjeta, envergonhado. Ele disse para eu não me preocupar, que era uma coisa normal, que acontecia muitas vezes, que as pessoas se levantavam da mesa depois de beber o café e iam para a rua esquecidas de pagar.
Eu ri-me. Ele também.
Ontem esqueci-me do aniversário de um amigo. Telefonou-me ao fim da tarde, estava a meio de uma aula, olhei para o telemóvel e perguntei-me,
– o que que este gajo quer?
mas atendi. Havia um jantar à noite em casa dele, com mais amigos e com os filhos dos amigos, porque todos casaram e todos tiveram filhos. Disse-lhe.
– Estou a traduzir uma peça. Não posso. Mas jantar de quê? Fazes anos?
e ele realmente fazia anos, quarenta, uma data importante, o tempo passa.
– Não posso. Parabéns, pá.
De maneira que me esqueço das coisas. Das coisas importantes. Esqueço-me da carteira. Esqueço-me de acordar. 
Não sei do que me esqueci hoje, mas devo ter-me esquecido de qualquer coisa. Estou a olhar-me ao espelho enquanto ajeito a gravata. É tarde. São seis e meia e tenho de ir dormir. Não sei por que raio estou a ajeitar a gravata. Às seis e meia isso não serve de nada. Onde é que me esqueci da minha alma?