Ela diz que não quer ter nada comigo. Ela diz,
– eu não quero ter nada contigo,
diz isto assim, como se fosse a coisa mais normal do mundo.
Nem sequer me prepara, apenas me diz,
– eu não quero ter nada contigo,
e eu nem sequer disse nada, apenas falei com ela, apenas lhe
disse,
– olá,
e ela logo a seguir,
– eu não quero ter nada contigo,
e eu, assim, de repente, ao olhar para isto, para esta frase
que me aconteceu, a achar que deve haver qualquer coisa de errado comigo,
qualquer coisa que não se diz porque não há nada para dizer, a pensar em mim
como uma coisa que não funciona, um frigorífico estragado, um canivete que não
corta, e ela a dizer,
– eu não quero ter nada contigo,
como se eu tivesse lepra, como se eu fosse um leproso com um
sino pendurado à volta do pescoço,
– tu escreves bem,
diz a amiga do Neil enquanto olha para o telemóvel,
– é uma aliteração,
digo eu, são seis da manhã. O quê? Talvez seja o meu
passado, talvez seja o meu passado ou o que eu fui, aquilo que eu fui, nós não
somos apenas onde estamos, somos onde estivemos, o que fomos, e talvez aquilo
que eu fui tenha sido o suficiente para agora olharem para mim e dizerem,
– eu não quero ter nada contigo,
que é o que ela diz quando eu falo com ela,
e por isso ela vai-se embora. Ela sai pela porta e eu olho
para a porta e depois ouço o Neil a dizer,
– a dyke,
man. Can you fucking believe it? I slept with a fucking dyke,
diz o Neil enquanto enrola um charro. Dói-me a cabeça.
Dói-me a alma. Dói-me a vida.
– What
happened to your girl?, she left?,
pergunta o Neil enquanto eu olho em volta,
– não sei, não me lembro,
deitado no
chão,
– and why
are you on the floor? You could’ve slept on the bed,
diz o Neil sentado na cama onde eu devia ter dormido.
– Não me lembro, Neil. Não me lembro sequer de ter chegado a
tua casa, nem me lembro quem é que me trouxe para tua casa, o que é que
aconteceu?, nunca mais saio contigo, sabes que idade é que tenho?, estas coisas
dão cabo de mim, já não tenho idade para estas coisas.
Levanto-me. Ponho as mãos na cabeça.
– I made
you some coffee,
diz o Neil enquanto me estende uma chávena de água suja. Eu
sento-me ao lado dele, na cama onde devia ter dormido. Eu acendo um cigarro, o
Neil acende o charro.
– What a fucking night,
diz ele,
– my
fingers are all dry,
e ri-se,
– that dyke
just couldn’t make it, and I guess it’s ok, ‘cause she’s a dyke, I mean, she
told me, sorry, I like pussy, I don’t like dick, and it just won’t work. Maybe
you can hold me. Just hold me. And you know what? I put my arms around her, and
we just slept through the morning, like if we’re friends. I hold her all night.
Just like that, my arms around her. And that was fine.
O Neil continua a falar. Eu não o estou a ouvir. Eu estou a
pensar em ti. Estou a fumar o cigarro e a pensar em ti. Não penses que estou a
pensar em ti, não estou a pensar em ti, estou a pensar em ti, mas não é em ti, é
noutra pessoa, porque eu não quero pensar em ti, eu quero que tu te fodas.
Estás a ouvir? Não quero pensar na miúda que se foi embora a meio da noite, nem
em mim a dormir no chão em vez de dormir numa cama. Não quero pensar em ti.
Estou a pensar em ti enquanto o Neil se levanta e põe a tocar o último álbum
dos The War on Drugs. Estou a pensar em ti. Estou a pensar no que aconteceu
para eu estar aqui, em casa do Neil, a acordar no chão sem ninguém ao meu lado
quando o Neil me garante que éramos quatro quando chegámos,
– I got the
dyke, you got the grenade, Mike. This is war and you jumped to the grenade. I’
de thank you but we both got fucked, ‘cause mine was a dyke and yours was a
grenade.
E o Neil ri-se outra vez, o Neil ri-se e eu deixo de o ouvir
enquanto penso em ti. Ultimamente tenho pensado em ti, na vida que levo por não
te ter, no que tenho feito por não existires, porque tu não existes, és apenas
alguém com quem falo de vez em quando, que vejo de vez em quando, que olho,
porque eu olho mesmo para ti quando estou a olhar para ti, de vez em quando.
São quatro da tarde. Tento lembrar-me da noite de ontem.
Tento lembrar-me de ti porque te confundo com outras. Se calhar não te amo. Se
calhar nem sequer gosto de ti. E depois o Neil cala-se e eu continuo calado.
Estamos os dois calados, sentados na cama. E depois eu penso em ti outra vez.