Estou à beira da loucura com a Maribel. É verdade que ela
limpa a casa, é verdade que ela lava o chão, a loiça, a casa-de-banho, é verdade
que ela passa a ferro e que os mosquitos desapareceram, é verdade que é competente
e que nem sequer pago assim tanto pelo que ela faz. Mas todos os dias chego a
casa e não sei das coisas.
– Maribel, os papéis que estavam aqui no chão?
– Joguei fora, professor.
(A Maribel não é minha aluna, obviamente, mas trata-me por
professor e diz a palavra,
– professor
como se dissesse Sua Santidade.)
À noite chego a casa e pego no telefone,
– Maribel, onde estão os pratos o arroz o whisky as
orquídeas?
– Relaxa, professor, coloquei os pratos no armário de cima,
o arroz no de baixo, o whisky joguei fora e as orquídeas estão na varanda.
– O quê? Porquê?
– Porque fica muito melhor assim, professor.
– Não. Porque é que mandaste o whisky para o lixo?
– Beber é pecado, professor. Deus não quer que o professor
beba.
Ela diz “num” em vez de “não”. Eu digo-lhe para ela não
mexer nas minhas coisas, para não deitar os testes dos alunos para o lixo,
depois grito,
– Deus não existe, Maribel, e mesmo que exista ele não quer
saber se eu bebo whisky ou não. E vou escrever ele com letra pequena!
– Não entendi, professor,
mas diz “num” em vez de “não”. E depois desligo o telefone e
ele começa a telefonar sozinho, com vontade própria, para outras pessoas porque
a minha vida é mesmo assim, não é porque haja um significado qualquer na pessoa
que o wiko merda escolhe (o wiko merda é o meu telefone), é apenas uma vontade aleatória, um non sequitur igual a tantos outros que
me acontecem. Às vezes acho que é de propósito. Deus, o destino, o universo.
Mas, não. É só mesmo uma série de combinações ao calhas, e eu sozinho em casa a
tentar escrever e o wiko merda a
ligar por vontade própria ao meu gestor de conta às dez da noite quando eu não
falava com ele há mais de um mês.
Ele ligou-me de volta porque se fartou de dizer,
– estou? Estou? Estou?,
enquanto eu dizia nada, sem saber que lhe tinha telefonado. Atendi. E pronto. Está tudo na mesma. Parece que estou ainda mais falido.
– Não devias mesmo ter investido na bolsa,
diz-me ele,
– perdeste tudo. Mais valia teres ido a um casino, tinhas
mais hipóteses.
Eu rio-me. Não posso fazer mais nada a não ser rir.
– Acho que me vou manter afastado de casinos nos próximos
tempos,
digo eu. Como não sei o que dizer, pergunto-lhe pela mulher
e pelos filhos,
– não tenho mulher nem filhos. Estás bem, Miguel?
Sim, estou bem. Tirando aquela parte em que perdi o dinheiro
todo, tirando aquela parte em que a perdi sem nunca a ter tido, tirando aquela
parte em que me vão despejar de onde vivo, tirando aquela parte em que tenho 38
anos e digo a toda a gente que tenho 35 porque tenho medo de envelhecer,
tirando aquela parte em que as paredes da casa parecem avançar para mim porque
me sinto cada vez mais sozinho, tirando aquela parte em que estou doente porque
eu sou a doença de mim próprio, tirando tudo isso, estou bem.
Não lhe disse isto. Fiquei calado, em silêncio, porque é
mesmo assim que nós somos, calados e em silêncio, tudo enfiado cá dentro.
– Sabes, acho que o Charlie Kaufman está para o cinema como
tu estás para o teatro,
disse o meu gestor de conta.
Eu agradeci-lhe enquanto me lembrava dos sítios que a Maribel encontra para as minhas coisas.
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