Ando a tossir como um cão, o que quer dizer que estou a
falar com as pessoas e parece que a meio da frase me dá para ladrar. Hoje de
manhã, a falar ao telefone com o meu novo senhorio, enquanto tentava explicar
que ia tentar conseguir fazer a mudança entre hoje e amanhã deu-me para ladrar
como um cão duas vezes, eu a tossir e ele,
– está tudo bem, senhor Graça?
E eu,
– estou óptimo, desculpe, mas ando com uma tosse horrível.
E depois outra vez a mesma coisa, minutos a tossir como um
cão, como se fosse rebentar ou morrer, e ele,
– quer que chame uma ambulância, senhor Graça?
E eu,
– não, estou óptimo, isto já passa.
A minha actriz favorita diz que todas as coisas acontecem
por uma razão, eu acho que as coisas acontecem por acaso, uma sequência de
acontecimentos aleatórios que se vão apresentando à nossa frente, agora isto,
depois aquilo, sem qualquer ligação entre eles.
– Não, não,
diz ela,
– tudo acontece por uma razão, só temos de perceber qual. Não
há coincidências.
E talvez ela tenha razão, talvez a minha actriz favorita tenha
razão. Passei o dia a pensar nisso porque no mesmo dia em que me obrigaram a
mudar de casa começaram a nascer duas flores na minha orquídea que comprei no
princípio de Novembro. Quase quatro meses depois as flores caíram todas e agora
começam a crescer duas novas, uma a olhar para a outra em dois pés diferentes, no
mesmo dia em que vou para outra casa. A minha médica disse que era uma coisa
boa, que mudar é uma coisa boa,
– vai fazer-te bem sair dali, só memórias por todo o lado, parecia
um museu, não havia nada que não tivesse uma história.
– Pensava que gostavas disso,
disse eu.
– Sim, mas havia muita humidade. A tua tosse vem daí. Vai
comprar este xarope e muda de casa que essa tosse de cão há-de passar num
instante.
O meu gestor de conta disse que era uma boa notícia,
– é uma boa notícia, Miguel. A renda é mais barata,
continuas falido, mas estás um pouco menos falido, ou melhor, podias estar
ainda mais falido e assim estás um pouco menos falido. Provavelmente assim com
o que poupas vais conseguir pagar o que me deves.
Mas eu não queria mudar de casa, queria ficar ali, tinha
memórias ali, escrevi ali o Cassiopeia,
escrevi ali o Lugares #1, escrevi ali
o se eu não fechar os olhos, escrevi
ali o Minotauro, e traduzi o Gynt e o Macbeth, e amei e fui amado, e sentia-me bem ali, e gostava quando
a minha actriz favorita dizia,
– esta casa tem qualquer coisa que não sei explicar. Sinto-me
bem aqui, como se não me quisesse ir embora.
Eu também não me queria ir embora, mas fui. Fui para outra
casa onde ouço o meu eco quando falo com as orquídeas que estão a nascer, às
escuras na noite, sem saber dos interruptores, e a lembrar-me da minha actriz
favorita a dizer ontem,
– toma o xarope,
enquanto eu olhava para cima e reparava que hoje ia estar
Lua cheia.
E isto tudo junto quer dizer alguma coisa ou então isto tudo
quer dizer nada. E provavelmente só quer dizer que ando a tossir como um cão e que ninguém
quer ser um cão e que devo tomar o meu xarope enquanto as orquídeas crescem e
as casas mudam.
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