– Isto é tudo culpa
tua, Miguel Graça.
gritou a Fernanda Neves pelo menos duas vezes durante os
ensaios aos meus ouvidos. Referia-se à minha versão do Peer Gynt, que se eu não a tivesse conseguido (boa palavra) fazer,
não estaríamos aqui, às tantas da manhã, fechados no teatro. Não é verdade,
usaríamos outras palavras de outras pessoas, mas compreendo o que ela quis
dizer. No outro dia falámos de máscaras e de cuspidelas. Ela dizia-me que eu
andava amargo, que o Monte Estoril me fazia mal, que os meus textos andavam
amargos. Eu respondi que era uma persona,
que não era eu, que eram cuspidelas que mandava às tantas da manhã.
– Cuspidelas amargas,
disse ela.
Estou em frente ao espelho a olhar para mim. Às vezes há
noites em que me deixo ficar desta maneira. Não muito tempo, apenas o
suficiente para desistir de me lembrar de como eu era. E nunca me lembro. Parece
que sempre tive esta cara, que sempre tive este corpo e esta figura. Mas isso
não é verdade. Apenas não me lembro.
A minha médica telefonou-me hoje,
– como está esse coração?
– Ainda bate.
E continua a bater. Estou a olhar para o espelho. É tarde. Está
escuro. Estou a olhar para mim.
– Isto é tudo culpa tua, Miguel Graça.
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